O chefe da milícia da Zona Oeste do Rio de Janeiro, Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, não mandou incendiar na segunda-feira (23/10) 35 ônibus, quatro caminhões e um vagão de trem só para vingar a morte do seu sobrinho e vice-líder da milícia, Matheus da Silva Rezende, 24 anos, o Faustão, morto em confronto com a Polícia Civil. Ele armou toda a confusão, que custou alguns milhões de reais e um imenso transtorno para milhares de pessoas, para lembrar ao governador do Estado, Cláudio Castro (PL), e ao prefeito da cidade, Eduardo Paes (PSD), que ele manda na Zona Oeste da capital fluminense. E avisar ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, que é o dono do pedaço. E também anunciar aos candidatos a prefeito e vereador nas eleições de 2024 na Região Metropolitana do Rio que já está negociando os votos do seu feudo eleitoral.
Esse é o assunto sobre o qual vamos conversar. Mas antes vamos seguir a regra de ouro do jornalismo e contextualizar o assunto para melhor informar ao leitor e facilitar o trabalho dos jovens repórteres, em especial do interior do Brasil, que trabalham na cobertura do dia a dia das redações. O Rio de Janeiro é o berço do crime organizado no Brasil. Nasceu com o jogo do bicho, um sistema de jogatina ilegal que tinha capilaridade em todos os cantos do Estado. E seus dirigentes, os bicheiros, lavavam o dinheiro financiando desfiles das escolas de samba no Carnaval, clubes de futebol e outros eventos. Os bicheiros foram substituídos pelos traficantes de drogas, que montaram as facções, sendo que a mais famosa e eficiente é o Comando Vermelho (CV), que controla os presídios e o tráfico de cocaína e armas de países vizinhos, principalmente Paraguai e Colômbia, para o Brasil. Aqui é importante prestar atenção ao seguinte. Os bicheiros e os traficantes conseguem acesso aos policiais e outros funcionários públicos pagando, a famosa corrupção. As milícias nasceram com outra lógica. Foram gestadas entre policiais civis e militares aposentados que se uniram para se proteger dos traficantes. Com a adesão de policiais da ativa, as milícias se organizaram, expandiram e diversificaram os negócios. Inicialmente, operavam com o transporte clandestino de vans, depois com a venda de gás e serviços, como a “gatonet” (TV a cabo e internet piratas), a construção de condomínios ilegais e, por último, se associaram ao tráfico de drogas. Diferentemente dos bicheiros e traficantes, os milicianos não precisam corromper os policiais e outros servidores públicos porque eles próprios são funcionários do Estado. O que significa que têm acesso a informações privilegiadas sobre os cidadãos. Esse detalhe em particular colocou as milícias entre as organizações criminosas mais eficientes do mundo. Vou citar um exemplo. O miliciano Faustão, morto em confronto com a polícia, na segunda-feira (23/10), estava trocando tiros com os agentes utilizando a pistola do terceiro-sargento Bruno Bento do Nascimento, do Batalhão de Choque da Polícia Militar. O sargento foi preso, enquanto os policiais investigam como a arma foi parar nas mãos de Faustão.
Termino a contextualização da nossa conversa citando as fontes com as quais obtive esses dados: reportagens que fiz quando estive no Rio trabalhando nas favelas, pesquisas de documentos, anotações de organizações como a Fogo Cruzado e livros, entre eles o escrito pelo pesquisador, professor e jornalista Bruno Paes Manso chamado A República das Milícias – Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. Um livro cuja leitura recomendei no post de 31 de outubro de 2020 chamado Mergulho nas entranhas das milícias do Rio, inimigo público número um do Brasil. Dito isso, vamos passar para a próxima fase da nossa conversa. Ao contrário dos traficantes e outros bandidos, os milicianos dominam como ninguém as comunidades onde se estabelecem porque fornecem serviços (transporte, TV e internet), produtos (gás e moradias) e, claro, homens armados até os dentes, que se encarregam de proteger o território. Isso torna o morador local um refém das milícias, portanto, vulnerável a ser pressionado a votar em quem mandarem. Trocando em miúdos: os moradores se tornam um feudo eleitoral do chefe da milícia. Esse feudo eleitoral tanto pode ser negociado com os candidatos em troca de favores como pode ser usado para eleger candidatos milicianos. É assim que funciona. Um exemplo do que estou falando. Nas últimas eleições presidenciais, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) era apoiado na Zona Oeste do Rio de Janeiro pelos pastores evangélicos e milicianos. Bolsonaro fez 58,24% dos votos na região e Lula, 33,42%, uma diferença de 24,82%. Sendo que no restante do Estado do Rio a diferença foi de 4% em favor do ex-presidente. O fato é o seguinte: o poder das milícias de influenciar nas eleições é real. Especialmente nas eleições municipais. Lembro que dois filmes, Tropa de Elite e Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro, tratam da influência dos milicianos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Claro que se trata de uma ficção. Mas o roteiro foi baseado em notícias dos jornais e em dados da CPI das Milícias da Alerj, de 2008, presidida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo, que indiciou 225 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. O relatório final está disponível para leitura na internet.
Outro ponto importante para entender a diferença entre as milícias, os bicheiros e as quadrilhas de traficantes. A milícia não pertence a uma família. O mais forte e articulado toma o poder e, caso seja morto, será imediatamente substituído por outro. Hoje, a milícia se perfila entre as organizações criminosas mais eficientes do mundo. Esse é um dos motivos pelos quais tenho afirmado que as milícias não são um problema do Rio de Janeiro, mas do Brasil. Uma historinha para terminar a nossa conversa. Na queima dos ônibus, caminhões e do vagão de trem foram presas 12 pessoas. Seis foram libertadas por falta de provas. As outras seis foram contratadas para “fazer o serviço”, não têm ligações profundas com a milícia. Há comentaristas políticos tentando comparar a queima dos veículos com a destruição causada pelos bolsonaristas radicalizados no dia 8 de janeiro nos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). São coisas diferentes: os bolsonaristas radicalizados agiram acreditando que conseguiriam dar um golpe de estado. Os contratados para colocar fogo nos veículos o fizeram em troca de pagamento. Nos dois episódios, os investigadores da Polícia Federal (PF) estão rastreando o caminho percorrido pelo dinheiro do financiador até as mãos dos executores. Os caminhos que essas duas investigações estão percorrendo podem revelar surpresas.
Reportagem publicada originalmente em “Histórias Mal Contadas”.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.