“Entre os temas que na última semana dominaram a actualidade informativa — e foram vários, desde a mitigada declaração de inconstitucionalidade da retirada de rendimentos a pensionistas e funcionários públicos até às peripécias académicas do ministro Relvas —, é bem possível que no futuro venha a reconhecer-se que a mais importante notícia publicada por estes dias foi o anúncio da confirmação, ‘com 99,99% de certeza’, da existência do fugidio bosão de Higgs.
A descoberta anunciada pelo Laboratório Europeu de Física de Partículas foi descrita como a demonstração experimental da existência — postulada em 1964, entre outros, pelo físico Peter Higgs –, de uma partícula que confere massa às outras partículas do mundo subatómico, permitindo explicar, no quadro do chamado modelo-padrão da física contemporânea, ‘por que é que a matéria existe’.
Sem prejuízo da explicação deste feito científico em termos simultaneamente rigorosos e acessíveis — tanto quanto possível, dada a complexidade do tema — a leitores menos versados nos conceitos da física actual, o PÚBLICO, tal como outros órgãos de comunicação, optou por descrevê-lo, em títulos de maior impacto jornalístico, como sendo a descoberta da ‘partícula de Deus’. ‘Suspense aumenta à espera das últimas notícias da partícula de Deus’ foi o título escolhido para uma peça de antecipação publicada na última terça-feira, véspera do anúncio, no Público Online. E na capa da edição impressa de quinta-feira escreveu-se: ‘A ‘partícula de Deus’ existe, mas a história não acaba aqui’.
A escolha dessa expressão desagradou a alguns leitores, que consideraram inadequada e susceptível de más interpretações a utilização de conceitos estranhos à ciência para qualificar os resultados obtidos no acelerador de partículas instalado nos arredores de Genebra. O leitor Luís Mota classificou-a mesmo como uma ‘designação (…) demagógica, sensacionalista e/ou especulativa, (…) que pouco terá a ver com bom jornalismo’. Questionando que a sua utilização tenha algum ‘suporte na comunidade científica’, sugere que possa ter sido determinada pelo objectivo de ‘originar maiores parangonas’, ou mesmo por ‘razões da ordem do proselitismo’ (religioso, presume-se).
A autora das notícias em causa, Ana Gerschenfeld, concordando que os cientistas não apreciarão a expressão ‘partícula de Deus’, defende no entanto a sua utilidade. ‘Nada como uma boa metáfora’, escreve, ‘para transmitir uma mensagem complexa ao público em geral’. E recorda que o recurso à identificação da partícula ‘pelo nome pelo qual ela é mais conhecida’ foi também a escolha feita, neste contexto, em títulos e não só, por uma grande parte dos principais jornais de referência pelo mundo fora.
Penso que este é um bom exemplo para discutir a plasticidade de escrita requerida pelo jornalismo de divulgação científica e para reflectir sobre os seus dilemas específicos, a que procurarei dedicar uma futura crónica neste espaço. É claro que o recurso a metáforas e a analogias extraídas da experiência comum ou da cultura geral pode contribuir para explicar à maioria dos leitores de um jornal generalista o significado de conceitos e processos cuja descrição científica escapa ao seu conhecimento, quando não à sua compreensão, como acontecerá com as leis que regem ou as hipóteses que procuram explicar o estranho mundo das partículas subatómicas.
Por outro lado, esse e outros meios utilizados para procurar simplificar a informação transmitida, descodificar a terminologia própria da comunicação científica e atrair para um maior conhecimento dos avanços da ciência o interesse intelectual do leitor comum não podem ir ao ponto de pôr em causa o rigor técnico necessário à qualidade informativa. É por isso que o bom jornalismo sobre temas científicos exige não só a preparação específica de quem escreve sobre estas matérias, como um talento próprio para a divulgação — que, para ser eficaz, não pode subordinar-se às formas mais exigentes do discurso científico entre pares e, para ser sério, não pode afastar-se do seu verdadeiro conteúdo e alcance.
No caso da expressão ‘partícula de Deus’ pode discutir-se a sua pertinência à luz destes citérios, e convirá ter em conta que o seu propósito ilustrativo ou comparativo está aberto a leituras diversificadas. Sem esgotar as possibilidades, pode ver-se nela uma analogia entre a descrição popular das características do instável e esquivo bosão de Higgs e o não menos popular entendimento de Deus, nas religiões monoteístas, como ‘algo’ ou ‘alguém’ que ‘está em todo o lado, mas que não podemos ver’, isto é, que escapa ao conhecimento dos nossos sentidos. Ou uma comparação entre respostas fundamentais — uma de natureza científica, outra de carácter religioso ou filosófico — à mais velha das perguntas (‘por que existe o universo; por que existimos nós?’). Ou, mais simplesmente, um recurso estilístico para transmitir, recorrendo a campos de significação distintos, a noção de procura de resposta a um enigma ou mistério essencial que nos desafia.
Será mais útil, no entanto, conhecer a história da controversa expressão. Como explica o jornalista Nicolau Ferreira no espaço de destaque que o jornal dedicou a este tema no passado dia 5, a designação de ‘partícula de Deus’ dada ao bosão de Higgs surgiu pela primeira vez no título de um livro do físico Leon Lederman (‘The God Particle’). Poderíamos até atribuí-la ao reconhecido sentido de humor do autor, não fora a explicação dada para o caso pelo próprio Peter Higgs, que é recordada nessa peça. Lederman terá querido chamar ao livro ‘The goddamn particle’ (qualquer coisa como ‘a maldita partícula’, ou ‘o raio da partícula’, cuja busca então excitava a imaginação dos físicos), e terá sido o seu editor que, tendo recusado essa ideia, nela encontrou talvez a inspiração para, com ironia ou sentido de marketing editorial, cunhar a expressão que desde então ficou colada, na imprensa, à partícula de Higgs e ao enorme investimento científico destinado a comprovar a sua existência.
Agora que esse esforço parece ter sido bem sucedido, mantém-se a controvérsia em torno da expressão: enquanto alguns apreciarão o seu poder simbólico, ela continuará a desagradar, mesmo como simples designação popular, a muitos cientistas, especialmente aos que vêem sinais de obscurantismo na mistura de entidades transcendentes com as hipóteses explicativas próprias da ciência. Como aconteceria, neste caso, com a sugestiva aproximação que o nome ‘partícula de Deus’ pode estabelecer entre a ‘causa primeira’ dos teólogos e este bosão cujas propriedades ajudarão a explicar ‘por que é que a matéria existe’. Curiosamente, a questão inquieta menos as autoridades religiosas, como se pode concluir do interessante artigo que António Marujo assinou na quinta-feira na edição on line, dando conta da ‘comoção e entusiasmo’ com que o jornal do Vaticano e responsáveis da Igreja Católica em Portugal acolheram a descoberta da partícula… de Higgs.
Em suma, não vejo razões para criticar ou considerar ‘sensacionalista’ o uso da expressão ‘partícula de Deus’ nos títulos do PÚBLICO, desde que ela seja explicada (como foi na edição de quinta-feira) e usada com a moderação e o cuidado correspondentes ao facto de não possuir, obviamente, qualquer rigor científico. Procurar títulos sugestivos e imagens que facilitem a aproximação dos leitores aos temas noticiados é próprio do jornalismo. Fazê-lo na justa medida, sem sacrifício do rigor, da contextualização e da qualidade informativa, é o método que afasta as tentações mercantilistas e demagógicas do sensacionalismo.
Resta acrescentar que neste caso, para além de uma metáfora, estamos, como mostra a história da expressão, perante uma espécie de alcunha popularizada para designar um entidade física. E as alcunhas ou epítetos, referentes a pessoas ou objectos, devem, por razões de clareza e rigor (e de respeito, no caso das pessoas), ser grafadas entre aspas. Como o PÚBLICO fez (bem), com a ‘partícula de Deus’, na capa de 5 de Julho e no noticiário sobre este tema, mas não fez (a meu ver, mal) no título da peça da edição on line que desagradou ao leitor Luís Mota.”