“Disse aos leitores, na minha última crónica, que iria procurar obter as informações indispensáveis para poder pronunciar-me sobre as dúvidas suscitadas pelo caso de que tomaram conhecimento no passado dia 19, quando leram nestas páginas uma nota da direcção editorial do PÚBLICO, acusando o ministro Miguel Relvas de ter pressionado o jornal de forma ‘inaceitável’ na tarde do dia 16, para tentar evitar a publicação de uma notícia. A nota atribuía expressamente ao ministro ameaças de um blackout noticioso do Governo contra o jornal e de divulgação na Internet de ‘detalhes da vida privada’ da jornalista Maria José Oliveira, que naquele dia o questionara, por escrito, sobre contradições detectadas nas declarações que prestara, na véspera, a uma comissão parlamentar.
Dispenso-me de recordar aqui tudo o que entretanto se foi conhecendo publicamente sobre este episódio. No essencial, o encadeamento dos factos está resumido no ‘Esclarecimento aos leitores sobre o caso Relvas’, assinado pela direcção do PÚBLICO no jornal de anteontem, 25, e disponível na edição on line. Por outro lado, os desenvolvimentos do chamado ‘caso das secretas’ – em que se insere a investigação sobre as relações entre Miguel Relvas e o ex-dirigente da espionagem Silva Carvalho, acusado de vários crimes – têm sido abundantemente noticiados.
Usarei antes este espaço limitado (ainda que hoje generosamente ampliado), para o que lhe é próprio: analisar o comportamento do PÚBLICO no plano profissional e ético, à luz da relação de confiança entre o jornal e os seus leitores e da desejável transparência de procedimentos e decisões editoriais. Fá-lo-ei com base em documentação que pude consultar e nas respostas que obtive às questões que coloquei à directora do jornal, Bárbara Reis, à editora de Política, Leonete Botelho, e à jornalista Maria José Oliveira. São elementos de informação importantes, que podem ser consultados mais adiante.
Antes, convirá recordar que são abertamente contraditórias as descrições feitas por Miguel Relvas e Leonete Botelho acerca do conteúdo das conversas telefónicas que, por iniciativa do primeiro, mantiveram no dia 16. A editora reafirma que foram proferidas, em duas chamadas distintas, as ameaças que o jornal denunciou; o ministro nega tê-las feito. Não esperem os leitores encontrar aqui uma verdade apurada de acordo com inequívocas provas materiais, que, ao que tudo indica, não existirão.
Não me furtarei, contudo, a um juízo de verossimilhança. Não considero crível que as ameaças denunciadas possam ter sido inventadas pelo PÚBLICO, e a consistência das explicações que recebi reforça essa convicção. Não se vislumbra que motivo ou interesse pudessem conduzir a tamanho atentado à ética profissional, que pressuporia o envolvimento de um conjunto de jornalistas respeitados numa conspiração inimaginável em que estariam a enganar consciente e deliberadamente os seus leitores. No essencial, o balanço da história do jornal é o maior argumento contra essa hipótese mirabolante, e a reputação profissional da editora que escutou as frases agressivas de Relvas desautoriza qualquer suspeita desse tipo. Acresce que, como resulta das suas explicações, tanto Leonete Botelho como a direcção do jornal só a contragosto terão confirmado as ‘pressões’ noticiadas, quando estas eram já do conhecimento público, a partir da divulgação no exterior de um comunicado do conselho de redacção do jornal.
Não posso dizer o mesmo da credibilidade do ministro envolvido neste caso, que nos últimos dias fez várias declarações contraditórias no âmbito das averiguações sobre o escândalo das secretas – era esse, aliás, o objecto das questões que o PÚBLICO lhe dirigiu – e foi introduzindo adaptações e inflexões no seu discurso de negação das ameaças ao jornal e à jornalista, em contraste com a consistência inalterada da narração dos factos que o comprometem. Aquilo que já reconheceu que fez, e que o terá levado a pedir desculpas cujo conteúdo ainda não é totalmente claro, indicia um interesse empenhado em travar as notícias sobre o seu relacionamento com o ex-espião acusado pelo Ministério Público.
É, pois, no pressuposto de que o PÚBLICO não enganou os seus leitores sobre os telefonemas de Relvas que irei procurar responder às questões que têm sido suscitadas pelo comportamento do jornal neste caso. Que julgo serem, principalmente, as quatro que se seguem.
1ª) A direcção do PÚBLICO agiu bem ao denunciar as ‘pressões’ de que acusa o ministro? – Sim. Compreendo e apoio a posição genérica anunciada, de não divulgar as vulgares e inevitáveis pressões, políticas ou outras, mais ou menos fortes, que fazem o quotidiano das relações entre os poderes e a imprensa independente. O que se espera dos responsáveis editoriais é que ignorem essas pressões e lhes resistam, que façam o seu trabalho em vez de se vitimizarem com as dificuldades que enfrentam. Mas este não é um caso desse tipo. O que foi relatado são ameaças muito graves à liberdade de informar e aos direitos individuais, são intenções anunciadas de práticas de abuso de poder, de chantagem e devassa da vida privada. Denunciá-las é um dever dos jornalistas, em nome do interesse público, da verdade e do escrutínio dos actos e do carácter de quem desempenha cargos públicos de relevo e toma decisões que afectam toda a comunidade.
2ª) A direcção do PÚBLICO agiu mal ao adiar essa denúncia até ao momento em que os factos foram publicamente conhecidos? – Provavelmente. Compreendo que tenha ponderado implicações legais, dificuldades de prova, eventuais riscos para a credibilidade do jornal. Que tenha pesado os prós e os contras de quebrar uma tradição de não divulgar intimidações. Que tenha, até, subavaliado inicialmente o que acontecera. Em contrapartida, os seus leitores deveriam ter sido os primeiros a conhecer os factos que acabou por revelar. Ter-se-iam poupado equívocos e eventuais danos à imagem do jornal.
3ª) A jornalista Maria José Oliveira agiu bem ao confrontar o ministro com as incongruências detectadas nas suas explicações aos deputados?- Sem dúvida. As perguntas que lhe dirigiu são legítimas e totalmente pertinentes. Fez o que se espera de uma profissional atenta e competente. As explicações que pediu a Miguel Relvas são as que o ministro deve ao Parlamento e ao país. O contraste entre o que este disse aos deputados e o que afirmou antes e depois tem sido evidenciado nos noticiários televisivos.
4ª) A direcção do PÚBLICO agiu mal ao não publicar, na edição de dia 17, e durante mais de uma semana, a notícia redigida por Maria José Oliveira? – É discutível. Sendo perfeitamente legítima, essa decisão resultou, como já foi explicado, da apreciação convergente dos editores que analisaram o texto e não viram nele ‘informação nova’. É perfeitamente normal, e geralmente aconselhável, que a publicação de uma notícia relevante possa ser adiada para ser completada, enriquecida ou mais bem verificada. Terá sido o que aconteceu, e a editora Leonete Botelho assegura que o PÚBLICO não desistirá de investigar este caso. A favor da publicação desse texto na edição do dia 17 poderiam, no entanto, ter prevalecido critérios de actualidade e clareza informativa. Sem conter de facto informação nova (para além da terminante recusa do ministro em dar os esclarecimentos pedidos), essa peça, só anteontem dada a conhecer aos leitores, sublinhava com maior nitidez as incongruências nas declarações públicas de Relvas que aparentemente não tinham despertado na véspera a atenção dos deputados. É verdade que a notícia da mesma jornalista (na edição do dia 16) sobre a audição parlamentar permitia já aos leitores mais atentos compreender que algo não batia certo nas explicações dadas pelo ministro sobre o seu relacionamento com Silva Carvalho. Mas quantos deram por isso? De facto, foi a divulgação pública (mas ainda não nas páginas deste jornal) das perguntas de Maria José Oliveira, a que se seguiram as novas e duvidosas explicações a que Relvas se viu obrigado, que levou outros meios de comunicação a expor as incongruências do discurso ministerial.
Duas notas finais. A primeira para dizer que considero censurável o facto de, no ‘Esclarecimento’ publicado anteontem, a direcção do PÚBLICO ter escrito que Relvas dissera, nos seus polémicos telefonemas para o jornal, que ‘iria divulgar na Internet que a autora da notícia vive com um homem de um partido da oposição’. Trata-se, aliás, segundo garante a jornalista em causa, de ‘uma informação falsa’, com a qual o ministro pretendeu ‘descredibilizar’ o seu trabalho, colando-o ‘a uma agenda ideológica’. Tendo decidido tornar pública essa inqualificável ameaça do governante, a direcção do jornal tinha a obrigação de explicar que se tratava de uma falsidade, o que não fez. Felizmente, o erro terá sido compreendido, e foi corrigido num novo ‘Esclarecimento’, ontem publicado. Devo acrescentar que Maria José Oliveira se queixa de que essa informação foi divulgada sem o seu acordo prévio, enquanto Bárbara Reis garante que esse acordo existiu, tendo sido ‘discutido numa reunião’ em que ambas participaram, juntamente com outro membro da direcção, duas editoras e o advogado do jornal.
A segunda nota é para dar conta aos leitores que o gabinete de Miguel Relvas– numa comunicação que enviou à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, ainda antes de esta iniciar as averiguações sobre este caso, e que foi divulgada no site da RTP – cita por duas vezes, para criticar o trabalho jornalístico do PÚBLICO, pontos de vista que defendi neste espaço. Cita-os fora do contexto num caso, cita-os mal e abusivamente no outro.
Referindo-se ao facto de a primeira mensagem que recebeu de Maria José Oliveira no dia 16 (às 15h27) terminar com a referência de que aguardaria uma resposta ‘até às 16 horas’ (este estabelecimento de prazos por parte de jornalistas é de facto uma prática censurável e infelizmente comum, que já aqui critiquei), o gabinete de Relvas adiantava o argumento que o ministro depois iria usar para dizer que foi ele o ‘pressionado’, citando nomeadamente o que aqui escrevi em Fevereiro a propósito de um caso totalmente diferente (‘A referência à ‘pressão noticiosa’ é demasiadas vezes invocada para tentar justificar erros na verdade injustificáveis’). Não só as situações analisadas não são comparáveis (o que poderá comprovar-se consultando este blogue), como neste caso não houve lugar a erros noticiosos e era legítimo, por motivos óbvios de actualidade, solicitar – embora não nos termos em que foi feito – um esclarecimento em tempo breve.
Do que o ministro ou os seus assessores não deveriam ter-se lembrado era de afirmar que a peça sobre o caso das secretas assinada nestas páginas por Maria José Oliveira no passado dia 15 – à qual nada tenho a apontar no plano deontológico ou no da qualidade informativa – exemplifica ‘um estilo de ‘jornalismo interpretativo’ que tantas vezes tem sido alvo de reparos por parte do Provedor do Leitor doPÚBLICO’. Não consigo imaginar o que no gabinete do ministro se entende por ‘jornalismo interpretativo’, mas posso esclarecer o que entendo ser o papel da interpretação num jornal de referência. Trata-se de relacionar e contextualizar os factos, de os analisar e procurar explicá-los, de partir deles para procurar as respostas que tornem a informação clara, útil e completa. Não é outra a missão e a vocação do jornalismo de qualidade.”