Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

Até onde deve ir a obri­ga­ção de trans­pa­rên­cia do jor­nal para com os seus lei­to­res? Ao con­trá­rio do que é prá­tica gene­ra­li­zada em mui­tos órgãos de comu­ni­ca­ção quando se trata de noti­ciar ou não temas even­tu­al­mente per­tur­ba­do­res da sua vida interna, julgo que a publi­ca­ção des­sas infor­ma­ções deve seguir os mes­mos cri­té­rios de rele­vân­cia jor­na­lís­tica e inte­resse público que se apli­cam a qual­quer outra maté­ria noticiosa.

É esse, aliás, o sen­tido do pre­ceito do Livro de Estilo do PÚBLICO que, em nome da leal­dade para com os lei­to­res, diz que estes devem ser infor­ma­dos, “em pri­meira mão se pos­sí­vel”, sobre “as ques­tões labo­rais, éticas ou eco­nó­mi­cas rele­van­tes” res­pei­tan­tes a uma empresa que tem na infor­ma­ção a sua razão de exis­tir. Como se escreve nesse docu­mento ori­en­ta­dor em maté­ria ética e deon­to­ló­gica, “o PÚBLICO-jornal não pode igno­rar o PÚBLICO-sujeito da notí­cia, por mais deli­cado que seja o assunto em causa”.

Vem isto a pro­pó­sito da men­sa­gem que me enviou o lei­tor Betâ­mio de Almeida — “um reparo”, nas suas pala­vras, “à forma como o PÚBLICO tem infor­mado os seus lei­to­res sobre o pro­cesso Miguel Rel­vas”, desde que foram conhe­ci­das as ame­a­ças fei­tas por aquele minis­tro a este jor­nal e, em espe­cial, à jor­na­lista Maria José Oli­veira, para ten­tar evi­tar a publi­ca­ção de uma notí­cia acerca das suas rela­ções com o ex-espião Silva Car­va­lho, acu­sado de vários cri­mes no âmbito do cha­mado “caso das secretas”.

Argu­men­tando que “a con­fi­ança e a fide­li­dade dos lei­to­res exige uma aten­ção espe­cial na comu­ni­ca­ção dos fac­tos e acon­te­ci­men­tos rela­ci­o­na­dos com o pró­prio PÚBLICO”, o autor da men­sa­gem con­si­dera que a infor­ma­ção sobre o caso “não tem sido sufi­ci­en­te­mente trans­pa­rente”, e comenta: “É estra­nho que sai­ba­mos de outras fon­tes ou de forma muito indi­recta o que se vai passando”.

Se as “outras fon­tes” refe­ri­das pelo lei­tor são cer­ta­mente os diver­sos meios que têm noti­ci­ado os desen­vol­vi­men­tos do caso, incluindo as suas seque­las na redac­ção do PÚBLICO (a que terão reco­nhe­cido inte­resse jor­na­lís­tico), ele pró­prio explica o que entende por conhe­ci­mento de forma “ indi­recta”, referindo-se à edi­ção de ante­on­tem, 8 de Junho: “Fui sur­pre­en­dido por um post-scriptum, no final do artigo de Fran­cisco Tei­xeira da Mota [colu­nista e advo­gado do jor­nal], que reza: ‘O aban­dono do PÚBLICO pela jor­na­lista Maria José Oli­veira, inde­pen­den­te­mente das razões para a sua deci­são, para além de ser um pre­juízo para o jor­nal, é uma mise­rá­vel vitó­ria do ine­fá­vel minis­tro Rel­vas’ (fim de citação)”.

“Inde­pen­den­te­mente das razões? Li bem? Então a jor­na­lista está no cen­tro de um caso de pos­sí­vel cen­sura e ame­aça e aban­dona o jor­nal sem saber­mos a razão? (…) Sabe­mos por um P.S.? (…) Qual é o papel da direc­ção? Os lei­to­res não terão o direito de saber, de par­ti­ci­par? A senhora jor­na­lista não tem o direito ou o dever de dia­lo­gar com os lei­to­res?”, per­gunta Betâ­mio de Almeida, dei­xando ainda um desa­bafo: “Sinto — me tra­tado como cri­ança… Esta­rei mesmo num país com imprensa livre?”.

Outros lei­to­res pediram-me que escla­re­cesse ou comen­tasse as notí­cias de vários órgãos de infor­ma­ção que anun­ci­a­ram ter Maria José Oli­veira apre­sen­tado a sua demis­são do PÚBLICO na pas­sada segunda-feira. É às par­tes envol­vi­das que cabe, cer­ta­mente, dar ou não expli­ca­ções a esse res­peito. Algu­mas decla­ra­ções foram aliás tor­na­das públi­cas, embora não neste jor­nal. Maria José Oli­veira disse à agên­cia Lusa que “a forma como o pro­cesso foi gerido” lhe fez “per­der a con­fi­ança na direc­ção”, levando-a a con­cluir que “não tinha con­di­ções nem von­tade para con­ti­nuar no jornal”.

Antes, em res­posta a per­gun­tas que lhe dirigi, afir­mara não ter auto­ri­zado o jor­nal a divul­gar, como fez, a ame­aça con­creta que lhe fora diri­gida pelo minis­tro (ponto em que a sua ver­são não coin­cide com a de res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais do PÚBLICO), e cri­ti­cara o facto de essa divul­ga­ção ter igno­rado, num pri­meiro momento, que a “infor­ma­ção” que Rel­vas ame­a­çou “pôr na Inter­net” era falsa, tendo por objec­tivo fazer pas­sar para a opi­nião pública a ideia de que o seu tra­ba­lho jor­na­lís­tico obe­de­ce­ria a uma “agenda ide­o­ló­gica”. Na sua aná­lise, essa ten­ta­tiva de des­cre­di­bi­li­za­ção terá sido em parte alcan­çada, e a jor­na­lista atri­buirá por isso alguma res­pon­sa­bi­li­dade à direc­ção do jor­nal que entre­tanto abandonou.

Quanto à direc­ção, que já ante­ri­or­mente rei­te­rara a sua “total con­fi­ança na com­pe­tên­cia pro­fis­si­o­nal” da jor­na­lista, foi citada pelo Cor­reio da Manhã uma decla­ra­ção da direc­tora, Bár­bara Reis: “Até ao fim, trans­mi­ti­mos a Maria José Oli­veira a ideia de que a melhor forma de dar­mos um passo em frente era ela vol­tar a tra­ba­lhar, reto­mar o dos­sier das secre­tas e fazer novas notí­cias sobre o tema. Infe­liz­mente, a sua deci­são foi diferente”.

Nenhum des­tes dados foi conhe­cido atra­vés do PÚBLICO, e foi tam­bém, prin­ci­pal­mente, por outros meios que se soube que o modo como o caso das ame­a­ças de Rel­vas foi gerido pelos res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais — tema sobre o qual exprimi aqui a minha opi­nião há duas sema­nas — pro­vo­cara divi­sões no inte­rior do jor­nal, incluindo epi­só­dios como a demis­são do Con­se­lho de Redac­ção e a pos­te­rior ree­lei­ção, com idên­tica com­po­si­ção, deste órgão repre­sen­ta­tivo dos jor­na­lis­tas, ao qual são legal­mente reco­nhe­ci­das com­pe­tên­cias relevantes.

Na minha opi­nião, têm razão os lei­to­res que, como Betâ­mio de Almeida recla­mam mais e melhor infor­ma­ção sobre um tema de inte­resse público, e sobre o pró­prio debate interno gerado em torno da ava­li­a­ção das ame­a­ças de Rel­vas e da forma de a elas rea­gir. Como têm razão os que a pro­pó­sito deste inci­dente cha­ma­ram a aten­ção para as zonas de obs­cu­ri­dade no uni­verso mediá­tico e para os sinais de falta de dis­tan­ci­a­mento entre cer­tos jor­na­lis­tas e as suas fon­tes. A trans­pa­rên­cia de pro­ce­di­men­tos nos jor­nais é em pri­meiro lugar um dever para com os seus lei­to­res, e a con­fi­ança na qua­li­dade da infor­ma­ção não pode dis­pen­sar — con­tra a má tra­di­ção domi­nante — o escru­tí­nio daque­les que a produzem.

Creio que a direc­ção do PÚBLICO come­çou por subes­ti­mar o sig­ni­fi­cado ético e polí­tico da ati­tude de Rel­vas e aca­bou por pri­vi­le­giar a ver­tente jurí­dica da situ­a­ção cri­ada. Con­si­dero que, para a ava­li­a­ção da ame­aça minis­te­rial de “pôr na Inter­net” (presume-se que sem o assu­mir pes­so­al­mente) “deta­lhes da vida pri­vada” — como foi ini­ci­al­mente noti­ci­ado — de uma jor­na­lista que lhe fazia per­gun­tas incó­mo­das, é razo­a­vel­mente irre­le­vante saber-se quais são esses deta­lhes, e se cor­res­pon­dem ou não à ver­dade. É a ame­aça em si, e o com­por­ta­mento chan­ta­gista e de abuso into­le­rá­vel que revela, que torna de mani­festo inte­resse público saber-se que o seu autor é um gover­nante espe­ci­al­mente pode­roso, de quem poderá legi­ti­ma­mente suspeitar-se que possa recor­rer a méto­dos seme­lhan­tes face a adver­sá­rios polí­ti­cos ou outros cida­dãos. Não des­cor­tino, pelo con­trá­rio, que inte­resse público possa jus­ti­fi­car que um jor­nal que no esta­tuto edi­to­rial “reco­nhece como seu único limite o espaço pri­vado dos cida­dãos” tenha aca­bado por expli­ci­tar nas suas pági­nas o que o minis­tro ame­a­çara “pôr na Internet”.

Admito que estes acon­te­ci­men­tos pos­sam ter aba­lado, junto de alguns lei­to­res, a per­cep­ção da redac­ção do PÚBLICO como um espaço gene­ti­ca­mente mar­cado por uma cul­tura jor­na­lís­tica de liber­dade e res­pon­sa­bi­li­dade, assente no debate aberto, crí­tico e auto­crí­tico, sem a qual não teria con­quis­tado a posi­ção reco­nhe­cida de jor­nal de qua­li­dade e refe­rên­cia. E julgo inter­pre­tar o inte­resse dos lei­to­res ape­lando à sua redac­ção e direc­ção para que encon­trem, atra­vés do diá­logo e do franco reco­nhe­ci­mento de erros ou de sim­ples equí­vo­cos, o cami­nho para ultra­pas­sar quais­quer som­bras que pos­sam pre­ju­di­car a con­fi­ança dos que o esco­lhe­ram como seu jornal.

Não pode­ria con­cluir este texto sem outro apelo. O caso Relvas/PÚBLICO foi um epi­só­dio, ape­sar de tudo late­ral e menor, pro­vo­cado pela inves­ti­ga­ção de um escân­dalo de gran­des pro­por­ções que afecta a nossa vida demo­crá­tica. Estão erra­dos os que, em nome da pri­o­ri­dade do com­bate à crise finan­ceira, menos­pre­zam a impor­tân­cia da con­fi­ança pública nos ser­vi­ços secre­tos, des­va­lo­ri­zam os inú­me­ros sinais de pro­mis­cui­dade entre repre­sen­tan­tes do Estado e inte­res­ses pri­va­dos mais ou menos obs­cu­ros ou reti­ram impor­tân­cia às demons­tra­ções de uma rela­ção tor­tu­osa com a ver­dade por parte de um minis­tro. A cla­ri­fi­ca­ção do “caso das secre­tas”, em todas as suas ver­ten­tes, deve ser vista como uma pri­o­ri­dade infor­ma­tiva. Os lei­to­res do PÚBLICO têm direito a vê-la assu­mida nes­tas páginas.

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Docu­men­ta­ção complementar

Carta do lei­tor A. Betâ­mio de Almeida

Na qua­li­dade de lei­tor per­sis­tente e atento desejo fazer um reparo à forma como o Público tem infor­mado os seus lei­to­res sobre o pro­cesso Miguel Rel­vas. Não obs­tante ser um lei­tor diá­rio, não posso garan­tir ter total­mente razão mas, na minha opi­nião, a infor­ma­ção sobre este assunto não tem sido sufi­ci­en­te­mente trans­pa­rente.

A con­fi­ança e a fide­li­dade dos lei­to­res exige uma aten­ção espe­cial na comu­ni­ca­ção dos fac­tos e acon­te­ci­men­tos rela­ci­o­na­dos com o pró­prio Público. É estra­nho que sai­ba­mos de outras fon­tes ou de forma muito indi­recta o que se vai pas­sando. O conhe­ci­mento por comu­ni­cado ofi­cial é muito pouco, é frio e lem­bra tem­pos de triste memó­ria.

Hoje, fui sur­pre­en­dido por um P.S. no final do artigo de Fran­cisco Tei­xeira da Mota, que reza: “O aban­dono do Público pela jor­na­lista Maria José Oli­veira, inde­pen­den­te­mente das razões para a sua deci­são, para além de ser um pre­juízo para o jor­nal, é uma mise­rá­vel vitó­ria do ine­fá­vel minis­tro Rel­vas” (fim de cita­ção).

Inde­pen­den­te­mente das razões? Li bem? Então a jor­na­lista está no cen­tro de caso de pos­sí­vel cen­sura e ame­aça e aban­dona o jor­nal sem saber­mos a razão?

Repete-se a situ­a­ção: há um pro­blema, o jor­na­lista sai… Sabe­mos por um P.S. ? Esta­rei enga­nado? Foi devi­da­mente publi­cado e escla­re­cido? Já esta­ria pro­gra­mado, por moti­vos pes­so­ais? O mer­cado está muito favo­rá­vel e é fácil encon­trar uma posi­ção melhor (!); é por razões de saúde?

Sinto — me tra­tado como cri­ança… Esta­rei mesmo num país com imprensa livre? Os lei­to­res, os cole­gas de pro­fis­são, o pro­ve­dor, o regu­la­dor… todos acei­tam esta situ­a­ção?

Qual é o papel da Direc­ção? Os lei­to­res não terão o direito de saber, de par­ti­ci­par? A senhora jor­na­lista não tem o direito ou o dever de dia­lo­gar com os lei­to­res? Foi afas­tada? Jul­gada? Sofreu uma pres­são psi­co­ló­gica?

Venho, assim, soli­ci­tar que, com a máxima urgên­cia pos­sí­vel (no pró­ximo texto ou em texto espe­cial), ana­lise esta ques­tão e escla­reça cabal­mente os lei­to­res. Aceito que possa estar equi­vo­cado mas o que estou agora é con­fuso e já bas­tante indig­nado.

8 de Junho de 2012

A.Betâmio de Almeida