“A queda drástica da taxa de mortalidade infantil em Portugal nas últimas décadas é geralmente considerada um dos mais relevantes índices de progresso social que ficarão a marcar a nossa história recente. Sabe-se como, para esse percurso de sucesso, que guindou o país para lugares de topo a nível mundial na qualidade da saúde materno-infantil, contribuiu, em primeiro lugar, o investimento na reorganização da rede pública hospitalar, com vista a concentrar os partos em unidades de saúde dotadas dos equipamentos e recursos profissionais adequados. O nascimento em ambiente hospitalar tornou-se a regra: se há quarenta anos mais de 90% das crianças nasciam em casa, hoje o número de partos fora dos hospitais reduz-se a algumas centenas por ano.
Pelo menos uma parte desses partos domiciliários corresponderá a uma escolha deliberada. Há sinais de que em Portugal, como em outros países, se tem vindo a manifestar nos últimos anos, embora permaneça residual, uma nova tendência social (outros chamar-lhe-ão uma moda), que leva algumas mulheres, ou casais, a optar pelo chamado ‘parto natural’ em casa. Quem faz ou apoia essa escolha argumenta geralmente com as vantagens do conforto e intimidade do ambiente familiar no caso de partos supostamente sem risco, em contraponto a um modelo de assistência hospitalar que vê como excessivamente medicalizado e intervencionista.
Esses argumentos são partilhados por quem se dedica ao acompanhamento remunerado dos partos domiciliários: alguns enfermeiros, parteiras e as oficiantes da uma nova profissão, conhecidas como doulas, que se definem como prestadoras de assistência emocional às parturientes. E são em geral contrariados por pediatras e especialistas em neonatalogia, que salientam os riscos desnecessários associados aos nascimentos em casa, por falta dos meios adequados para enfrentar complicações imprevistas.
‘Gravidez de baixo risco não é igual a parto de baixo risco’, sublinhou há dias o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, Luís Graça, numa intervenção em que classificou a defesa do parto não hospitalar como um ‘regresso à idade das trevas’. Nos últimos meses, a polémica gerada pela nova visibilidade do recurso ao parto domiciliário — para a qual terão contribuído casos recentes de mães que correram risco de vida, e a morte, nos últimos anos, de pelo menos três bebés nascidos em casa — deu origem a tomadas de posição públicas, e contraditórias, das ordens dos Médicos e dos Enfermeiros.
Vem este preâmbulo a propósito da queixa que recebi de uma leitora sobre a peça intitulada ‘Aumento de partos em casa por falta de alternativas naturais nos hospitais’, assinada por Catarina Gomes na edição do passado dia 8 de Abril. Um trabalho jornalístico que, segundo a sua autora, terá visado ‘perceber o porquê [do recurso aos partos domiciliários] no século XXI como opção de mulheres com formação superior à média’, e ainda até que ponto as razões dessa opção estariam ou não a provocar ‘alguma mudança nos hospitais públicos’.
Não o entendeu assim a leitora Ana Maria Mesquita, que viveu recentemente uma tragédia pessoal: a morte, após horas de agonia, de uma neta recém-nascida em situação de parto domiciliário supostamente apoiado por uma enfermeira e uma doula. A morte da bebé, que deu origem a queixas às entidades competentes e a um inquérito à enfermeira envolvida, ficou a dever-se a um problema cardíaco dificilmente detectável antes do nascimento, mas susceptível de ser resolvido através de uma cirurgia urgente. ‘A criança poderia ter sido salva se tivesse nascido num hospital’, afirmou sobre o caso o presidente da especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, João Silva Carvalho.
A leitora viu no artigo do PÚBLICO uma ‘defesa do parto domiciliário, assistido por enfermeiros obstetras’, com ‘considerandos enviesados’ e ‘dados incorrectos’, que ‘poderá orientar futuras parturientes para práticas inseguras’. E ainda ‘publicidade gratuita’ ao ‘negócio dos partos em casa’. Não sendo possível transcrever nesta crónica a sua extensa argumentação, bem como as igualmente extensas explicações da jornalista, convido os leitores interessados neste tema sensível a consultar mais adiante esses textos. Poderão igualmente aceder ao artigo em causa no arquivo da edição on line. Cingir-me-ei, aqui, a alguns dos motivos de reflexão que considero mais relevantes na reclamação recebida.
Ana Maria Mesquita aponta ao artigo um erro de facto e várias omissões. O erro aparece logo no título, que refere um ‘aumento de partos em casa’. Na verdade, e de acordo com os números que a jornalista obteve do Instituto Nacional de Estatística, o número de nascimentos em casa teve neste início de século o seu valor mais elevado em 2007 (cerca de um milhar), tendo decrescido desde então. Ainda que se pretendesse apenas referir um ‘aumento’ de casos de escolha do domicílio por ‘falta de alternativas naturais nos hospitais’ — o que não está demonstrado nem resulta do que se lê no texto —, o título não deixaria de ser enganoso e de contrariar os dados disponíveis. Um erro grave no gráfico que acompanha o texto (exemplo de edição negligente, que não é da responsabilidade da jornalista) aumentava a confusão, ao dar a ‘informação’ disparatada de que o número de partos domiciliários se situaria próximo do zero na década de 70 do século passado.
Quanto a omissões, a leitora sustenta que o tratamento jornalístico deste tema não deveria ter ignorado, entre outros, pontos como os seguintes: a ligação entre o número de nascimentos em casa (ainda que residual) e a existência de ‘um movimento organizado em defesa dessas práticas’; os interesses de enfermeiros e doulas que ‘vivem de um mercado ‘ caracterizado por preços elevados (chegarão aos 2.000 euros para as parteiras, mais umas centenas para as doulas, além de outras despesas); a existência de contratos de duvidosa legalidade, que procuram desresponsabilizar ‘os envolvidos nestas práticas (…) de tudo o que possa correr mal’; e, finalmente, os pareceres de autoridades médicas, portuguesas ou estrangeiras, desaconselhando os partos em casa.
Catarina Gomes contesta a veracidade do último ponto, recordando que ‘as reticências da classe médica’ aos partos domiciliários são referidas de forma bem visível na entrada, e depois num parágrafo do artigo principal, bem como num segundo texto, em que se refere estarem a ser investigadas as mortes de três bebés nascidos em casa. Às outras objecções responde genericamente que se trata de questões exteriores aos ‘objectivos do trabalho’, o qual, insiste, pretendia retratar os motivos que levam um determinado número de mulheres a olhar com desconfiança a oferta hospitalar. Pareceu-lhe, escreve, ser esta ‘uma perspectiva bastante mais inovadora do que o já muito batido ângulo que dá conta da existência deste fenómeno’.
Por mim, não subscrevo as acusações de parcialidade ou de publicidade encapotada dirigidas à jornalista. O trabalho publicado a 8 de Abril não ignora as posições dos especialistas que desaconselham ou condenam o recurso ao parto domiciliário, embora me pareça claro que, na economia global do texto, existe algum desequilíbrio entre as posições em confronto.
Considero no entanto pertinente, e merecedora de reflexão no plano editorial, a maior parte das observações e reparos da leitora. O que está aqui em causa, a meu ver, não é a isenção. O problema é outro: é o do justo equilíbrio entre a opção jornalística por um ângulo ‘inovador’ — no caso a tendência, ou moda, de uma pequena minoria a apostar no regresso ao parto caseiro — e a noção de responsabilidade social da imprensa. Quando se aborda um tema como este, de evidente importância no plano da saúde pública e do esclarecimento dos cidadãos, deve esperar-se um maior esforço de contextualização do fenómeno retratado, à luz dos conhecimentos disponíveis. Por muito ‘batido’ que esteja o ‘ângulo’ dos riscos associados aos partos domiciliários e da consequente ponderação do melhor interesse dos nascituros, o sentido de responsabilidade deveria ter obrigado a referir (ou investigar) dados como os que a leitora considerou terem sido omitidos.
Registe-se, a terminar, que, na edição de 16 de Abril, Catarina Gomes assinou um texto intitulado ‘Parto em casa terminou em morte de bebé que sofria de problema cardíaco’, em que narra o mais recente caso conhecido (que é o caso acima referido) de um parto domiciliário com este desfecho. Fizeram bem o jornal e a jornalista em dar-lhe o devido destaque, demonstrando aliás que não eram movidos por nenhum tipo de parcialidade nesta matéria. As informações aí contidas terão corrigido ou contrabalançado, junto de quem tenha lido ambas as peças, o que Ana Maria Mesquita considerou ser sugerido pelo texto do dia 8, ao criticá-lo por poder contribuir para ‘orientar futuras parturientes para práticas inseguras’. Ficará agora a faltar um trabalho de fundo que forneça, de forma completa, equilibrada e actualizada, todos os elementos necessários para que os leitores se possam sentir bem informados sobre este tema sensível.”