“A deontologia jornalística não é uma ciência exacta. Por trás de uma decisão editorial controversa esconde-se frequentemente um conflito entre valores contraditórios, para o qual as normas da ética profissional não são uma bússola à prova de erro. Ponderar os valores em confronto numa situação desse tipo e decidir quais devem prevalecer é a prova mais difícil a que estão sujeitos os responsáveis de um órgão de comunicação. É na história dessas escolhas que principalmente se funda a reputação de um jornal de qualidade e referência.
Tendo esta realidade bem presente, devo começar por reconhecer que não tenho uma resposta segura para a questão que hoje me ocupa: a avaliação da crítica veemente de um leitor à publicação da reportagem intitulada ‘Ninguém fechou Emanuel em casa, mas há 18 anos que o seu mundo está entre quatro paredes’, publicada no passado dia 22 de Julho na revista 2, que integra este diário aos domingos. Vejo nesse facto mais uma razão para analisar o caso, procurando alargar o debate que suscita.
Recorde-se o que se passou. Órgãos de informação menos escrupulosos lançaram a público, há pouco mais de um mês, a história de um cidadão de 38 anos que, segundo se lia nas notícias publicadas, não seria visto há quase duas décadas e poderia estar sequestrado na casa onde sempre vivera com a mãe, ou ter mesmo falecido há tempo indeterminado, permanecendo o seu corpo na referida habitação, como se especulou em peças jornalísticas ajustadas às expectativas mórbidas do mercantilismo sensacionalista.
Passaram alguns dias — que foram dias de romaria de repórteres de texto e de imagem à porta do cidadão em causa, com intensa mediatização das suspeitas lançadas no espaço público e compreensível alarme entre os conterrâneos — até que uma diligência do Ministério Público permitiu concluir que o protagonista de tão dramática campanha desinformativa se encontrava vivo e que era por sua livre vontade que não se dava a ver fora de casa. Como a sua mãe explicara, desde o início, a quem lhe rondara a porta.
O PÚBLICO, que não participara na histeria especulativa sobre o caso, noticiou de forma sóbria, no dia seguinte, o resultado da intervenção judicial. E voltou ao tema duas semanas depois nas páginas da revista 2, num registo de reportagem investigativa, tendo por objectivo — nas palavras do director adjunto Nuno Pacheco — abordá-lo ‘de forma humana, o mais próximo possível do protagonista central da história’, para ‘devolver ao caso a dignidade que ele merecia, afastando-o do campo da subjectividade e da especulação’. Pretendia-se ainda, como explica a editora da revista Paula Barreiros, ‘fazer chegar ao leitor um retrato o mais fiel possível (…) de alguém que há quase vinte anos não é visto socialmente’, até por se julgar que ‘isso poderia ser útil para outras pessoas em situações semelhantes’.
Parece-me que essas intenções foram no essencial bem sucedidas, apesar de a autora da reportagem— a jornalista Sara Dias Oliveira — não ter conseguido, contrariamente à sua expectativa inicial e por indisponibilidade dos próprios, recolher os depoimentos de Emanuel Castro (assim se chama, como foi amplamente noticiado, o cidadão cujo estilo de vida alvoroçou jornais e televisões), bem como das suas mãe e irmã. Ouviu e citou, no entanto, entre muitas outras, várias pessoas próximas da família, incluindo um vizinho que mantém contacto directo com o cidadão que não gosta de sair de casa e afirma que este se mantém ligado ao mundo através da televisão, Internet, livros e jornais (‘há muitos anos que não dispensa a leitura semanal do Expresso’).
Como poderá constatar quem tenha lido ou venha a ler essa reportagem da revista do PÚBLICO, o texto assinado por Sara Dias Oliveira é uma peça esclarecedora e equilibrada, que reconstitui de forma coerente, contextualizada e com abundância de pormenores a história de Emanuel Castro. Recolhe opiniões contrastadas sobre as causas e influências que explicarão uma situação invulgar que terá perturbado muitos leitores, e transcreve depoimentos de vários especialistas confrontados com o que neste caso possa pertencer ao foro psiquiátrico.
Apesar do seu mérito jornalístico, a reportagem foi vivamente criticada pelo leitor Fernando Azevedo, que começa por considerar uma manifestação de ‘ignorância’ o facto de nela não se referir que ‘existe uma doença chamada agorafobia, cujos sintomas são exactamente os descritos para o caso referido’. A isto respondem os responsáveis editoriais do PÚBLICO (e eu concordo) que não caberia ao jornal avançar um diagnóstico, que poderia ter sido sugerido, e não foi, pelos especialistas ouvidos.
Não é esse, no entanto, o ponto central da crítica do leitor, que se afirma ‘profundamente revoltado’ pelo que viu como ‘uma falta de respeito pelos mais fundamentais direitos humanos da pessoa visada na peça’. Chocou-o o facto de não ter encontrado no texto da revista ‘a autorização expressa do Emanuel para que sejam revelados ao mundo os pormenores da sua história clínica’, e questiona com que direito se revelam essas informações sem o ‘consentimento’ do próprio, para mais quando ‘existe ainda bastante preconceito e ignorância sobre as doenças psiquiátricas’. Classificando a reportagem como ‘ desumana’, pergunta ‘qual a justificação’ para a sua publicação ‘num jornal de referência’.
As informações em causa, explica a autora do trabalho, foram sobretudo retiradas do processo judicial a que o caso deu lugar e confirmadas por pessoas próximas de Emanuel Castro. Salienta que foram utilizadas, ‘não para desrespeitar a [sua] privacidade, mas para esclarecer uma história que (…) tinha pontas soltas por explicar’ e que agitara a ‘comunidade local’, onde ‘havia muita gente com a ideia de que a mãe o tinha fechado em casa’. Sara Dias Oliveira considera, aliás, que a disponibilidade de pessoas próximas da família para ‘transmitir dados mais pessoais’ pode ser interpretada como ‘uma vontade de esclarecer’ informações deturpadas que tinham vindo a público. E acrescenta que não lhe chegou, através dessas fontes, qualquer sinal ‘de que a família tivesse reagido negativamente à divulgação dos dados’.
A jornalista defende por isso que, apesar de não ter obtido uma autorização formal do protagonista do caso para divulgar elementos da sua vida pessoal, se justificou avançar com a sua publicação, num ‘trabalho sério’ para ‘aprofundar o tema’, face à ‘relevância’ de um caso ‘que estava a ser amplamente discutido, mas a que faltavam pormenores essenciais’.
Há aqui duas questões a discutir. A primeira é a de saber se o PÚBLICO deveria ou não ter noticiado e aprofundado esta história. A imprensa de qualidade é frequentemente confrontada com um problema clássico no que respeita à divulgação de informações que representam uma invasão indevida da vida privada, nomeadamente de figuras públicas. Se recusa fazê-lo, mas vê esses dados (verdadeiros ou falsos, não importa) serem lançados com estrondo no espaço público pelos media de vocação tablóide, passa a ter de escolher entre manter o silêncio inicial ou quebrá-lo face a uma mediatização que pode ela mesma, por vezes, conferir interesse público a um tema que à partida não o tinha.
Este é um terreno escorregadio, onde convirá evitar cedências fáceis, mas em que deverão prevalecer as noções de serviço público e de esclarecimento dos factos. Neste caso, julgo que o PÚBLICO fez bem em noticiar a diligência judicial que permitiu repor a verdade face a suspeitas de crime lançadas levianamente por outros órgãos de comunicação, que fez bem em querer aprofundar o tema (pelas razões invocadas pela jornalista e pelos responsáveis editoriais) e que o fez de forma séria e esclarecedora.
Resta saber se, para o conseguir, tinha o direito de revelar, sem autorização específica do próprio, dados da vida privada e da história clínica de um cidadão cujo nome e local de habitação são revelados. Não é por acaso que se lê no estatuto editorial do PÚBLICO que este jornal ‘reconhece como seu único limite o espaço privado dos cidadãos’ e que as suas normas consideram ‘violação da privacidade’ a ‘divulgação de factos da vida pessoal’ e a ‘exploração de (…) dramas de natureza pessoal ou familiar’, e estabelecem como regra que ‘o direito à privacidade sobreleva o direito e o dever de informar’. Nem é por acaso que no Livro de Estilo do jornal se afirma que ‘a revelação do diagnóstico de saúde’ de uma pessoa pertence ‘exclusivamente’ a essa pessoa ou, ‘na sua impossibilidade’, aos ‘seus familiares’.
Estes são, de facto, valores fundamentais. É por isso que, mesmo reconhecendo a legitimidade de uma ponderação diversa do dilema ético aqui exposto, me inclino a concordar com a crítica do leitor Fernando Azevedo. A autorização para divulgar dados de natureza privada deveria ter sido pedida. A não ser obtida, a reportagem deveria ter sido reformulada ou, em alternativa, a sua publicação deveria aguardar por novas diligências junto de Emanuel Castro e da sua família. Mesmo sacrificando — é justo sublinhá-lo — um oportuno trabalho jornalístico e parte do resultado de uma procura esforçada da verdade.”