Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“Este jor­nal divul­gou na edi­ção do pas­sado dia 24 de Janeiro uma notí­cia que viria a ser des­men­tida dois dias depois. Sob o título ‘Assun­ção Este­ves omite no TC con­tas ban­cá­rias’, afirmava-se nesse texto que ‘nenhuma das decla­ra­ções de ren­di­men­tos que a actual pre­si­dente da Assem­bleia da Repú­blica entre­gou no Tri­bu­nal Cons­ti­tu­ci­o­nal desde 1998 con­tém infor­ma­ções sobre as suas con­tas ban­cá­rias, como é exi­gido taxa­ti­va­mente pela lei’. Especificava-se que a ale­gada omis­são abran­gia qual­quer tipo de con­tas bancárias,’a prazo ou à ordem’. A ser ver­dade o que se escre­veu, esta­ría­mos perante uma situ­a­ção grave de incum­pri­mento da lei pela segunda figura do Estado, alguém que, como se recor­dava repe­ti­da­mente no texto, fora já ‘juíza con­se­lheira do pró­prio TC’.

Acon­tece que não era ver­dade. No dia 26, o PÚBLICO aco­lhia, ao abrigo do direito de res­posta, uma nota do gabi­nete de Assun­ção Este­ves, na qual se expli­cava que a pre­si­dente do Par­la­mento ‘não omi­tiu, nas suas decla­ra­ções ao TC, con­tas a prazo, por­que sim­ples­mente não é titu­lar de nenhuma’, e tam­bém ‘não omi­tiu (…) infor­ma­ção rela­tiva às suas con­tas à ordem, por­que essa infor­ma­ção só é exi­gida por lei quando essas con­tas são de valor supe­rior a 50 salá­rios míni­mos’ e as suas con­tas ‘nunca atin­gi­ram esse mon­tante, por serem todos os meses dre­na­das para o paga­mento de emprés­ti­mos’. A nota de res­posta escla­re­cia ainda que, antes de 2010, a decla­ra­ção de con­tas à ordem, qual­quer que fosse o seu valor, não era sequer exi­gida, e por isso estas ‘nunca figu­ra­ram’ nas suas decla­ra­ções mais anti­gas. E con­cluía, com razão, que o jor­nal publi­cara ‘infor­ma­ção falsa, que induz os lei­to­res em erro’.

Pelo que apu­rei, o PÚBLICO conformou-se com o teor do des­men­tido e por isso não vol­tou ao assunto. Mas não reco­nhe­ceu o erro com cla­reza na Nota da Direc­ção que a 26 de Janeiro foi publi­cada junto à res­posta do gabi­nete de Assun­ção Este­ves, nem apre­sen­tou des­cul­pas pela acu­sa­ção infun­da­men­tada que fizera. O que é sem­pre cen­su­rá­vel e pode objec­ti­va­mente ser lido como uma forma de con­ti­nuar a indu­zir em erro os lei­to­res, dei­xando a pai­rar a dúvida sobre a lisura de pro­ce­di­men­tos da visada, que erra­da­mente questionara.

Con­vém fri­sar que Assun­ção Este­ves, con­tra­ri­a­mente ao que seria de espe­rar, não foi ouvida sobre a maté­ria antes da publi­ca­ção da notí­cia. No último pará­grafo do texto que viria a ser des­men­tido, a sua autora, a jor­na­lista Maria Lopes, asse­gu­rava que o jor­nal ‘ques­ti­o­nou’ a pre­si­dente da AR, tendo o seu gabi­nete infor­mado que ‘não seria pos­sí­vel res­pon­der durante o dia de ontem [2ªfeira, 23de Janeiro]’. Tam­bém esta afir­ma­ção foi con­tra­ri­ada ao abrigo do direito de res­posta. Segundo o refe­rido gabi­nete, oPÚBLICO não mani­fes­tou ‘inte­resse em con­tac­tar direc­ta­mente com a pre­si­dente’, ape­sar de esse con­tacto ter sido ‘dis­po­ni­bi­li­zado’ às 22h00 do dia 23. Na nota que publi­cou a 26, a direc­ção do jor­nal, reco­nhe­cendo que ‘a asses­sora da pre­si­dente da Assem­bleia da Repú­blica entrou em con­tacto com a jor­na­lista às 22h00’ da vés­pera da publi­ca­ção da notí­cia, argu­men­tou que nessa altura ‘a página já estava fechada, não sendo pos­sí­vel intro­du­zir qual­quer alteração’.

A expli­ca­ção não me parece defen­sá­vel. Pro­cu­rei inves­ti­gar o pro­cesso de pro­du­ção da notí­cia, e passo a resu­mir o que pude apu­rar. As decla­ra­ções de ren­di­men­tos de Assun­ção Este­ves foram con­sul­ta­das na redac­ção do PÚBLICO, tendo a jor­na­lista e a sua edi­tora con­cluído, à luz de uma inter­pre­ta­ção erró­nea da legis­la­ção, que a pre­si­dente da AR não cum­prira as suas obri­ga­ções legais. Dessa con­clu­são deci­di­ram fazer uma notí­cia. O modo como a par­tir daí foi ou não pro­cu­rado o indis­pen­sá­vel con­tra­di­tó­rio — e na minha opi­nião não o foi, pelo menos com o esforço exi­gí­vel — é um exem­plo de prá­ti­cas jor­na­lís­ti­cas no mínimo duvidosas.

De acordo com uma cro­no­lo­gia docu­men­tada dos fac­tos que pude obter junto do gabi­nete da pre­si­dente daAR, um pri­meiro con­tacto do PÚBLICO foi feito às 17h28 do dia 23, atra­vés de uma men­sa­gem de cor­reio elec­tró­nico que Maria Lopes fez che­gar a um ende­reço des­ti­nado naquele gabi­nete ao cor­reio dos cida­dãos, uti­li­zado dia­ri­a­mente por um grande número de pes­soas que escre­vem à pre­si­dente da Assem­bleia sobre os mais diver­sos temas. Nessa men­sa­gem, a jor­na­lista pedia a Assun­ção Este­ves para ‘cla­ri­fi­car a razão’ pela qual não decla­rara ao TC ‘quais­quer con­tas ban­cá­rias a prazo ou à ordem’. E acres­cen­tava: ‘Estou a escre­ver o artigo para publi­car ama­nhã’. Cerca de dez minu­tos mais tarde, a jor­na­lista con­tac­tou tele­fo­ni­ca­mente o secre­ta­ri­ado do gabi­nete, a pedido do qual reen­viou a sua men­sa­gem para o ende­reço ade­quado, às 17h41. Seguiu-se novo tele­fo­nema, tendo a secre­tá­ria infor­mado, segundo me foi expli­cado, que ‘iria ten­tar entrar em con­tacto com a asses­sora de imprensa ou com a pró­pria presidente’.

Quando, algu­mas horas depois, a refe­rida asses­sora — que, tal como a pre­si­dente, não foi entre­tanto pes­so­al­mente con­tac­tada pelo jor­nal — infor­mou Assun­ção Este­ves do pedido feito pelo PÚBLICO, rece­beu da pre­si­dente da AR a indi­ca­ção de que a jor­na­lista pode­ria contactá-la direc­ta­mente, para escla­re­cer a ques­tão colo­cada. Segundo me expli­cou, foi isso mesmo que trans­mi­tiu à jor­na­lista pelas 22h00, tendo rece­bido a res­posta de que ‘já era tarde’ para o fazer nesse dia, pois ‘já tinha saído da redac­ção’. Em men­sa­gem que me fez che­gar no pas­sado dia 3, Maria Lopes sus­tenta neste ponto uma ver­são dife­rente: ‘Expli­quei que àquela hora a página já estava fechada há quase uma hora e que me era impos­sí­vel mudar alguma coisa. A asses­sora não disse que a pre­si­dente estava dis­po­ní­vel para falar naquela altura’. Por mim, registo que a infor­ma­ção sobre a dis­po­ni­bi­li­dade de Assun­ção Este­ves para ser ouvida ainda no dia 23 consta do texto publi­cado a 26 ao abrigo do direito de res­posta, e não foi então con­tra­di­tada na nota da direc­ção do jornal.

Quem tenha tido a paci­ên­cia de seguir até aqui a recons­ti­tui­ção do pro­cesso de pro­du­ção da notí­cia terá já com­pre­en­dido como, por trás de um caso de má infor­ma­ção (para dizer o mínimo) estão sem­pre falhas mais ou menos gra­ves no plano dos pro­ce­di­men­tos pro­fis­si­o­nais. Neste caso, exis­tiu em pri­meiro lugar o erro de dar por certa uma lei­tura errada do regime legal em vigor sobre o con­trolo público dos ren­di­men­tos dos titu­la­res de car­gos públi­cos. Essa lei­tura deve­ria ter sido ques­ti­o­nada em tempo útil. Como reco­nhece a edi­tora de Polí­tica, Leo­nete Bote­lho, ‘nem os juris­tas por nós con­sul­ta­dos a pos­te­ri­ori, nem mesmo o Tri­bu­nal Cons­ti­tu­ci­o­nal’ cor­ro­bo­ram a lei­tura do arti­cu­lado legal que foi feita na redac­ção do PÚBLICO. ‘Este caso’, con­clui a edi­tora, ‘recorda-nos que a inter­pre­ta­ção das leis deve ser tes­tada melhor pelos jor­na­lis­tas antes de dar por adqui­rida qual­quer inter­pre­ta­ção feita na pres­são noti­ci­osa do dia’.

A refe­rên­cia à ‘pres­são noti­ci­osa’, aqui refe­rida com pro­pó­sito, é no entanto dema­si­a­das vezes invo­cada para ten­tar jus­ti­fi­car erros na ver­dade injus­ti­fi­cá­veis, como os que foram come­ti­dos na ela­bo­ra­ção e divul­ga­ção desta notí­cia. Nas expli­ca­ções que recebi, surge na conhe­cida moda­li­dade da ‘pres­são do fecho’ do jor­nal. Por mim, acon­se­lho os lei­to­res a enca­ra­rem sem­pre com algum cep­ti­cismo o recurso fre­quente a jus­ti­fi­ca­ções do tipo ‘a página já estava fechada’.

Neste caso, o que acon­te­ceu foi que se avan­çou para a publi­ca­ção de uma notí­cia sem que tenham sido efec­tu­a­das todas as dili­gên­cias neces­sá­rias e ade­qua­das para a sua con­fir­ma­ção ou para asse­gu­rar o con­tra­di­tó­rio. Pior, o PÚBLICO teve a pos­si­bi­li­dade de ouvir a pes­soa visada por uma acu­sa­ção e não o fez. Se o tivesse feito, a jor­na­lista teria even­tu­al­mente com­pre­en­dido que o texto que já escre­vera não cor­res­pon­dia à ver­dade, ou, pelo menos, teria motivo para fun­da­das dúvi­das sobre se deve­ria ser publi­cado nos ter­mos em que o redi­gira, e para par­ti­lhar essas dúvi­das com os res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais que já tinham a página ‘fechada’. O atraso resul­tante de a rea­brir — para alte­rar o texto ou, mais pru­den­te­mente, para adiar a sua publi­ca­ção — seria sem­pre pre­fe­rí­vel a um desmentido.

Não se com­pre­ende, aliás, que urgên­cia pode­ria jus­ti­fi­car que tivesse de ser publi­cada pre­ci­sa­mente naquela data, com sacri­fí­cio das regras pro­fis­si­o­nais e sem espe­rar por uma expli­ca­ção que fora pedida, uma notí­cia que — erros de inter­pre­ta­ção à parte — se limi­tava a divul­gar dados que são de acesso público, e que se encon­tra­vam à dis­po­si­ção de qual­quer inte­res­sado. E não é acei­tá­vel que o PÚBLICOale­gue que vai ‘publi­car ama­nhã’ uma notí­cia para ten­tar impor seja a quem for um prazo de pou­cas horas para obter uma res­posta, inde­pen­den­te­mente da sua dis­po­ni­bi­li­dade, pri­o­ri­da­des e até do tempo razoá­vel para con­sul­tar docu­men­ta­ção res­pei­tante a mais de uma década. Não é sério e não é, a meu ver, um modo leal de fazer jornalismo.

Este tipo de pro­ce­di­men­tos pro­voca sem­pre estra­gos. Antes de mais, a quem é visado por acu­sa­ções infun­da­das, que os des­men­ti­dos nunca podem total­mente repa­rar. Como nota Assun­ção Este­ves, num comen­tá­rio que me fez che­gar (ver em blogues.publico.pt/provedordoleitor),’como nos aci­den­tes com crude no mar, há sem­pre uma parte da man­cha polu­ente que não con­se­gue ser reco­lhida, e fica a semear os seus danos’. Pio­res ainda, na pers­pec­tiva de um jor­nal, são os estra­gos auto-infligidos, na medida em que pre­ju­di­cam, para vol­tar a citar a pre­si­dente da Assem­bleia da Repú­blica, ‘o legí­timo e neces­sá­rio papel de vigi­lân­cia de uma imprensa livre, con­tra os abu­sos e as ile­ga­li­da­des de quem, na vida pública, possa abu­sar da con­fi­ança que nas suas mãos foi depo­si­tada’. Casos como este con­tri­buem, de facto, para des­cre­di­bi­li­zar o indis­pen­sá­vel escru­tí­nio jor­na­lís­tico sobre o cum­pri­mento de obri­ga­ções legais por parte de titu­la­res de car­gos públicos.”