Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

José Queirós

“O recente e con­tro­verso acór­dão do Tri­bu­nal Cons­ti­tu­ci­o­nal que, em nome do prin­cí­pio da igual­dade, impede a par­tir do pró­ximo ano os cor­tes dos sub­sí­dios de férias e de Natal dos fun­ci­o­ná­rios públi­cos e dos pen­si­o­nis­tas ‘veio rea­brir o debate que opõe tra­ba­lha­do­res do pri­vado e fun­ci­o­ná­rios públi­cos, res­sus­ci­tando ideias há muito enrai­za­das na soci­e­dade por­tu­guesa’ — lia-se a abrir as pági­nas de Des­ta­que deste jor­nal no pas­sado domingo, 29 de Julho.

A par­tir dessa cons­ta­ta­ção de actu­a­li­dade, o PÚBLICO pro­por­ci­o­nou aos seus lei­to­res, num extenso tra­ba­lho assi­nado pela jor­na­lista Raquel Mar­tins, uma lei­tura orga­ni­zada de infor­ma­ções e dados esta­tís­ti­cos, bem como de aná­li­ses e opi­niões de vários espe­ci­a­lis­tas, que per­mite exa­mi­nar a vali­dade das refe­ri­das ideias ‘enrai­za­das’ e pon­de­rar o que tem vindo a alterar-se na rela­ção entre os regi­mes labo­rais da fun­ção pública e do sec­tor privado.

A reco­lha e inter­pre­ta­ção dos dados dis­po­ní­veis mos­tra que a afir­ma­ção gené­rica cor­rente de que o tra­ba­lho para o Estado é por regra mais bem pago e mais seguro não resiste a uma aná­lise da diver­si­dade das situ­a­ções e da evo­lu­ção dos enqua­dra­men­tos legais, o que deve­ria pelo menos obri­gar a tem­pe­rar um dis­curso polí­tico des­ti­nado a sus­ten­tar medi­das de aus­te­ri­dade que pena­li­zam com espe­cial dureza os fun­ci­o­ná­rios públicos.

De entre as con­clu­sões que este tra­ba­lho jor­na­lís­tico per­mite for­mu­lar com razoá­vel segu­rança res­sal­tam ideias como as de que ‘os regi­mes labo­rais da fun­ção pública e do sec­tor pri­vado têm vindo a aproximar-se’ ou que ‘tra­ba­lhar para o Estado ainda com­pensa, mas não para os mais qua­li­fi­ca­dos’, tendo esta última sido esco­lhida para man­chete da edi­ção desse domingo.

Sejam ou não essas as con­clu­sões que mere­ce­riam maior ênfase edi­to­rial (e eu penso que eram), creio que os lei­to­res pude­ram encon­trar, no con­junto das peças infor­ma­ti­vas que com­pu­nham esse dos­sier de cinco pági­nas, um tra­ba­lho opor­tuno, com­pe­tente e escla­re­ce­dor, que per­mite a cada um for­mar as suas pró­prias opi­niões sobre um tema forte da actu­a­li­dade. É o que deve­ria esperar-se, por sis­tema, de uma ini­ci­a­tiva jor­na­lís­tica esco­lhida para tema de des­ta­que deste diário.

Mesmo os tra­ba­lhos bem con­se­gui­dos não estão, porém, isen­tos de crí­tica. Embora reco­nhe­cendo que as peças publi­ca­das são ‘glo­bal­mente equi­li­bra­das’ e ‘colo­cam bem os pro­ble­mas’, o soció­logo e inves­ti­ga­dor André Freire encon­trou nelas dois ‘erros meto­do­ló­gi­cos’, que em seu enten­der ‘pres­tam um mau ser­viço ao neces­sá­rio des­fa­zer de pre­con­cei­tos ide­o­lo­gi­ca­mente cons­truí­dos con­tra a Fun­ção Pública’. Seria o caso das pas­sa­gens em que se escre­veu que ‘em média, ganha-se mais no Estado’ e que ‘a pen­são média (…) paga pela Segu­rança Social estava em 2011 muito pró­xima dos 400 euros, enquanto na fun­ção pública ultra­pas­sava os 1200 euros’.

André Freire argu­menta que ‘estas médias não são de todo com­pa­rá­veis, por­que a estru­tura das qua­li­fi­ca­ções é incom­pa­ra­vel­mente mais ele­vada na Admi­nis­tra­ção Pública (e Ser­vi­ços Autó­no­mos) do que no Sec­tor Pri­vado’. Refere que, segundo os últi­mos dados que conhece, ‘ há no sec­tor público cerca de 45 por cento de pes­soas com for­ma­ção supe­rior, enquanto que no pri­vado há cerca de 13 por cento, logo a remu­ne­ra­ção média de salá­rios e de pen­sões não é, de todo em todo, com­pa­rá­vel com o que se passa no sec­tor pri­vado, sob pena de que­rer­mos ter ‘o mundo de per­nas para o ar’’.

A autora do tra­ba­lho faz notar que, numa das peças que assi­nou, afirma pre­ci­sa­mente que ‘não é fácil fazer com­pa­ra­ções entre salá­rios na fun­ção pública e no sec­tor pri­vado’, e que as con­clu­sões a que che­gou se apoiam em estu­dos cre­dí­veis, ela­bo­ra­dos pelo Banco de Por­tu­gal. Reco­nhece, no entanto, que ‘deve­ria ter dei­xado claro no texto prin­ci­pal do Des­ta­que que na fun­ção pública a per­cen­ta­gem de tra­ba­lha­do­res com for­ma­ção supe­rior é muito mais ele­vada do que no sec­tor pri­vado (por influên­cia dos pro­fes­so­res e dos médi­cos, por exem­plo), o que acaba por infla­ci­o­nar a média salarial’.

Raquel Mar­tins escreve ainda, e uma lei­tura atenta do seu tra­ba­lho per­mite confirmá-lo, que ‘o facto de não ter feito refe­rên­cia à ques­tão das qua­li­fi­ca­ções não teve qual­quer objec­tivo de acen­tuar pre­con­cei­tos em rela­ção aos fun­ci­o­ná­rios públi­cos’. ‘Muito pelo con­trá­rio’, acen­tua, o objec­tivo foi o de ‘ten­tar olhar para as dife­ren­ças entre público e pri­vado de forma enqua­drada e pro­cu­rando expli­car por que razão essas dife­ren­ças surgiram’.

Por mim, recordo que as com­pa­ra­ções esta­be­le­ci­das entre valo­res médios de qual­quer natu­reza não podem dis­pen­sar, no qua­dro de uma infor­ma­ção rigo­rosa, e avessa a qual­quer sim­plismo dema­gó­gico, a defi­ni­ção (e a desa­gre­ga­ção, se for o caso) dos uni­ver­sos com­pa­ra­dos. Con­si­dero que neste tra­ba­lho essa exi­gên­cia foi cum­prida no se refere à ques­tão prin­ci­pal a que se pro­pu­nha res­pon­der: a de saber se no sec­tor público se ‘ganha mais’ do que no pri­vado. A res­posta, devi­da­mente fun­da­men­tada, é natu­ral­mente afir­ma­tiva em ter­mos de média glo­bal (ainda que os núme­ros em que se cifra essa dife­rença média, data­dos de 2005, pro­va­vel­mente já não cor­res­pon­dam à rea­li­dade actual), mas tende a ser nega­tiva — e esse dado é devi­da­mente subli­nhado — quando se con­si­de­ram ape­nas as pro­fis­sões mais qualificadas.

Em con­tra­par­tida, a mesma exi­gên­cia não foi satis­feita com sufi­ci­ente cla­reza no ponto refe­rido por André Freire. De facto, a dife­rença estru­tu­ral entre os dois sec­to­res quanto ao peso das qua­li­fi­ca­ções pro­fis­si­o­nais, sig­ni­fi­ca­ti­va­mente mais ele­vado na fun­ção pública, terá sem­pre de con­di­ci­o­nar uma lei­tura ade­quada dos núme­ros glo­bais, como no caso refe­rido dos valo­res médios das pen­sões. Para que não se com­pare o que não é com­pa­rá­vel. Esta é, por­tanto, uma crí­tica per­ti­nente a um aspecto par­ti­cu­lar de um tra­ba­lho jor­na­lís­tico rele­vante e, no essen­cial, bem elaborado.

Esta­ção tonta?

Há erros tão pri­má­rios que custa ter de os refe­rir. Qual­quer jor­na­lista de um diá­rio tem obri­ga­ção de saber desde o seu pri­meiro dia de tra­ba­lho o que não esca­pa­ria a qual­quer pes­soa dotada de um mínimo de inte­li­gên­cia e bom senso: quando se escreve para o jor­nal em papel uma notí­cia sobre um acon­te­ci­mento ocor­rido nesse mesmo dia, não se diz que acon­te­ceu ‘hoje’, já que a notí­cia, como é óbvio, só será lida no dia seguinte. Nenhum apren­diz da pro­fis­são a quem seja pedido que uti­lize ou repro­duza um des­pa­cho de uma agên­cia noti­ci­osa pode igno­rar que deverá des­cre­ver como tendo acon­te­cido ‘ontem’ o que no texto da agên­cia se afirma ter suce­dido ‘hoje’.

São com­pre­en­sí­veis, por isso, e acer­ta­das, as pala­vras duras — ‘incom­pe­tên­cia, pre­guiça, ausên­cia abso­luta dos mais ele­men­ta­res cri­té­rios de rigor jor­na­lís­tico’ — esco­lhi­das pelo lei­tor José Oli­veira para mani­fes­tar o espanto com que leu no PÚBLICO, em notí­cia des­ta­cada da página 12 da edi­ção de sábado, 28 de Julho, que ‘o minis­tro da Edu­ca­ção [se] com­pro­me­teu hoje a ten­tar arran­jar horá­rios para todos os pro­fes­so­res do qua­dro…’, e que isso mesmo foi reve­lado pelo diri­gente sin­di­cal Mário Nogueira ‘aos cerca de 150 pro­fes­so­res que hoje se mani­fes­ta­ram frente ao Minis­té­rio da Edu­ca­ção e Ciência’.

Sem dei­xar de atri­buir, com alguma bene­vo­lên­cia, ao espí­rito da cha­mada ‘silly sea­son’ a ‘pérola’ que ‘nin­guém no PÚBLICO teve o cui­dado, ou o rigor, ou o bom senso de evi­tar’, o lei­tor nota que vira na vés­pera, num jor­nal tele­vi­sivo de sexta-feira, o que lhe diziam ter-se pas­sado nesse sábado, e acres­centa uma evi­dên­cia: ‘Seria abso­lu­ta­mente impos­sí­vel, do ponto de vista téc­nico, publi­car (…) hoje de manhã a notí­cia de um acon­te­ci­mento ocor­rido… hoje’.

Numa semana em que diver­sos lei­to­res pro­tes­ta­ram con­tra (passe o eufe­mismo) dife­ren­tes ‘des­cui­dos’ de edi­ção — permito-me des­ta­car o caso de mais um título de última página da edi­ção Porto (‘A repú­blica de KaZan­tip aca­bou…’; edi­ção de 1 de Agosto) a reme­ter para nenhu­res, já que a notí­cia ali sina­li­zada só foi publi­cada na metade sul do país —, seria bom que aler­tas como o de José Oli­veira fos­sem escu­ta­dos pelos res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais. E que o calen­dá­rio do PÚBLICO se fechasse às asnei­ras da esta­ção tonta.”