Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

Há futuro, num diá­rio de refe­rên­cia, para as tra­di­ci­o­nais Car­tas ao Direc­tor, quando as edi­ções para a Inter­net tor­nam pos­sí­vel a difu­são quase ins­tan­tâ­nea dos comen­tá­rios dos lei­to­res às notí­cias publi­ca­das, em abun­dân­cia ini­ma­gi­ná­vel num jor­nal impresso? Para uma parte dos lei­to­res do PÚBLICO, que creio ser sig­ni­fi­ca­tiva a ava­liar pela cor­res­pon­dên­cia que recebo sobre o tema, as Car­tas ao Direc­tor – que neste jor­nal são hoje, natu­ral­mente, Car­tas à Direc­tora, desde que o cargo pas­sou a ser exer­cido por Bár­bara Reis – são um espaço de lei­tura obri­ga­tó­ria e interessada.

Julgo que para tanto con­tri­buirá a expec­ta­tiva de encon­trar nesse espaço o resul­tado de uma esco­lha cri­te­ri­osa da cor­res­pon­dên­cia diri­gida ao jor­nal. Os lei­to­res espe­ra­rão ler aí tex­tos mais ela­bo­ra­dos do que a gene­ra­li­dade dos comen­tá­rios publi­ca­dos na Inter­net e com a qua­li­dade decor­rente da selec­ção aper­tada que o espaço limi­tado dis­po­ní­vel na edi­ção em papel torna obri­ga­tó­ria. Espe­ra­rão que num jor­nal de refe­rên­cia o espaço dedi­cado ao cor­reio da sua comu­ni­dade de lei­to­res –hoje quase exclu­si­va­mente cor­reio elec­tró­nico – seja ele pró­prio um espaço de refe­rên­cia, um indi­ca­dor fiá­vel da pul­sa­ção de uma opi­nião pública infor­mada e plural.

É essa, aliás, a tra­di­ção da imprensa inter­na­ci­o­nal de qua­li­dade, espe­ci­al­mente nos paí­ses de lín­gua inglesa, onde as ‘Let­ters to the Edi­tor’ con­ti­nuam a ser uma sec­ção pres­ti­gi­ada e influ­ente nos jor­nais, ainda que pos­sam não ter hoje o peso que já tive­ram na cons­tru­ção da agenda do debate público. Pela impor­tân­cia que tem para a repu­ta­ção das publi­ca­ções, a mis­são de selec­ci­o­nar e edi­tar as car­tas dos lei­to­res é geral­mente con­fi­ada a edi­to­res expe­ri­en­tes e reco­nhe­ci­da­mente inde­pen­den­tes face a pres­sões inter­nas ou externas.

No caso do PÚBLICO, as Car­tas ao Direc­tor devem, segundo o Livro de Estilo, ‘ver­sar temas de inte­resse público ou con­ter opi­niões e comen­tá­rios sobre tex­tos publi­ca­dos no jor­nal’, recusando-se o ano­ni­mato e exigindo-se que sejam escri­tas ‘em lin­gua­gem cor­recta, de acordo com as nor­mas da urba­ni­dade’, não ultra­pas­sando, por regra, os 1500 carac­te­res. Uma nota publi­cada dia­ri­a­mente na página de aber­tura da sec­ção Espaço Público explica que o jor­nal se reserva o direito de ‘even­tu­al­mente redu­zir os tex­tos’ (nes­ses casos, os cor­tes são assi­na­la­dos) e adverte que ‘não pres­tará infor­ma­ção pos­tal sobre eles’. A serem cum­pri­das de acordo com cri­té­rios exi­gen­tes de selec­ção edi­to­rial, estas nor­mas esta­be­le­cem um qua­dro em que a qua­li­dade e inte­resse dos tex­tos publi­ca­dos depen­derá prin­ci­pal­mente dos pró­prios auto­res das cartas.

É a essa luz que deve ser ana­li­sada a per­ti­nên­cias das quei­xas fre­quen­tes que recebo sobre a ori­en­ta­ção dada a esta sec­ção do jor­nal. As crí­ti­cas mais comuns são qua­tro e podem resumir-se assim: o espaço con­ce­dido às Car­tas à Direc­tora é muito pequeno (as recla­ma­ções a esse res­peito intensificaram-se após a última remo­de­la­ção grá­fica), os cri­té­rios de selec­ção não seriam os melho­res (este ponto de vista é geral­mente defen­dido por quem não viu o seu texto publi­cado ou se can­sou de estar em ‘lista de espera’), pri­vi­le­gi­a­riam um punhado de lei­to­res que sur­gem repe­ti­da­mente a assi­nar car­tas esco­lhi­das para publi­ca­ção e, final­mente, o PÚBLICO esta­ria a pro­ce­der mal ao não res­pon­der aos lei­to­res que pedem expli­ca­ções sobre a não publi­ca­ção dos seus textos.

Lucí­lia San­tos, adjunta da direc­ção edi­to­rial e res­pon­sá­vel há lon­gos anos pela selec­ção e edi­ção das car­tas, res­ponde a estas crí­ti­cas, come­çando por reco­nhe­cer que o espaço dedi­cado a esta forma de inter­ven­ção dos lei­to­res ‘é mesmo muito pequeno’ e que o pro­blema se agra­vou com o novo modelo grá­fico (‘tem hoje 2100 carac­te­res e tinha antes 3600″), difi­cul­tando a publi­ca­ção de mais do que uma carta por dia. Asse­gura esta­rem a ser pon­de­ra­das ‘mudan­ças’ que per­mi­tam ‘aumen­tar este espaço’.

Negando qual­quer tipo de favo­ri­tismo (‘não há lei­to­res pri­vi­le­gi­a­dos, há lei­to­res super-atentos, que escre­vem todos os dias, sobre assun­tos muito actu­ais, e por isso são essas as car­tas que pri­vi­le­gi­a­mos’), a res­pon­sá­vel pela selec­ção dos tex­tos explica os cri­té­rios por que se rege: ‘As car­tas têm que ser uma boa lei­tura para os nos­sos lei­to­res. Um dos cri­té­rios de maior peso é a actu­a­li­dade. Uma carta que chega sobre um tema novo que, nesse mesmo dia, está a domi­nar a actu­a­li­dade, pas­sará à frente de outras car­tas sobre temas intem­po­rais ou que se pro­lon­gam há muito tempo (…). Mas há outros cri­té­rios: a vari­e­dade de temas, a qua­li­dade da escrita, a capa­ci­dade de nos sur­pre­en­der (pelo estilo, tema, autor, etc.) e – não menos impor­tante – o talento da con­ci­são. Rece­be­mos por exem­plo mui­tos arti­gos de opi­nião para a rubrica Car­tas à Direc­tora com 3000 e 4000 carac­te­res, o que é mani­fes­ta­mente impos­sí­vel de publi­car neste espaço. Outras vezes, rece­be­mos tex­tos sobre assun­tos sem qual­quer actu­a­li­dade – o que não nos ‘assusta’ – mas que não são sufi­ci­en­te­mente dis­tin­ti­vos ou ori­gi­nais. Outro fil­tro, ainda, tem a ver com a tec­no­lo­gia. Infe­liz­mente, não temos meios para trans­cre­ver as car­tas manus­cri­tas que nos che­gam’. Quanto às expli­ca­ções recla­ma­das por lei­to­res que se quei­xam de que as suas car­tas são igno­ra­das, Lucí­lia San­tos diz que o PÚBLICO ‘não tem capa­ci­dade de pres­tar infor­ma­ção sobre essa decisão’.

Não vejo motivo para ques­ti­o­nar os cri­té­rios de selec­ção invo­ca­dos. Acres­cen­ta­ria ape­nas que, a bem do debate e do res­peito pelos lei­to­res, o jor­nal deve­ria dar espe­cial aten­ção às car­tas que ques­ti­o­nem os seus pró­prios con­teú­dos opi­na­ti­vos, com des­ta­que para edi­to­ri­ais e colu­nas de opi­nião. É raro encon­trar nas Car­tas à Direc­tora tex­tos com essas carac­te­rís­ti­cas, cuja publi­ca­ção deve­ria ser esti­mu­lada e valo­ri­za­ria o dese­já­vel debate dos temas tra­ta­dos por edi­to­ri­a­lis­tas e colunistas.

Quanto à ques­tão do espaço, julgo que têm razão os lei­to­res que recla­mam o seu alar­ga­mento. Pre­su­mindo que o jor­nal recebe cor­res­pon­dên­cia em quan­ti­dade sufi­ci­ente para ali­men­tar, com garan­tias de qua­li­dade, uma sec­ção de car­tas mais extensa, deve­ria fazê-lo, ou enca­rar a pos­si­bi­li­dade de um figu­rino diá­rio menos rígido para a sua publi­ca­ção. Como escreve Nuno Quen­tal, que se apre­senta como ‘lei­tor assí­duo’, para quem esses tex­tos podem ser ‘não raras vezes bem mais inte­res­san­tes do que arti­gos de opi­nião pagos’, ‘não há jor­nal que se preze sem uma comu­ni­dade viva de lei­to­res que dis­cu­tam as notí­cias’. Por isso pro­põe, como outros, que seja alar­gado ‘o espaço onde lei­to­res, colu­nis­tas e jor­na­lis­tas pos­sam inte­ra­gir, fide­li­zando o público do PÚBLICO’.

Por outro lado, e acei­tando que não será viá­vel nem exi­gí­vel garan­tir uma expli­ca­ção indi­vi­dual a cada autor de um texto não soli­ci­tado, e muito menos a ‘infor­ma­ção pos­tal’ atrás refe­rida, seria dese­já­vel que o jor­nal pro­cu­rasse, na medida do pos­sí­vel, res­pon­der a ques­tões con­cre­tas colo­ca­das a este res­peito pelos lei­to­res atra­vés de cor­reio elec­tró­nico. Em qual­quer caso, o que não deverá nunca acon­te­cer – e acon­te­ceu algu­mas vezes, como docu­men­tam algu­mas quei­xas que me che­ga­ram – é que quem se dirija ao ende­reço das Car­tas à Direc­tora para pro­por a publi­ca­ção de um texto ou inda­gar sobre o seu des­tino receba de volta uma res­posta auto­má­tica a infor­mar que ‘a men­sa­gem foi eli­mi­nada sem ter sido lida’.

Vol­tando à ques­tão ini­cial, creio que há futuro para as Car­tas ao Direc­tor num jor­nal de refe­rên­cia. São os pró­prios cri­té­rios para a ocu­pa­ção de um espaço de acesso limi­tado, a que se acede pela qua­li­dade da escrita e da argu­men­ta­ção, pela per­ti­nên­cia e opor­tu­ni­dade do tema abor­dado, que moti­va­rão uma ape­tên­cia de lei­tura bem dis­tinta da que é gerada pelo tam­bém útil, mas muito dife­rente e geral­mente menos qua­li­fi­cado, debate ins­tan­tâ­neo nas cai­xas de comen­tá­rios das edi­ções on line. Se a gene­ra­li­dade dos lei­to­res sen­tir que pode con­fiar nos cri­té­rios de selec­ção e edi­ção, será deles que depen­derá em pri­meira linha o futuro e o pres­tí­gio deste espaço no jor­nal impresso.

Para o garan­tir, nunca será de mais repe­tir que entre as carac­te­rís­ti­cas de uma boa carta à direc­tora devem estar a cla­reza da argu­men­ta­ção e, como diz Lucí­lia San­tos, o ‘talento da con­ci­são’. Tex­tos mais lon­gos podem sem­pre ser pro­pos­tos como arti­gos de opi­nião, tam­bém eles natu­ral­mente sujei­tos a com­pre­en­sí­veis con­di­ci­o­na­men­tos de espaço e cri­té­rios de qua­li­dade e opor­tu­ni­dade edi­to­rial. E devem ser sau­da­das, a este pro­pó­sito, a nova impor­tân­cia, a aten­ção acres­cida e a melhor arru­ma­ção que, na recente remo­de­la­ção grá­fica, o PÚBLICO pas­sou a dar aos arti­gos de opi­nião não soli­ci­ta­dos ou exte­ri­o­res à sua equipa de colu­nis­tas fixos, valo­ri­zando as pági­nas do Espaço Público.”