Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“1. O cor­reio dos lei­to­res traz-me com frequên­cia ques­tões a que mui­tos atri­bui­rão menor impor­tân­cia, mas que são reve­la­do­ras da aten­ção aos valo­res e regras do jor­na­lismo pro­fis­si­o­nal e às nor­mas de estilo e cri­té­rios edi­to­ri­ais deste jor­nal em par­ti­cu­lar. São mui­tas vezes temas recor­ren­tes, deba­ti­dos no quo­ti­di­ano das redac­ções, e que valerá a pena tra­zer ao diá­logo com os leitores.

Um deles é o do cha­mado “direito ao nome”. Todas as pes­soas têm direito a ser tra­ta­das pelo seu nome e não pelo nome que outros quei­ram dar-lhes. O mesmo para orga­ni­za­ções e colec­ti­vi­da­des. Sucede que nem sem­pre é fácil cum­prir este pre­ceito nos jor­nais. Veja-se o caso dos lei­to­res que têm pro­tes­tado con­tra o facto de a ins­ti­tui­ção des­por­tiva Vitó­ria Sport Clube ser fre­quen­te­mente desig­nada, no PÚBLICO e em outros órgãos de comu­ni­ca­ção, como “o Gui­ma­rães”. “Não há nenhum clube cha­mado Gui­ma­rães. O nome é Vitó­ria” — mais pala­vra, menos pala­vra, é o argu­mento comum às men­sa­gens que recebo sobre o tema.

O lei­tor Rui Cor­reia, por exem­plo, queixa-se nes­tes ter­mos do que con­si­dera ser uma “falta de rigor”: “Gui­ma­rães (…) é a cidade onde joga o Vitó­ria SC! (…) Tra­tem as ins­ti­tui­ções de igual forma e não inven­tem nomes ou ape­li­dos. Se dis­se­rem Vitó­ria de Gui­ma­rães, embora não seja o nome cor­recto, pelo menos referem-se ao Vitó­ria da cidade de Gui­ma­rães. Agora, reti­ra­rem o ‘Vitó­ria’ do nome (…) é um des­res­peito total para com a ins­ti­tui­ção, adep­tos e simpatizantes!”.

Jorge Miguel Matias, edi­tor do Des­porto, con­si­dera “impra­ti­cá­vel iden­ti­fi­car o Vitó­ria Sport Clube” pelo seu nome ofi­cial, “não só pela exten­são da desig­na­ção, como tam­bém pelo facto de o clube ser mui­tís­simo mais conhe­cido por Vitó­ria de Gui­ma­rães”. Se a isto se pode­ria objec­tar que não será neces­sa­ri­a­mente assim que o clube é “conhe­cido” pelos seus pró­prios sócios, o certo é que há que pesar outras razões. Como esta: “Existe tam­bém a com­pe­tir na I Liga o Vitó­ria Fute­bol Clube (habi­tu­al­mente desig­nado por Vitó­ria de Setú­bal), a quem se aplica o mesmo cri­té­rio. A exis­tên­cia de dois ‘Vitó­rias’ invi­a­bi­liza que se designe qual­quer um deles exclu­si­va­mente pelo pri­meiro nome, sob pena de con­fu­são generalizada”.

“Nas clas­si­fi­ca­ções, quer no site, quer na edi­ção impressa”, explica o edi­tor, “consta o nome do clube como V. Gui­ma­rães, tal como acon­tece nas fichas de jogo. Por vezes, por limi­ta­ções grá­fi­cas, torna-se muito difí­cil uti­li­zar por extenso a expres­são ‘Vitó­ria de Gui­ma­rães’ (por exem­plo, em títu­los a uma coluna). Nes­tes casos, opta­mos pela fór­mula abre­vi­ada V. Gui­ma­rães. Quando não há alter­na­tiva, jul­ga­mos pre­fe­rí­vel desig­nar o clube sim­ples­mente por Gui­ma­rães e não sim­ples­mente por Vitó­ria, tendo em conta que Gui­ma­rães não cau­sará qual­quer dúvida para o lei­tor, enquanto Vitó­ria dei­xará sem­pre a hipó­tese de se estar a falar, por exem­plo, do Vitó­ria… de Setúbal”.

Creio que mesmo os lei­to­res mais cio­sos da sua iden­ti­dade clu­bís­tica con­cor­da­rão com a sen­sa­tez desta expli­ca­ção, que pri­vi­le­gia a cla­reza na comu­ni­ca­ção e não denota falta de rigor, tendo em conta que o Vitó­ria Sport Clube é, até no plano esta­tu­tá­rio, um clube de Gui­ma­rães. Este é um caso em que fazer pre­va­le­cer uma con­cep­ção rígida do “direito ao nome” sobre outras con­si­de­ra­ções não pas­sa­ria de um for­ma­lismo sem sen­tido útil. O que não quer dizer que não deva ser tida em conta a sen­si­bi­li­dade dos lei­to­res em ques­tão, pro­cu­rando evitar-se as situ­a­ções em que nem a ini­cial do seu ver­da­deiro nome apa­rece a desig­nar o clube.

2. Caso dife­rente é o do direito de qual­quer pes­soa a não ver o seu nome tro­cado, por exem­plo, por uma alcu­nha. Essa é uma prá­tica comum de alguma imprensa, espe­ci­al­mente no que res­peita à iden­ti­fi­ca­ção de indi­ví­duos a con­tas com a jus­tiça, e deve ser con­tra­ri­ada. Trata-se mui­tas vezes de desig­na­ções depre­ci­a­ti­vas colhi­das em autos poli­ci­ais e que des­res­pei­tam a dig­ni­dade indi­vi­dual. O Livro de Estilo doPÚBLICO desa­con­se­lha, e bem, a sua uti­li­za­ção, com excep­ção de casos em que se revele “essen­cial” para a carac­te­ri­za­ção de uma personagem.

A pro­pó­sito dos títu­los e tex­tos sobre o jul­ga­mento, em Tor­res Vedras, de um indi­ví­duo acu­sado de ter assas­si­nado qua­tro pes­soas, a lei­tora Ana Aguiar escreve que “não parece ade­quado usar o nome pelo qual um diag­nos­ti­cado psi­co­pata se auto-intitula”. No caso, “Ghob, rei dos gno­mos”. “O senhor tem um nome civil, como todos nós, e não vejo razão para um jor­nal com ambi­ção de seri­e­dade usar um pseu­dó­nimo auto-atribuído numa notí­cia que deve­ria ser séria e impar­cial”, diz a lei­tora, refe­rindo uma peça recente do Público Online.

Deve esta situ­a­ção ser enqua­drada na ori­en­ta­ção acima refe­rida, con­trá­ria à subs­ti­tui­ção de nomes por alcu­nhas? Não neces­sa­ri­a­mente. Pelo que tem sido noti­ci­ado, o nome “Ghob” seria assu­mido pelo pró­prio sus­peito dos cri­mes, no âmbito de um cír­culo de rela­ções que foi inves­ti­gado, e resul­ta­ria da crença, ou da mani­pu­la­ção da crença num uni­verso mís­tico de gno­mos e enti­da­des con­gé­ne­res, que poderá ser rele­vante para a expli­ca­ção dos cri­mes que estão a ser jul­ga­dos. Referi-lo não põe em causa a seri­e­dade nem a impar­ci­a­li­dade e poderá ser impor­tante para a carac­te­ri­za­ção da per­so­na­gem e a com­pre­en­são do caso.

Ainda assim, o dese­já­vel dis­tan­ci­a­mento jor­na­lís­tico acon­se­lhará sem­pre alguma con­ten­ção no recurso a desig­na­ções como esta. Con­cordo com a lei­tora, quando refere: “Se a opção edi­to­rial for a de usar o pseu­dó­nimo, creio ser apro­pri­ado o uso de aspas”. Para dis­tin­guir a iden­ti­dade civil, que deve ser sem­pre res­pei­tada, de uma auto-representação imaginária.

3. O recurso des­ne­ces­sá­rio a ter­mos estran­gei­ros con­ti­nua a desa­gra­dar a mui­tos lei­to­res. Na maior parte das vezes, com razão. Antó­nio Barata leu uma notí­cia inti­tu­lada “Tri­bu­nal chum­bou con­ces­são no porto de Aveiro rea­li­zada sem con­curso público” (edi­ção on line, no pas­sado dia 20) e deteve-se na frase em que se expli­cava que deter­mi­na­das empre­sas “são os gran­des players do movi­mento de carga nos por­tos naci­o­nais”. Per­gunta o lei­tor, e per­gunta bem, “se o mesmo não pode­ria ser dito em por­tu­guês ou se existe uma outra qual­quer razão” para o recurso ao termo inglês.

A mesma ques­tão pode­ria ser colo­cada, por exem­plo, em rela­ção ao uso, que se tor­nou fre­quente, do termo default em títu­los e tex­tos sobre a actual crise finan­ceira, mui­tas vezes sem qual­quer expli­ca­ção suple­men­tar. Veja-se (é só um exem­plo) o título “Default grego faz subir juros da dívida naci­o­nal”, que na pri­meira página da edi­ção do pas­sado dia 18 reme­tia (mais uma desa­ten­ção) para uma estra­nha “Sec­ção, 00″. Nem na capa nem na página 13, onde se encon­trava a peça mal sina­li­zada, a expres­são era tra­du­zida ou expli­cada. Nas pági­nas de Eco­no­mia do jor­nal, a tra­du­ção de ter­mos como este é por vezes feita, entre parên­te­ses. Mas não é feita sem­pre, e cada omis­são repre­senta uma falha na cla­reza da comunicação.

“Será que os jor­na­lis­tas”, per­gunta o lei­tor, ” (…) se limi­tam a debi­tar o que ouvem e que está mais na moda, e não se pre­o­cu­pam sequer em tra­du­zir, de modo a que qual­quer lei­tor per­ceba?”. Na ver­dade, para os exem­plos cita­dos, a ques­tão da tra­du­ção nem deve­ria colocar-se. Tanto para players como paradefault exis­tem pala­vras por­tu­gue­sas de uso comum, com o mesmo e pre­ciso sig­ni­fi­cado. Se é ver­dade que em tem­pos de glo­ba­li­za­ção o recurso a vocá­bu­los estran­gei­ros se torna por vezes ine­vi­tá­vel — por falta de termo por­tu­guês cor­res­pon­dente, por exi­gên­cia de pre­ci­são, ou por sur­gi­rem em dis­curso directo —, esses ter­mos devem ser gra­fa­dos em itá­lico, o que nem sem­pre acon­tece, e ser acom­pa­nha­dos, con­forme os casos, de expli­ca­ção ou tra­du­ção. O con­trá­rio não é sin­toma de cos­mo­po­li­tismo, mas de desleixo.

Já agora, recomenda-se maior cui­dado com a redac­ção de notí­cias que repro­du­zem, sem o assi­na­lar, tex­tos de fon­tes noti­ci­o­sas estran­gei­ras. Para que da sua tra­du­ção apres­sada não resul­tem des­li­zes como o que a lei­tora Alda Nobre detec­tou nas pági­nas de Des­porto do dia 5 deste mês, onde se pode ler que o guarda-redes de um clube inglês mar­cou um golo, sendo “o quarto a fazê-lo, depois de Peter Sch­mei­chel, Brad Fri­e­del and Paul Robin­son…”.

4. Há outras pala­vras, essas bem por­tu­gue­sas, que todos ganha­ría­mos em ver afas­ta­das de alguns títu­los infor­ma­ti­vos. Uma delas, que têm vindo a propagar-se de modo epi­dé­mico, sem cui­dar sequer de se apre­sen­tar como figura de estilo, antes pro­cu­rando impor-se num desa­de­quado sen­tido lite­ral, é o mal­fa­dado verbo “arra­sar”. “BE arrasa pro­jec­tos do PS e do PSD sobre mater­ni­dade de subs­ti­tui­ção” foi o título des­ta­cado esco­lhido no pas­sado dia 20 para uma notí­cia das acti­vi­da­des par­la­men­ta­res da vés­pera. É só um exem­plo, mas foi o que levou o lei­tor Miguel Aze­vedo a pro­tes­tar: “Mais uma vez opi­nião. Por mim pre­fe­ria que a jor­na­lista me desse os fac­tos e me dei­xasse a mim a tarefa de deci­dir quem arra­sou quem”.

Diga-se que a notí­cia em causa relata os fac­tos e não recorre ao tre­men­dismo do verbo em ques­tão. O título — que pode ou não ser da auto­ria de quem escre­veu a peça, mas é sem­pre, em última aná­lise, da res­pon­sa­bi­li­dade de um edi­tor — é que des­fi­gura o relato noti­ci­oso, assu­mindo uma natu­reza opi­na­tiva des­lo­cada e cen­su­rá­vel. Não está em causa a opi­nião, mas o lugar onde se expressa. A demar­ca­ção clara entre infor­ma­ção e opi­nião é um traço essen­cial do pro­jecto edi­to­rial do PÚBLICO e deve tam­bém ser enten­dida como uma demons­tra­ção de res­peito pela inte­li­gên­cia dos leitores.”