“A notícia intitulada ‘Artigo científico defende como aceitável ‘aborto pós-nascimento’’ (PÚBLICO, 3 de Março) e a versão ligeiramente mais longa da mesma peça publicada na véspera no Público Online com o título ‘Artigo científico defende como moralmente aceitável a morte de um recém-nascido’ suscitaram protestos de vários leitores.
Domingos Henrique contestou o título escolhido: ‘O que é referido como artigo ‘científico’ é um artigo de opinião’. João Bastos criticou a edição do texto: ‘O Público (…) não pode editar uma notícia de tal teor sem a fazer acompanhar do seu contraponto, subscrito por pessoas que defendam o valor da vida, da dignidade humana e do primado do direito’. Vários outros leitores condenaram liminarmente a própria publicação da notícia, acusando o jornal de dar espaço a teses ‘repugnantes’ ou ‘criminosas’.
Na perspectiva da responsabilidade editorial e da ética jornalística, que é aquela de que me ocupo, julgo que só é razoável a crítica do primeiro leitor citado. Recordo alguns factos, para tornar compreensível a questão a quem não tenha lido a peça contestada. A notícia do PÚBLICO dá conta da polémica gerada por um artigo acolhido numa publicação especializada em ética médica, o Journal of Medical Ethics (JME), associado ao prestigiado British Medical Journal. Uma polémica que ultrapassou em poucos dias as fronteiras dos círculos académicos, com a imprensa generalista a divulgar a tese exposta nesse artigo, cujo título — na tradução deste jornal, ‘Aborto pós-parto: por que deve o bebé viver?’ — tinha à partida todos os ingredientes para chocar múltiplas sensibilidades.
O texto do JME é da autoria de Alberto Giublini e Francesca Minerva, académicos especializados na área da filosofia aplicada na universidade australiana de Melbourne, sendo a segunda também investigadora do Centro de Ética Prática da Faculdade de Filosofia de Oxford. A sua tese central é a de que o que chamam ‘aborto pós-nascimento’ — um eufemismo para infanticídio, a que recorrem para enfatizar a ideia de que o ‘estatuto moral’ do recém-nascido ‘é comparável com o do feto’ — deveria ser permitido em todos os casos em que o aborto seja considerado legítimo. Não sendo possível reproduzir aqui a argumentação que sustenta essa tese (o artigo pode ser consultado através de hiperligação disponibilizada na peça do Público Online), pode no entanto dizer-se que ela é apresentada como a conclusão lógica de três premissas defendidas pelos autores e citadas na notícia deste jornal. A saber: ‘O feto e um recém-nascido não têm o mesmo estatuto moral das pessoas’; ‘é moralmente irrelevante o facto de ambos serem pessoas em potência’; ‘a adopção nem sempre é no melhor interesse das pessoas’.
A partir dessas premissas, obviamente não consensuais no plano ético, e desenvolvendo-as através de uma argumentação cuja racionalidade interna será em vários pontos discutível, Giublini e Minerva constroem um edifício de aparente solidez no plano lógico para sustentarem que ‘matar um bebé nos primeiros dias não é muito diferente de fazer um aborto’. Uma tese tão semelhante à dos movimentos pró-vida que gerou mal-entendidos (visíveis por exemplo na caixa de comentários do Público Online), com opositores a todos os cenários de aborto a saudarem a divulgação do artigo do JME como uma forma de deslegitimação moral de qualquer interrupção voluntária da gravidez, o que não é, manifestamente, o que nele se defende.
Pela natureza do tema, pelo aceso debate que gerou, pela respeitabilidade da publicação que o acolheu e até pela ‘qualidade académica’ que vários especialistas em bioética, concordando ou discordando dos autores, lhe reconheceram (dos últimos faz parte o responsável directo pela publicação no JME, o clérigo e professor de ética médica Kenneth Boyd), o artigo dos investigadores de Melbourne merecia certamente ser noticiado, condição prévia para ser debatido. Não pela novidade da sua tese central, já anteriormente defendida por vários filósofos contemporâneos. A definição de ‘pessoa’ que guia as premissas de Giublini e Minerva é devedora do norte-americano Michael Tooley e a equiparação moral do infanticídio ao aborto em casos de deficiência extrema foi teorizada pelo influente filósofo australiano Peter Singer, de quem várias obras sobre ética estão traduzidas em português. Os seus argumentos sobre este tema podem ser consultados num livro que publicou em 1988 (Should the baby live?),inspiração óbvia, até no título, do artigo dos investigadores de Melbourne.
Estes foram no entanto mais longe, ao incluírem motivos de ‘vontade’ ou ‘interesse’ da mãe ou da família, previstos em diversas legislações sobre a interrupção voluntária da gravidez, na sua defesa da equiparação moral entre aborto e infanticídio. Se a este novo elemento do debate se acrescentar que a eutanásia de recém-nascidos em casos com prognóstico de extrema incapacidade funcional ou sofrimento insuportável é praticada desde há alguns anos com cobertura legal na Holanda (nas condições estritas formalizadas no chamado ‘Protocolo de Groningen’, fruto da cooperação entre médicos neonatologistas e magistrados judiciais), parece-me indiscutível que estão reunidas as condições de relevância e actualidade e o dever de informar que justificam a notícia do PÚBLICO. Os leitores que criticaram a sua publicação, manifestando-se chocados com o tema, confundiram mensagem e mensageiro.
A notícia sintetiza de forma competente o artigo do JME e reflecte a polémica gerada, citando cientistas que classificam de ‘defesa desumana da destruição de crianças’ a tese exposta por Giublini e Minerva. Não terá o ‘contraponto’ argumentativo, de opositores a essa tese, que o leitor João Bastos considerou indispensável, nem isso seria exigível. Uma peça informativa deste tipo não pode em regra abarcar o contraditório detalhado das opiniões que noticia. Pode, e deve, é estimular um confronto de ideias, procurando uma pluralidade de perspectivas acerca da polémica provocada pela informação. Neste caso, a caixa de comentários à notícia on line serviu, com algumas lamentáveis excepções, o propósito nobre de dar voz a um debate sério e argumentado. A abertura do jornal a esse debate nas suas páginas não está em causa, como mostrou a publicação no passado dia 10 de um primeiro artigo de opinião sobre o tema, na linha das chamadas posições ‘pró-vida’, assinado pelo juiz Pedro Vaz Patto.
No plano informativo, o ‘contraponto’ deverá concretizar-se em peças subsequentes, se o PÚBLICO optar por manter atenção editorial ao tema. E seria útil que o fizesse, tanto pelas ameaças que o caso fez pairar sobre a liberdade no debate filosófico como pelos desenvolvimentos entretanto ocorridos. Deveria já ter sido noticiada, por exemplo, a invulgar carta aberta que Giublini e Minerva divulgaram na sequência da onda de críticas provocadas pelo seu texto. Nela, pedem desculpa a quem se tenha sentido ofendido pelo que escreveram, e apelam à compreensão das diferenças entre uma discussão académica e a ‘apresentação enganosa’ que dela terão feito alguns media, bem como da ‘distinção essencial’ entre a argumentação filosófica e a proposta política de normas legais. ‘Nunca pensámos sugerir que o aborto pós-nascimento deveria tornar-se legal’, alegaram, acrescentando que as leis não se inspiram apenas em ‘argumentos éticos racionais’.
Por fim, julgo que a escolha dos títulos para a notícia do PÚBLICO merece reparos. Não tanto pelo acolhimento dado na edição impressa à fórmula ‘aborto pós-nascimento’, em si mesmo contraditória para o senso comum, mas que vem grafada entre aspas e respeita a terminologia defendida no artigo do JME. É mais discutível que se titule, como se fez na edição on line, que esse artigo ‘defende como moralmente aceitável a morte de um recém-nascido’, generalização que o texto noticiado está longe de consentir.
O mais criticável, porém, é o que foi assinalado pelo leitor Domingos Henrique. Não é rigoroso designar como ‘artigo científico’ um texto de reflexão filosófica. Os seus autores não trouxeram novos conhecimentos ou descobertas à ciência, não formularam nem testaram hipóteses de acordo com o método científico. São estudiosos da ética aplicada, que procuraram sistematizar argumentos — bons ou maus, mas só escrutináveis no plano da razão filosófica —, sobre o tópico altamente controverso da aceitabilidade moral do infanticídio em determinadas circunstâncias. O que escreveram foi um texto opinativo, o que propuseram foi um debate moral. As palavras têm o seu peso. O uso do adjectivo ‘científico’ é no caso enganoso, e pode até ser visto como concessão ao sensacionalismo. Tem por única atenuante referir-se a um texto dado à luz numa publicação que (também) aborda temas de ciência.”