Texto publicado originalmente no blog Histórias Mal Contadas.
Quem mata mais no Rio de Janeiro? As balas perdidas ou o desvio do dinheiro público da saúde, da educação, da segurança e de obras de infraestrutura, praticado pelos bandidos travestidos de deputados na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj)?
Para responder essas duas perguntas aos nossos leitores, temos que começar pelo que aconteceu na tarde de sexta-feira (17). Os deputados decidiram, por 39 votos contra 19, soltar da cadeia os seus colegas Jorge Piccini, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos do PMDB, presos pela força-tarefa da Operação Cadeia Velha, acusados de corrupção, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e outros crimes.
A prisão deles foi decidida pelo desembargador Abel Gomes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF 2). E atuação da Alerj no caso aconteceu com base em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). No mês passado, uma ação cautelar de um das turmas do STF afastou do cargo e proibiu que saísse à noite de sua casa o senador Aécio Neves (PSDB – MG), acusado de corrupção pela força-tarefa da Operação Lava Jato. A ação foi para votação no plenário do STF. A decisão foi que o cumprimento da cautelar teria de passar por uma votação no plenário do Senado. Os senadores votaram e devolveram o cargo a Aécio Neves. Com uma rapidez espantosa, os deputados cariocas usaram essa decisão do STF para libertar os seus três colegas, sendo que um deles, Piccini, é presidente da Alerj.
Isso foi o que aconteceu e noticiamos. Por ter acontecido no Rio de Janeiro, o cartão-postal do Brasil, nós, repórteres, temos condições de avançar além da noticia para informar aos nossos leitores fatos que ficam subentendidos nas entrelinhas das reportagens devido à estrutura rígida da notícia determinada pelo espaço disponível no noticiário – rádio, TVs, jornais (papel) e sites. Vamos lá. As balas perdidas, todos sabem de ontem elas vêm: do confronto entre os policiais militares e as quadrilhas ou dos tiroteios entre os bandidos na disputa pelas bocas de fumo. Só para ter uma ideia da gravidade do problema: em 2017, de janeiro até o dia 2 de julho, foram atingidas no Rio 632 pessoas por bala perdida, sendo que 67 foram a óbito, entre elas a menina Vanessa Vitória dos Santos, 11 anos, moradora do Complexo do Lins. O pano de fundo desse episódio tem um policial mal equipado, mal treinado e mal pago. E um bandido com uma arma que chegou as suas mãos graças aos contrabandistas de armamentos que circulam pela cidade. Sem medo de errar, nós aqui podemos fazer uma ligação direta dos fatos. Se somarmos a quantia de dinheiro público desviado nos últimos anos pelos deputados Piccini, Melo, Albertassi e o ex-governador do Estado Sérgio Cabral (PMDB – RJ), chegaremos a milhões de reais – os dados podem ser encontrados nas reportagens disponíveis na internet sobre as operações Lava Jato e Cadeia Velha. Dinheiro que fez falta na segurança pública. Então? De quem é o dedo que apertou o gatilho da arma que matou a menina Vanessa?
Hoje, no organograma dos criminosos do Rio Janeiro, os bandidos travestidos de políticos ocupam o lugar que eram dos bicheiros – os pioneiros do crime organizado no Brasil. Até a década de 90, os bicheiros eram tão poderosos que mantinham uma espécie de Estado paralelo. A decadência deles começou em 1993, quando a juíza Denise Frossard prendeu os 14 maiores bicheiros da cidade. Ela era da Justiça do Estado. Um ano antes da prisão, eu tinha feito uma reportagem sobre o poder dos bicheiros no Rio Grande do Sul. Alguns meses depois de a juíza ter prendido os bicheiros, eu conversei com ela em duas ocasiões: uma em Santana do Livramento, na fronteira gaúcha com o Uruguai, onde a magistrada estava fazendo palestras, e em outra vez falamos por telefone. A impressão que fiquei dela foi a de uma pessoa educada, bem informada e articulada e dona de uma mão pesada nas sentenças. O modo de agir do juiz federal Marcelo Bretas, que mandou Cabral para a cadeia, me lembra a maneira de trabalhar da juíza Denise Frossard.
Outro dano que o desvio do dinheiro público causou no Rio de Janeiro é hoje assunto dos relatórios dos serviços de inteligência do Brasil. A destruição de uma das festejadas iniciativas na área de segurança pública no Rio de Janeiro, que foram as unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Por mais de uma década, a ação dessas unidades devolveu a cidadania aos moradores das favelas. A falta de recursos detonou as unidades e, com isso, os bandidos voltaram e estão dando as cartas nas favelas. No final dos anos 80, eu estive no Rio de Janeiro fazendo reportagens sobre o estouro da violência na cidade. A atual crise na segurança do Rio é diferente da que testemunhei. Hoje, os bandidos estão mais organizados e armados. A Polícia Militar, responsável pelo enfrentamento direto com os quadrilheiros, além de mal equipada, ainda tem os seus salários atrasados. Na época, os bicheiros tinham o poder na cidade e ganhavam dinheiro com os trocados que os cariocas apostavam no jogo do bicho. Hoje, os bandidos travestidos de políticos ganham milhões desviando o dinheiro público que faz falta para o cotidiano do carioca. Essa é a situação do Rio de Janeiro.
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Carlos Wagner é jornalista. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, entre eles “País Bandido”.