Até onde deve ir a obrigação de transparência do jornal para com os seus leitores? Ao contrário do que é prática generalizada em muitos órgãos de comunicação quando se trata de noticiar ou não temas eventualmente perturbadores da sua vida interna, julgo que a publicação dessas informações deve seguir os mesmos critérios de relevância jornalística e interesse público que se aplicam a qualquer outra matéria noticiosa.
É esse, aliás, o sentido do preceito do Livro de Estilo do PÚBLICO que, em nome da lealdade para com os leitores, diz que estes devem ser informados, “em primeira mão se possível”, sobre “as questões laborais, éticas ou económicas relevantes” respeitantes a uma empresa que tem na informação a sua razão de existir. Como se escreve nesse documento orientador em matéria ética e deontológica, “o PÚBLICO-jornal não pode ignorar o PÚBLICO-sujeito da notícia, por mais delicado que seja o assunto em causa”.
Vem isto a propósito da mensagem que me enviou o leitor Betâmio de Almeida — “um reparo”, nas suas palavras, “à forma como o PÚBLICO tem informado os seus leitores sobre o processo Miguel Relvas”, desde que foram conhecidas as ameaças feitas por aquele ministro a este jornal e, em especial, à jornalista Maria José Oliveira, para tentar evitar a publicação de uma notícia acerca das suas relações com o ex-espião Silva Carvalho, acusado de vários crimes no âmbito do chamado “caso das secretas”.
Argumentando que “a confiança e a fidelidade dos leitores exige uma atenção especial na comunicação dos factos e acontecimentos relacionados com o próprio PÚBLICO”, o autor da mensagem considera que a informação sobre o caso “não tem sido suficientemente transparente”, e comenta: “É estranho que saibamos de outras fontes ou de forma muito indirecta o que se vai passando”.
Se as “outras fontes” referidas pelo leitor são certamente os diversos meios que têm noticiado os desenvolvimentos do caso, incluindo as suas sequelas na redacção do PÚBLICO (a que terão reconhecido interesse jornalístico), ele próprio explica o que entende por conhecimento de forma “ indirecta”, referindo-se à edição de anteontem, 8 de Junho: “Fui surpreendido por um post-scriptum, no final do artigo de Francisco Teixeira da Mota [colunista e advogado do jornal], que reza: ‘O abandono do PÚBLICO pela jornalista Maria José Oliveira, independentemente das razões para a sua decisão, para além de ser um prejuízo para o jornal, é uma miserável vitória do inefável ministro Relvas’ (fim de citação)”.
“Independentemente das razões? Li bem? Então a jornalista está no centro de um caso de possível censura e ameaça e abandona o jornal sem sabermos a razão? (…) Sabemos por um P.S.? (…) Qual é o papel da direcção? Os leitores não terão o direito de saber, de participar? A senhora jornalista não tem o direito ou o dever de dialogar com os leitores?”, pergunta Betâmio de Almeida, deixando ainda um desabafo: “Sinto — me tratado como criança… Estarei mesmo num país com imprensa livre?”.
Outros leitores pediram-me que esclarecesse ou comentasse as notícias de vários órgãos de informação que anunciaram ter Maria José Oliveira apresentado a sua demissão do PÚBLICO na passada segunda-feira. É às partes envolvidas que cabe, certamente, dar ou não explicações a esse respeito. Algumas declarações foram aliás tornadas públicas, embora não neste jornal. Maria José Oliveira disse à agência Lusa que “a forma como o processo foi gerido” lhe fez “perder a confiança na direcção”, levando-a a concluir que “não tinha condições nem vontade para continuar no jornal”.
Antes, em resposta a perguntas que lhe dirigi, afirmara não ter autorizado o jornal a divulgar, como fez, a ameaça concreta que lhe fora dirigida pelo ministro (ponto em que a sua versão não coincide com a de responsáveis editoriais do PÚBLICO), e criticara o facto de essa divulgação ter ignorado, num primeiro momento, que a “informação” que Relvas ameaçou “pôr na Internet” era falsa, tendo por objectivo fazer passar para a opinião pública a ideia de que o seu trabalho jornalístico obedeceria a uma “agenda ideológica”. Na sua análise, essa tentativa de descredibilização terá sido em parte alcançada, e a jornalista atribuirá por isso alguma responsabilidade à direcção do jornal que entretanto abandonou.
Quanto à direcção, que já anteriormente reiterara a sua “total confiança na competência profissional” da jornalista, foi citada pelo Correio da Manhã uma declaração da directora, Bárbara Reis: “Até ao fim, transmitimos a Maria José Oliveira a ideia de que a melhor forma de darmos um passo em frente era ela voltar a trabalhar, retomar o dossier das secretas e fazer novas notícias sobre o tema. Infelizmente, a sua decisão foi diferente”.
Nenhum destes dados foi conhecido através do PÚBLICO, e foi também, principalmente, por outros meios que se soube que o modo como o caso das ameaças de Relvas foi gerido pelos responsáveis editoriais — tema sobre o qual exprimi aqui a minha opinião há duas semanas — provocara divisões no interior do jornal, incluindo episódios como a demissão do Conselho de Redacção e a posterior reeleição, com idêntica composição, deste órgão representativo dos jornalistas, ao qual são legalmente reconhecidas competências relevantes.
Na minha opinião, têm razão os leitores que, como Betâmio de Almeida reclamam mais e melhor informação sobre um tema de interesse público, e sobre o próprio debate interno gerado em torno da avaliação das ameaças de Relvas e da forma de a elas reagir. Como têm razão os que a propósito deste incidente chamaram a atenção para as zonas de obscuridade no universo mediático e para os sinais de falta de distanciamento entre certos jornalistas e as suas fontes. A transparência de procedimentos nos jornais é em primeiro lugar um dever para com os seus leitores, e a confiança na qualidade da informação não pode dispensar — contra a má tradição dominante — o escrutínio daqueles que a produzem.
Creio que a direcção do PÚBLICO começou por subestimar o significado ético e político da atitude de Relvas e acabou por privilegiar a vertente jurídica da situação criada. Considero que, para a avaliação da ameaça ministerial de “pôr na Internet” (presume-se que sem o assumir pessoalmente) “detalhes da vida privada” — como foi inicialmente noticiado — de uma jornalista que lhe fazia perguntas incómodas, é razoavelmente irrelevante saber-se quais são esses detalhes, e se correspondem ou não à verdade. É a ameaça em si, e o comportamento chantagista e de abuso intolerável que revela, que torna de manifesto interesse público saber-se que o seu autor é um governante especialmente poderoso, de quem poderá legitimamente suspeitar-se que possa recorrer a métodos semelhantes face a adversários políticos ou outros cidadãos. Não descortino, pelo contrário, que interesse público possa justificar que um jornal que no estatuto editorial “reconhece como seu único limite o espaço privado dos cidadãos” tenha acabado por explicitar nas suas páginas o que o ministro ameaçara “pôr na Internet”.
Admito que estes acontecimentos possam ter abalado, junto de alguns leitores, a percepção da redacção do PÚBLICO como um espaço geneticamente marcado por uma cultura jornalística de liberdade e responsabilidade, assente no debate aberto, crítico e autocrítico, sem a qual não teria conquistado a posição reconhecida de jornal de qualidade e referência. E julgo interpretar o interesse dos leitores apelando à sua redacção e direcção para que encontrem, através do diálogo e do franco reconhecimento de erros ou de simples equívocos, o caminho para ultrapassar quaisquer sombras que possam prejudicar a confiança dos que o escolheram como seu jornal.
Não poderia concluir este texto sem outro apelo. O caso Relvas/PÚBLICO foi um episódio, apesar de tudo lateral e menor, provocado pela investigação de um escândalo de grandes proporções que afecta a nossa vida democrática. Estão errados os que, em nome da prioridade do combate à crise financeira, menosprezam a importância da confiança pública nos serviços secretos, desvalorizam os inúmeros sinais de promiscuidade entre representantes do Estado e interesses privados mais ou menos obscuros ou retiram importância às demonstrações de uma relação tortuosa com a verdade por parte de um ministro. A clarificação do “caso das secretas”, em todas as suas vertentes, deve ser vista como uma prioridade informativa. Os leitores do PÚBLICO têm direito a vê-la assumida nestas páginas.
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Documentação complementar
Carta do leitor A. Betâmio de Almeida
Na qualidade de leitor persistente e atento desejo fazer um reparo à forma como o Público tem informado os seus leitores sobre o processo Miguel Relvas. Não obstante ser um leitor diário, não posso garantir ter totalmente razão mas, na minha opinião, a informação sobre este assunto não tem sido suficientemente transparente.
A confiança e a fidelidade dos leitores exige uma atenção especial na comunicação dos factos e acontecimentos relacionados com o próprio Público. É estranho que saibamos de outras fontes ou de forma muito indirecta o que se vai passando. O conhecimento por comunicado oficial é muito pouco, é frio e lembra tempos de triste memória.
Hoje, fui surpreendido por um P.S. no final do artigo de Francisco Teixeira da Mota, que reza: “O abandono do Público pela jornalista Maria José Oliveira, independentemente das razões para a sua decisão, para além de ser um prejuízo para o jornal, é uma miserável vitória do inefável ministro Relvas” (fim de citação).
Independentemente das razões? Li bem? Então a jornalista está no centro de caso de possível censura e ameaça e abandona o jornal sem sabermos a razão?
Repete-se a situação: há um problema, o jornalista sai… Sabemos por um P.S. ? Estarei enganado? Foi devidamente publicado e esclarecido? Já estaria programado, por motivos pessoais? O mercado está muito favorável e é fácil encontrar uma posição melhor (!); é por razões de saúde?
Sinto — me tratado como criança… Estarei mesmo num país com imprensa livre? Os leitores, os colegas de profissão, o provedor, o regulador… todos aceitam esta situação?
Qual é o papel da Direcção? Os leitores não terão o direito de saber, de participar? A senhora jornalista não tem o direito ou o dever de dialogar com os leitores? Foi afastada? Julgada? Sofreu uma pressão psicológica?
Venho, assim, solicitar que, com a máxima urgência possível (no próximo texto ou em texto especial), analise esta questão e esclareça cabalmente os leitores. Aceito que possa estar equivocado mas o que estou agora é confuso e já bastante indignado.
8 de Junho de 2012
A.Betâmio de Almeida