A revista semanal Isto É ousou publicar uma capa com o presidente Bolsonaro roubando o look de Hitler: o inconfundível bigodinho, os cabelos na testa e o olhar de fazer medo. Essa capa, ainda nas bancas de jornais e podendo ser vista nas telas dos celulares e computadores, foi programada para coincidir com as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, nas quais — de acordo com vazamento publicado no jornal O Estado de S. Paulo — Bolsonaro é considerado culpado por uma série de crimes, propondo-se que seja indiciado por homicídio qualificado.
Não é a primeira vez que se usa a referência a Adolf Hitler, no caso de crimes coletivos ou crime hediondo. Em junho do ano passado, os jornais franceses e belgas reproduziram uma proposta de edição de capa para a revista Time, na qual, nos poucos traços em preto do artista belga Luc Descheemaeker num fundo branco, aparecia uma franja de cabelo e, imitando o bigode, havia uma pequena caricatura do então presidente Donald Trump. Apesar desses traços sumários, não havia nenhuma dúvida — era Adolf Hitler. Uma legenda dizia: “Racismo é o maior dos vírus”. Esse desenho viralizou nas redes sociais à época porque queria dizer “o nazista Trump matou o negro George Floyd”.
Na própria Alemanha, a revista Stern, em agosto de 2017, publicou uma capa violenta contra Trump, na qual ele se cobria com a bandeira norte-americana e fazia o gesto de saudação nazista Heil Hitler com a expressão Sua Luta, praticamente a mesmo da autobiografia de Hitler, “Mein Kampf” (minha luta, em alemão). O título da capa não deixava nenhuma dúvida: “Neonazistas, Ku-Klux-Klan, racismo: como Donald Trump excita o ódio nos Estados Unidos”.
A capa tinha ligação com os confrontos verificados em Charlottesville, EUA, entre supremacistas brancos, neonazistas e membros do KKK contra manifestantes antirracistas. Uma variante brasileira da Isto É poderia ser (talvez a iconografia da revista já tenha proposto) um Jair Bolsonaro envolto na bandeira brasileira fazendo a saudação nazista.
Não consegui saber como foram as reações dos norte-americanos a essa assimilação de Trump, republicano de extrema-direita, com o líder nazista e genocida alemão. Embora tenha procurado, não vi críticas por mau gosto na criação da capa do Stern e nem no desenho do artista belga, ambos comparando o ex-presidente ao criminoso nazista. É bom lembrar ser proibida, na Alemanha, a reprodução de tudo quanto se refira ao período hitleriano. Só há exceções no combate ao nazismo, nas artes, nas ciências e no ensino nas escolas. A capa do Stern estava nessas exceções.
Teria a revista Isto É exagerado? Ora, a campanha eleitoral e mesmo o slogan do governo Bolsonaro são de clara inspiração nazista. “O Brasil acima de tudo” nada mais é do que uma tradução/adaptação literal de “Deutschland uber alles”. As declarações de cunho nazista do clã Bolsonaro estão em toda a imprensa. A política contrária às vacinas e a promoção de remédios ineficazes que não previnem e nem curam, logo fizeram surgir na imprensa e mesmo nos cartazes anti-Bolsonaro a expressão qualificativa “genocida”, acompanhada da expressão “governo nazifascista”.
Exceto pelos processos abertos pelo ex-ministro da Justiça e pastor evangélico, André Mendonça, que não tiveram sequência junto ao STF, nada houve da parte do governo Bolsonaro contra a assimilação do seu governo pela imprensa, da imagem, da representação e do governo hitlerista. Negar haver pontos de convergência, inclusive no culto pelas armas, do bolsonarismo com o hitlerismo, parece difícil.
Por isso, imagino a coerente decisão do diretor-editorial Carlos José Marques e seus editores de ver na figura do presidente Bolsonaro traços e comportamentos do líder nazista alemão, colocando como bigodinho a palavra “Genocida”, referentes aos mais de 600 mil mortos (na verdade seriam muito mais) e como título “As práticas abomináveis do Mercador da Morte”.
Só não se entende a reação de alguns colegas, mesmo um tanto ofensiva, pela publicação da montagem Bolso-Hitler na capa da revista. Se mesmo na Alemanha, a Stern compara Trump com Hitler, se os jornais belgas e franceses publicaram a figura gráfica de um Trump nazista, a imprensa do Brasil, onde existe uma matéria-prima mais comprometida com genocídio que Trump nos EUA, não pode publicar? É mau gosto?
A avaliação de tão violenta reação se complica quando seus autores se declaram judeus e se referem a uma espécie de vulgarização do Holocausto. Ou as 600 mil mortes ocorridas no Brasil, que muitos acham ser um milhão, não podem ser comparadas com o genocídio praticado por Hitler? Ou, será, e parece ser isso, por que esse tipo de comparação prejudica a imagem do presidente Bolsonaro?
Neste caso, talvez valha uma referência também aos crimes ocorridos na época de Hitler. Comentando as atrocidades cometidas, a filósofa, politóloga e escritora judia Hannah Arendt desenvolveu a teoria filosófica da “Banalidade do Mal”, impressionada pela reação da figura de Adolf Eichmann aos seus crimes, no processo a ele feito em Jerusalém. Talvez, em um processo de Bolsonaro surja igualmente esse aspecto surpreendente do Mal. Em todo caso, é sabido que Bolsonaro evitou o debate nas eleições, para não mostrar às claras seu pensamento. Porém, os que convivem ou o apoiam durante esses quase três anos, sabem muito bem quais são suas ideias e porque muitos o qualificam de nazifascista. É o caso dos líderes evangélicos, mas igualmente de outros líderes que apoiam Bolsonaro e se inflamam contra os jornalistas não participantes das redes sociais financiadas em parte pelo governo, num plano de domínio da informação, que a mesma Isto É denunciou sobre o Goebbels do Planalto.
Vivemos um momento histórico decisivo, no qual o Senado tem a coragem de enfrentar o próprio presidente com a inculpação por homicídio. Histórico, mas perigoso, no qual não se pode ignorar e defender a liberdade de informação, como já foi tema na semana passada com o Prêmio da Paz para dois jornalistas. Não é necessário citar os nomes dos ofendidos com a capa, mas é importante citar o jornalista e comentarista Ricardo Kertzman, da Isto É, com uma frase englobando tudo: “O (des)governo Bolsonaro não é nazista e o “mito” não é Hitler. Contudo, ambos adotam práticas e posturas semelhantes ao nazismo, sim, senhor! Eu mesmo já escrevi a respeito, e nenhum judeu, à época, me encheu o saco.”
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.