Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“No passado dia 3, este jornal surpreendeu os seus leitores com a manchete ‘Vasco Graça Moura dá ordem a serviços do CCB para não aplicarem Acordo Ortográfico’. O destaque dado à notícia, que reavivou de imediato a polémica em torno das novas normas ortográficas, foi objecto de um protesto do leitor Sebastião Lima Rego, desaprovando a sua escolha para título principal do PÚBLICO nessa sexta-feira. Na sua opinião, tratava-se de um ‘tema anódino, lateral, afinal desinteressante, para capa do jornal’, isto ‘num dia que tinha a crise, sempre a crise, a privatização de 40 por cento da REN, a greve dos transportes na véspera, o massacre do estádio de Port Said, etc.’.

Lima Rego, que integrou a extinta Alta Autoridade para a Comunicação Social, considera que a manchete em causa ‘não representa (…) em rigor uma informação, mas sim uma estocada duma refrega, uma bala duma batalha’, na medida em que, segundo argumenta, ‘em várias peças da edição de 3 de Fevereiro, inclusive no editorial, o PÚBLICO ataca deliberadamente, insistentemente, militantemente, o Acordo Ortográfico’.

Registe-se que as outras peças relacionadas com o tema da manchete eram, nessa edição, um artigo de opinião, de posição contrária ao acordo, e uma nota da secção ‘Sobe e desce’, na última página, em que uma fotografia de Graça Moura era acompanhada de uma seta ascendente, com a posição do novo presidente do Centro Cultural de Belém a ser considerada ‘digna de aplauso’. No plano informativo, e na mesma página da notícia sobre a decisão de Graça Moura, um texto mais curto noticiava uma iniciativa parlamentar favorável à eventual suspensão da aplicação do Acordo Ortográfico (AO), da autoria do ex-presidente do governo dos Açores, Mota Amaral, e de dois outros deputados do PSD.

Admitindo que ‘todo o jornal tem direito à opinião (…), desde que separada da informação’, e afirmando que ‘misturar o esclarecimento com a disputa é uma das piores pechas do jornalismo’, Lima Rego diz que esperava do PÚBLICO ‘outro tipo decomportamento’, e solicita-me que ‘avalie’o caso ‘do ponto de vista da deontologia e curialidade editoriais’. Assim farei, não sem antes dar a conhecer, em contraponto à sua crítica, os esclarecimentos que o responsável pelo fecho dessa edição do jornal, o director adjunto Nuno Pacheco, me remeteu sobre a escolha da manchete.

Notando que o jornal obteve ‘na tarde de quinta-feira’, dia 2, a informação de que Graça Moura tinha mandado suspender a aplicação do AO no CCB, Nuno Pacheco explica a decisão tomada: ‘Deveu-se essencialmente ao ineditismo do facto: a não aplicação do AO (…) não tem nada de extraordinário, porque sucede em diversas instituições, mas voltar atrás, ou seja, cancelar a aplicação do AO num organismo que já o aplicava’, foi ‘um acto inédito e sem precedentes’, tendo para mais ocorrido ‘na mesma semana em que três deputados pelos Açores (…) tinham divulgado uma posição bastante crítica e desafiadora sobre o AO’. Defende, por isso que foi ‘pertinente’o destaque dado ao tema, sublinhando que ‘na manhã seguinte, na capa do PÚBLICO, era essa a notícia com maior grau de novidade e ineditismo, sem minimizar a importância de tudo o resto’.

Sobre as outras peças relacionadas com o AO na mesma edição, o director adjunto salienta que a notícia ‘foi tema de editorial porque, a um jornal que desde o início se opõe (com argumentos) ao acordo, era impossível manter o silêncio’face ao sucedido, e que Graça Moura ‘teve direito a seta ascendente no Sobe e Desce’porque ‘demonstrou coragem e coerência’. Quanto ao artigo de opinião publicado nessa data, ‘já estava paginado de véspera’.

‘Se emitir opinião, a par da notícia, é ‘misturar o esclarecimento com a disputa’, como sugere Sebastião Lima Rego, os jornais deixariam de ter espaços de opinião delimitados para escreverem o que entendem. Na notícia sobre a decisão de Vasco Graça Moura há informação, jornalismo, sem opinião misturada a não ser a dos protagonistas; no espaço de opinião… há opinião’— resume Nuno Pacheco, antes de anunciar que, ‘para o PÚBLICO, o Acordo Ortográfico continuará a ser alvo de notícias, opiniões e debate’, já que não se trata de ‘um caso ‘resolvido, como alguns pretendem’. ‘E esta, sim’, conclui, ‘é uma posição editorial’.

Penso que as explicações citadas são claras e que a escolha da manchete do passado dia 3 não merece qualquer reparo. Sebastião Lima Rego pediu-me que a avaliasse ‘do ponto de vista da deontologia e curialidade editoriais’. Na minha opinião, não existiu neste caso qualquer problema deontológico. Como se pode verificar pela sua leitura, a notícia que sustentou a manchete não mistura informação e opinião; relata os factos e o seu contexto. Quanto à coexistência, numa mesma edição — e de um modo perfeitamente demarcado —, de notícias e opiniões sobre um determinado tema, nada tem de censurável. Pelo contrário, é o que deve esperar-se de um jornal de referência: que informe e ajuíze, nos espaços próprios, sobre os principais assuntos da actualidade.

Já a questão da ‘curialidade’de uma manchete pode sempre ser discutida, como escolha editorial que é, mas também nesse plano concordo com o director adjunto do PÚBLICO. Nenhuma das alternativas sugeridas pelo leitor para a edição do dia 3 me parece preferível à luz de um critério jornalístico: a ‘crise’corria sem novidades, a venda de 40% da REN era já conhecida, a greve dos transportes não tivera impacto assinalável e a tragédia de Port Said fora notícia na véspera. Em contrapartida, a decisão de Graça Moura aparecia como um facto novo, imprevisto e relevante, que iria marcar a actualidade nos dias seguintes, quer pelo seu peso simbólico, quer enquanto sintoma de que a querela ortográfica permanece viva e mobiliza o interesse de muitos leitores, como atestam as múltiplas reacções — favoráveis e desfavoráveis — que suscitou.

Dito isto, parece-me perfeitamente compreensível que se relacione — como o faz Lima Rego — o destaque dado a esta notícia com a posição editorial assumida pelo PÚBLICO de não adoptar o Acordo Ortográfico. É uma opção conhecida dos leitores e que justifica uma atenção particular ao tema no plano informativo. Importa é que a informação seja rigorosa e o espaço de opinião aberto ao debate das diferentes posições.

Já expliquei, neste espaço, que não vejo motivos para criticar a recusa do PÚBLICO em aplicar as normas do Acordo Ortográfico. E que não me é possível saber ao certo qual é a opinião, a esse respeito, da maioria dos leitores. Mas registo que a recente generalização da aplicação dessas normas no espaço público não conduziu até hoje a reclamações significativas contra a manutenção da ortografia tradicional nestas páginas. Posso testemunhar, por outro lado, e sem dar a esse facto significado estatístico, que os comentários que me chegam sobre este tema se dividem em duas categorias principais: a dos que rejeitam com veemência a mudança ortográfica, apoiando a posição do jornal, e a dos que, manifestando alguma indiferença a esse respeito, lembram com razão que, mais importante do que a norma adoptada, é o zelo na sua correcta aplicação, e por isso protestam contra a preocupante frequência de erros ortográficos.

Conversa de Facebook

Não é mais que um fait-divers, mas merece alguma reflexão. Na edição de 8 deste mês, o PÚBLICO noticiou a aquisição da maioria do capital do jornal i pelo empresário Manuel Cruz. Informação factual, com audição das partes relevantes, mas a terminar de forma no mínimo bizarra. ‘A venda do i’, lia-se a abrir o último parágrafo,’suscitou uma troca de palavras via Facebook entre Ana Sá Lopes [directora adjunta do diário] e o ex-director do Expresso, Henrique Monteiro’. Seguia-se a transcrição integral de uma mensagem colocada na rede social pela primeira, reagindo ao que classificava de ‘alarvidades’escritas pelo segundo num texto cujo teor não era revelado.

Henrique Monteiro enviou-me, bem como à direcção do PÚBLICO, uma nota em que refere não ter sido ouvido para a elaboração da peça e sublinha que, tendo noticiado uma ‘troca de argumentos’, o jornal omitiu os seus, que ‘apenas [questionavam] o racional do negócio’. ‘Quem seguiu o Facebook’, concluía, ‘leu os dois lados. Quem leu o PÚBLICO (…) apenas leu um’. A nota do ex-director do Expresso foi publicada nas Cartas à Directora, acompanhada de uma pouco esclarecedora Nota da Redacção, e só se justifica ressuscitar o incidente pelas várias perplexidades que suscita.

É extraordinário, em primeiro lugar, que se noticie ‘uma troca de palavras via Facebook’entre duas pessoas, e depois se cite só uma. Além de contrariar qualquer regra de equidade, a omissão das palavras de Monteiro tornava neste caso incompreensível para os leitores a resposta, de tom marcadamente pessoal, da sua interlocutora. Também não parece aceitável que se publiquem textos retirados da rede social sem sequer contactar os seus autores. Mas o que mais espanta é que uma ‘conversa de Facebook’, sucedâneo virtual da conversa de café, surja aos olhos de alguém no PÚBLICO como matéria relevante para a composição de notícias. É inquietante que o jornal desperdice espaço valioso, ‘completando’as informações que publica com os comentários que possa encontrar na ‘rede dos amigos’sobre os temas noticiados.”