Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Susana Singer

“Depois de uma noitada em um cruzeiro de luxo na Flórida, um universitário brasileiro, sem antecedentes criminais, é acusado de estupro por uma adolescente americana.

No início de uma manhã, um rapaz de classe média alta sai armado de sua casa em Cotia (SP), rouba quatro carros, atira a esmo, fere duas pessoas e desaparece.

Duas histórias esquisitas, dois personagens que mereceram tratamentos diferentes na Folha. O primeiro acusado teve seu nome revelado desde o primeiro momento, em 6 de janeiro, apesar de sua versão sobre o que ocorreu na cabine do Allure of the Seas não ser conhecida. O segundo acusado não foi identificado no jornal do dia seguinte (10/01), mesmo não havendo dúvida de que ele cometera os crimes.

O jornal justificou o anonimato do franco-atirador dizendo atender a um pedido da família, que alegava que ele poderia estar sob ordens de um sequestrador. Não havia nenhuma pista nesse sentido nem o repórter parece ter acreditado, já que o texto começava com ‘num dia de fúria, um homem…’

‘A Folha foi excessivamente conservadora. Não havia consistência na versão do sequestro. A família queria preservá-lo e o jornal foi condescendente’, criticou o leitor João Villalva, 55, consultor.

O também consultor Wendell Matos, 37, notou que só a Folha escondeu o nome do homem. ‘A sensação que passa é a de que o jornal não tem certeza da informação ou que privilegia camadas mais ricas da população por medo de sofrer um processo judicial’, escreveu.

Se fosse consideração pelos ricos, o jovem do cruzeiro teria sido poupado. E também a dona da pizzaria na Vila Mariana (zona sul de São Paulo) onde teria ocorrido um caso de racismo. Presa por manter comida vencida na cozinha, no último dia 19, teve seu nome mencionado, sem nenhum ‘outro lado’.

O que dá para notar é uma falta de coerência na decisão de preservar ou não a identidade de acusados. O princípio na Folha é publicar o nome de suspeitos e presos, a não ser que apareçam ‘circunstâncias estranhas, que levantem dúvidas sobre a apuração policial’, esclarece a Secretaria de Redação.

O ‘Agora’, jornal da mesma empresa, é mais rigoroso. ‘Quando não há outro lado, damos apenas as iniciais da pessoa. É uma forma de pressionar os repórteres a buscar um contraponto, não ficar só com a versão da polícia’, explica Nilson Camargo, editor-responsável.

Um comunicado da Secretaria de Redação da Folha, divulgado há 15 dias, tenta criar uma diretriz para os crimes sexuais. A recomendação é discutir os casos com a chefia, levando em consideração se há: 1) a versão do acusado; 2) flagrante policial; 3) provas materiais; 4) testemunha ou mais de uma fonte; 5) o nome de quem acusa.

Por que o tratamento especial para supostos estupradores, pedófilos ou abusadores? ‘Por ser um assunto que envolve a intimidade das pessoas e de grande dificuldade de verificação das versões. Normalmente, não há testemunha e a polícia nem mesmo divulga o nome do acusador, o que, embora compreensível, prejudica a apuração’, explica a Secretaria de Redação.

Apesar de positiva, a tentativa de colocar parâmetros objetivos nessa discussão é só um remendo. Omitir nomes passa a impressão de proteção a transgressores; identificá-los implica, na era do Google, criar uma nódoa permanente na reputação da pessoa.

A variedade de situações é tamanha que talvez seja impossível criar regra única, mas é preciso perseguir a coerência e deixar sempre claro para o leitor o porquê de cada decisão. Quando se conclui por publicar ou não o nome de um acusado, é porque, na verdade, ele já passou por um julgamento – o da Redação.”