Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“Disse aos lei­to­res, na minha última cró­nica, que iria pro­cu­rar obter as infor­ma­ções indis­pen­sá­veis para poder pronunciar-me sobre as dúvi­das sus­ci­ta­das pelo caso de que toma­ram conhe­ci­mento no pas­sado dia 19, quando leram nes­tas pági­nas uma nota da direc­ção edi­to­rial do PÚBLICO, acu­sando o minis­tro Miguel Rel­vas de ter pres­si­o­nado o jor­nal de forma ‘ina­cei­tá­vel’ na tarde do dia 16, para ten­tar evi­tar a publi­ca­ção de uma notí­cia. A nota atri­buía expres­sa­mente ao minis­tro ame­a­ças de um blac­kout noti­ci­oso do Governo con­tra o jor­nal e de divul­ga­ção na Inter­net de ‘deta­lhes da vida pri­vada’ da jor­na­lista Maria José Oli­veira, que naquele dia o ques­ti­o­nara, por escrito, sobre con­tra­di­ções detec­ta­das nas decla­ra­ções que pres­tara, na vés­pera, a uma comis­são parlamentar.

Dispenso-me de recor­dar aqui tudo o que entre­tanto se foi conhe­cendo publi­ca­mente sobre este epi­só­dio. No essen­cial, o enca­de­a­mento dos fac­tos está resu­mido no ‘Escla­re­ci­mento aos lei­to­res sobre o caso Rel­vas’, assi­nado pela direc­ção do PÚBLICO no jor­nal de ante­on­tem, 25, e dis­po­ní­vel na edi­ção on line. Por outro lado, os desen­vol­vi­men­tos do cha­mado ‘caso das secre­tas’ – em que se insere a inves­ti­ga­ção sobre as rela­ções entre Miguel Rel­vas e o ex-dirigente da espi­o­na­gem Silva Car­va­lho, acu­sado de vários cri­mes – têm sido abun­dan­te­mente noticiados.

Usa­rei antes este espaço limi­tado (ainda que hoje gene­ro­sa­mente ampli­ado), para o que lhe é pró­prio: ana­li­sar o com­por­ta­mento do PÚBLICO no plano pro­fis­si­o­nal e ético, à luz da rela­ção de con­fi­ança entre o jor­nal e os seus lei­to­res e da dese­já­vel trans­pa­rên­cia de pro­ce­di­men­tos e deci­sões edi­to­ri­ais. Fá-lo-ei com base em docu­men­ta­ção que pude con­sul­tar e nas res­pos­tas que obtive às ques­tões que colo­quei à direc­tora do jor­nal, Bár­bara Reis, à edi­tora de Polí­tica, Leo­nete Bote­lho, e à jor­na­lista Maria José Oli­veira. São ele­men­tos de infor­ma­ção impor­tan­tes, que podem ser con­sul­ta­dos mais adiante.

Antes, con­virá recor­dar que são aber­ta­mente con­tra­di­tó­rias as des­cri­ções fei­tas por Miguel Rel­vas e Leo­nete Bote­lho acerca do con­teúdo das con­ver­sas tele­fó­ni­cas que, por ini­ci­a­tiva do pri­meiro, man­ti­ve­ram no dia 16. A edi­tora rea­firma que foram pro­fe­ri­das, em duas cha­ma­das dis­tin­tas, as ame­a­ças que o jor­nal denun­ciou; o minis­tro nega tê-las feito. Não espe­rem os lei­to­res encon­trar aqui uma ver­dade apu­rada de acordo com inequí­vo­cas pro­vas mate­ri­ais, que, ao que tudo indica, não existirão.

Não me fur­ta­rei, con­tudo, a um juízo de vero­ssi­mi­lhança. Não con­si­dero crí­vel que as ame­a­ças denun­ci­a­das pos­sam ter sido inven­ta­das pelo PÚBLICO, e a con­sis­tên­cia das expli­ca­ções que recebi reforça essa con­vic­ção. Não se vis­lum­bra que motivo ou inte­resse pudes­sem con­du­zir a tama­nho aten­tado à ética pro­fis­si­o­nal, que pres­su­po­ria o envol­vi­mento de um con­junto de jor­na­lis­tas res­pei­ta­dos numa cons­pi­ra­ção ini­ma­gi­ná­vel em que esta­riam a enga­nar cons­ci­ente e deli­be­ra­da­mente os seus lei­to­res. No essen­cial, o balanço da his­tó­ria do jor­nal é o maior argu­mento con­tra essa hipó­tese mira­bo­lante, e a repu­ta­ção pro­fis­si­o­nal da edi­tora que escu­tou as fra­ses agres­si­vas de Rel­vas desau­to­riza qual­quer sus­peita desse tipo. Acresce que, como resulta das suas expli­ca­ções, tanto Leo­nete Bote­lho como a direc­ção do jor­nal só a con­tra­gosto terão con­fir­mado as ‘pres­sões’ noti­ci­a­das, quando estas eram já do conhe­ci­mento público, a par­tir da divul­ga­ção no exte­rior de um comu­ni­cado do con­se­lho de redac­ção do jornal.

Não posso dizer o mesmo da cre­di­bi­li­dade do minis­tro envol­vido neste caso, que nos últi­mos dias fez várias decla­ra­ções con­tra­di­tó­rias no âmbito das ave­ri­gua­ções sobre o escân­dalo das secre­tas – era esse, aliás, o objecto das ques­tões que o PÚBLICO lhe diri­giu – e foi intro­du­zindo adap­ta­ções e infle­xões no seu dis­curso de nega­ção das ame­a­ças ao jor­nal e à jor­na­lista, em con­traste com a con­sis­tên­cia inal­te­rada da nar­ra­ção dos fac­tos que o com­pro­me­tem. Aquilo que já reco­nhe­ceu que fez, e que o terá levado a pedir des­cul­pas cujo con­teúdo ainda não é total­mente claro, indi­cia um inte­resse empe­nhado em tra­var as notí­cias sobre o seu rela­ci­o­na­mento com o ex-espião acu­sado pelo Minis­té­rio Público.

É, pois, no pres­su­posto de que o PÚBLICO não enga­nou os seus lei­to­res sobre os tele­fo­ne­mas de Rel­vas que irei pro­cu­rar res­pon­der às ques­tões que têm sido sus­ci­ta­das pelo com­por­ta­mento do jor­nal neste caso. Que julgo serem, prin­ci­pal­mente, as qua­tro que se seguem.

1ª) A direc­ção do PÚBLICO agiu bem ao denun­ciar as ‘pres­sões’ de que acusa o minis­tro? – Sim. Com­pre­endo e apoio a posi­ção gené­rica anun­ci­ada, de não divul­gar as vul­ga­res e ine­vi­tá­veis pres­sões, polí­ti­cas ou outras, mais ou menos for­tes, que fazem o quo­ti­di­ano das rela­ções entre os pode­res e a imprensa inde­pen­dente. O que se espera dos res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais é que igno­rem essas pres­sões e lhes resis­tam, que façam o seu tra­ba­lho em vez de se viti­mi­za­rem com as difi­cul­da­des que enfren­tam. Mas este não é um caso desse tipo. O que foi rela­tado são ame­a­ças muito gra­ves à liber­dade de infor­mar e aos direi­tos indi­vi­du­ais, são inten­ções anun­ci­a­das de prá­ti­cas de abuso de poder, de chan­ta­gem e devassa da vida pri­vada. Denunciá-las é um dever dos jor­na­lis­tas, em nome do inte­resse público, da ver­dade e do escru­tí­nio dos actos e do carác­ter de quem desem­pe­nha car­gos públi­cos de relevo e toma deci­sões que afec­tam toda a comunidade.

2ª) A direc­ção do PÚBLICO agiu mal ao adiar essa denún­cia até ao momento em que os fac­tos foram publi­ca­mente conhe­ci­dos? – Pro­va­vel­mente. Com­pre­endo que tenha pon­de­rado impli­ca­ções legais, difi­cul­da­des de prova, even­tu­ais ris­cos para a cre­di­bi­li­dade do jor­nal. Que tenha pesado os prós e os con­tras de que­brar uma tra­di­ção de não divul­gar inti­mi­da­ções. Que tenha, até, suba­va­li­ado ini­ci­al­mente o que acon­te­cera. Em con­tra­par­tida, os seus lei­to­res deve­riam ter sido os pri­mei­ros a conhe­cer os fac­tos que aca­bou por reve­lar. Ter-se-iam pou­pado equí­vo­cos e even­tu­ais danos à ima­gem do jornal.

3ª) A jor­na­lista Maria José Oli­veira agiu bem ao con­fron­tar o minis­tro com as incon­gruên­cias detec­ta­das nas suas expli­ca­ções aos depu­ta­dos?- Sem dúvida. As per­gun­tas que lhe diri­giu são legí­ti­mas e total­mente per­ti­nen­tes. Fez o que se espera de uma pro­fis­si­o­nal atenta e com­pe­tente. As expli­ca­ções que pediu a Miguel Rel­vas são as que o minis­tro deve ao Par­la­mento e ao país. O con­traste entre o que este disse aos depu­ta­dos e o que afir­mou antes e depois tem sido evi­den­ci­ado nos noti­ciá­rios televisivos.

4ª) A direc­ção do PÚBLICO agiu mal ao não publi­car, na edi­ção de dia 17, e durante mais de uma semana, a notí­cia redi­gida por Maria José Oli­veira? – É dis­cu­tí­vel. Sendo per­fei­ta­mente legí­tima, essa deci­são resul­tou, como já foi expli­cado, da apre­ci­a­ção con­ver­gente dos edi­to­res que ana­li­sa­ram o texto e não viram nele ‘infor­ma­ção nova’. É per­fei­ta­mente nor­mal, e geral­mente acon­se­lhá­vel, que a publi­ca­ção de uma notí­cia rele­vante possa ser adi­ada para ser com­ple­tada, enri­que­cida ou mais bem veri­fi­cada. Terá sido o que acon­te­ceu, e a edi­tora Leo­nete Bote­lho asse­gura que o PÚBLICO não desis­tirá de inves­ti­gar este caso. A favor da publi­ca­ção desse texto na edi­ção do dia 17 pode­riam, no entanto, ter pre­va­le­cido cri­té­rios de actu­a­li­dade e cla­reza infor­ma­tiva. Sem con­ter de facto infor­ma­ção nova (para além da ter­mi­nante recusa do minis­tro em dar os escla­re­ci­men­tos pedi­dos), essa peça, só ante­on­tem dada a conhe­cer aos lei­to­res, subli­nhava com maior niti­dez as incon­gruên­cias nas decla­ra­ções públi­cas de Rel­vas que apa­ren­te­mente não tinham des­per­tado na vés­pera a aten­ção dos depu­ta­dos. É ver­dade que a notí­cia da mesma jor­na­lista (na edi­ção do dia 16) sobre a audi­ção par­la­men­tar per­mi­tia já aos lei­to­res mais aten­tos com­pre­en­der que algo não batia certo nas expli­ca­ções dadas pelo minis­tro sobre o seu rela­ci­o­na­mento com Silva Car­va­lho. Mas quan­tos deram por isso? De facto, foi a divul­ga­ção pública (mas ainda não nas pági­nas deste jor­nal) das per­gun­tas de Maria José Oli­veira, a que se segui­ram as novas e duvi­do­sas expli­ca­ções a que Rel­vas se viu obri­gado, que levou outros meios de comu­ni­ca­ção a expor as incon­gruên­cias do dis­curso ministerial.

Duas notas finais. A pri­meira para dizer que con­si­dero cen­su­rá­vel o facto de, no ‘Escla­re­ci­mento’ publi­cado ante­on­tem, a direc­ção do PÚBLICO ter escrito que Rel­vas dis­sera, nos seus polé­mi­cos tele­fo­ne­mas para o jor­nal, que ‘iria divul­gar na Inter­net que a autora da notí­cia vive com um homem de um par­tido da opo­si­ção’. Trata-se, aliás, segundo garante a jor­na­lista em causa, de ‘uma infor­ma­ção falsa’, com a qual o minis­tro pre­ten­deu ‘des­cre­di­bi­li­zar’ o seu tra­ba­lho, colando-o ‘a uma agenda ide­o­ló­gica’. Tendo deci­dido tor­nar pública essa inqua­li­fi­cá­vel ame­aça do gover­nante, a direc­ção do jor­nal tinha a obri­ga­ção de expli­car que se tra­tava de uma fal­si­dade, o que não fez. Feliz­mente, o erro terá sido com­pre­en­dido, e foi cor­ri­gido num novo ‘Escla­re­ci­mento’, ontem publi­cado. Devo acres­cen­tar que Maria José Oli­veira se queixa de que essa infor­ma­ção foi divul­gada sem o seu acordo pré­vio, enquanto Bár­bara Reis garante que esse acordo exis­tiu, tendo sido ‘dis­cu­tido numa reu­nião’ em que ambas par­ti­ci­pa­ram, jun­ta­mente com outro mem­bro da direc­ção, duas edi­to­ras e o advo­gado do jornal.

A segunda nota é para dar conta aos lei­to­res que o gabi­nete de Miguel Rel­vas– numa comu­ni­ca­ção que enviou à Enti­dade Regu­la­dora para a Comu­ni­ca­ção Social, ainda antes de esta ini­ciar as ave­ri­gua­ções sobre este caso, e que foi divul­gada no site da RTP – cita por duas vezes, para cri­ti­car o tra­ba­lho jor­na­lís­tico do PÚBLICO, pon­tos de vista que defendi neste espaço. Cita-os fora do con­texto num caso, cita-os mal e abu­si­va­mente no outro.

Referindo-se ao facto de a pri­meira men­sa­gem que rece­beu de Maria José Oli­veira no dia 16 (às 15h27) ter­mi­nar com a refe­rên­cia de que aguar­da­ria uma res­posta ‘até às 16 horas’ (este esta­be­le­ci­mento de pra­zos por parte de jor­na­lis­tas é de facto uma prá­tica cen­su­rá­vel e infe­liz­mente comum, que já aqui cri­ti­quei), o gabi­nete de Rel­vas adi­an­tava o argu­mento que o minis­tro depois iria usar para dizer que foi ele o ‘pres­si­o­nado’, citando nome­a­da­mente o que aqui escrevi em Feve­reiro a pro­pó­sito de um caso total­mente dife­rente (‘A refe­rên­cia à ‘pres­são noti­ci­osa’ é dema­si­a­das vezes invo­cada para ten­tar jus­ti­fi­car erros na ver­dade injus­ti­fi­cá­veis’). Não só as situ­a­ções ana­li­sa­das não são com­pa­rá­veis (o que poderá comprovar-se con­sul­tando este blo­gue), como neste caso não houve lugar a erros noti­ci­o­sos e era legí­timo, por moti­vos óbvios de actu­a­li­dade, soli­ci­tar – embora não nos ter­mos em que foi feito – um escla­re­ci­mento em tempo breve.

Do que o minis­tro ou os seus asses­so­res não deve­riam ter-se lem­brado era de afir­mar que a peça sobre o caso das secre­tas assi­nada nes­tas pági­nas por Maria José Oli­veira no pas­sado dia 15 – à qual nada tenho a apon­tar no plano deon­to­ló­gico ou no da qua­li­dade infor­ma­tiva – exem­pli­fica ‘um estilo de ‘jor­na­lismo inter­pre­ta­tivo’ que tan­tas vezes tem sido alvo de repa­ros por parte do Pro­ve­dor do Lei­tor doPÚBLICO’. Não con­sigo ima­gi­nar o que no gabi­nete do minis­tro se entende por ‘jor­na­lismo inter­pre­ta­tivo’, mas posso escla­re­cer o que entendo ser o papel da inter­pre­ta­ção num jor­nal de refe­rên­cia. Trata-se de rela­ci­o­nar e con­tex­tu­a­li­zar os fac­tos, de os ana­li­sar e pro­cu­rar explicá-los, de par­tir deles para pro­cu­rar as res­pos­tas que tor­nem a infor­ma­ção clara, útil e com­pleta. Não é outra a mis­são e a voca­ção do jor­na­lismo de qualidade.”