Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

José Queirós

“Há casos em que uma recla­ma­ção diz tudo o que tem de ser dito. A men­sa­gem que o lei­tor Paulo Belém me reme­teu, expres­sando a sua indig­na­ção pelo con­teúdo do título prin­ci­pal da capa do jor­nal na pas­sada quinta-feira ('Um enorme aumento de impos­tos' subs­ti­tui recuo na TSU) é um bom exem­plo. 'Leio o Público desde que há Público e não me lem­bro de uma capa assim', começa por dizer o lei­tor, para acres­cen­tar: 'No dia em que se noti­cia o maior aumento de impos­tos de sem­pre em Por­tu­gal, num momento par­ti­cu­lar­mente grave no país, e quando, por esta razão, se espera da imprensa uma ati­tude par­ti­cu­lar­mente ínte­gra, vigi­lante, asser­tiva, pre­cisa, objec­tiva e lúcida, o meu jor­nal de sem­pre oferece-me um título abso­lu­ta­mente vergonhoso'.

Feita a acu­sa­ção, Paulo Belém passa a explicá-la: 'Não é pre­ciso ser espe­ci­a­lista na área para per­ce­ber que a capa do Público é um ver­da­deiro embuste. É claro como a água que a medida da TSU não tinha grande impacto no défice (cerca de 500 milhões de euros). Era ape­nas a con­cre­ti­za­ção do las­tro ide­o­ló­gico da polí­tica deste governo. A ser levada por diante seria ape­nas a parte 1 de um pacote mais vasto que, de uma maneira ou de outra, iria incluir medi­das muito pró­xi­mas das agora anun­ci­a­das para fazer face ao défice (…). Clas­si­fi­car o ‘enorme aumento de impos­tos’ como uma medida de subs­ti­tui­ção não faz sen­tido nenhum, é enga­nar os lei­to­res, é men­tir. É tapar os olhos. Fico por isso escan­da­li­zado quando é nas pági­nas inte­ri­o­res do Público que encon­tro um edi­to­rial que des­mente a 1ª página'.

Assim é. No edi­to­rial dessa edi­ção afirma-se cla­ra­mente que 'a nova vaga de aus­te­ri­dade não é uma alter­na­tiva à TSU' (isto é, à deci­são anun­ci­ada, e depois aban­do­nada, de agra­var o valor da taxa social única paga pelos tra­ba­lha­do­res e diminuí-lo para as empre­sas). Enquanto nesse pro­jecto, pros­se­gue o edi­to­rial, 'o aumento das con­tri­bui­ções iria quase exclu­si­va­mente para as empre­sas, os aumen­tos de impos­tos vão direi­tos para esse buraco que é o défice'.

O lei­tor chama ainda a aten­ção para o facto de a ideia ter sido repe­tida num comen­tá­rio assi­nado pelo direc­tor adjunto Manuel Car­va­lho, nesse mesmo dia 4 de Outu­bro, na edi­ção on line. Nele se podia ler: 'Com a TSU, o Governo pre­ten­dia supe­rar o veto do Tri­bu­nal Cons­ti­tu­ci­o­nal, ten­tando ao mesmo tempo bene­fi­ciar as empre­sas em nome da competitividade. Com o aumento de impos­tos (…) o que está em causa é ape­nas a neces­si­dade de tapar um défice glu­tão que devora os ren­di­men­tos, o Estado e a eco­no­mia. Quer isto dizer que, mesmo que a nova TSU fosse apro­vada, o Governo teria de aumen­tar os impos­tos para satis­fa­zer as metas do défice ins­cri­tas no pro­grama do ajustamento'.

'Como é que, afi­nal, pode o ‘enorme aumento de impos­tos’ subs­ti­tuir a TSU, como se lê na capa do Público (mas que o pró­prio Público des­mente)?', per­gunta Paulo Belém, con­cluindo: 'Não é acei­tá­vel esta capa no meu jor­nal'. Não é, de facto. Compreende-se que haja quem tenha que­rido fazer pas­sar a ideia de que a anun­ci­ada trans­fe­rên­cia maciça de recur­sos dos cida­dãos para o Estado, para aba­ter ao défice, foi a alter­na­tiva encon­trada, face a uma notá­vel mobi­li­za­ção cívica, para com­pen­sar o recuo no que antes foi jus­ta­mente des­crito como uma igual­mente maciça trans­fe­rên­cia de ren­di­men­tos do tra­ba­lho para o patro­nato. Mas que o PÚBLICO tenha feito sua esta ver­são enga­na­dora não abona a favor de uma ima­gem de inde­pen­dên­cia, cre­di­bi­li­dade e com­pe­tên­cia. Não se trata de uma ques­tão de opi­nião, mas de rigor informativo.

Nuno Pacheco, tam­bém direc­tor adjunto, reco­nhece o erro e refere que 'o título cor­recto, se optás­se­mos por man­ter a lógica deste, seria ‘Um enorme aumento de impos­tos’ depois do recuo na TSU'. Na ver­dade, nada na peça de aber­tura das pági­nas de des­ta­que de quinta-feira per­mite sus­ten­tar a man­chete que saiu para as ban­cas, ainda que se possa, com exces­siva bene­vo­lên­cia, encon­trar uma expli­ca­ção para o erro no facto de esse texto, e a info­gra­fia que o acom­pa­nha, assen­ta­rem em parte numa com­pa­ra­ção entre as medi­das divul­ga­das a 3 de Outu­bro e as anun­ci­a­das a 11 de Setem­bro (que, aliás, já incluíam a inten­ção gover­na­men­tal de agra­var a carga fis­cal atra­vés da redu­ção de esca­lões do IRS).

A ideia que um erro como este trans­mite é a de que não há comu­ni­ca­ção e arti­cu­la­ção efec­ti­vas entre quem ela­bora os títu­los de capa, quem escreve e edita os tex­tos infor­ma­ti­vos e quem se pro­nun­cia em edi­to­ri­ais e comen­tá­rios. Se isto já é muito mau, torna-se pés­simo quando o erro não é ime­di­ata e aber­ta­mente corrigido.

Ima­gens: cho­que e informação

Na manhã de 12 de Setem­bro, o Público Online noti­ciou a morte vio­lenta de Chris­topher Ste­vens, embai­xa­dor dos EUA na Líbia. Ste­vens fora uma das víti­mas do ata­que lan­çado na vés­pera con­tra o con­su­lado norte-americano em Ben­gasi por extre­mis­tas islâ­mi­cos arma­dos, numa das pri­mei­ras mani­fes­ta­ções de pro­testo em paí­ses muçul­ma­nos pro­vo­ca­das pela difu­são de infor­ma­ções sobre um filme que ridi­cu­li­za­ria o Islão e o seu profeta.

A ilus­trar a notí­cia, avul­tava na página de aber­tura da edi­ção on line uma foto­gra­fia que mos­trava o corpo do embai­xa­dor, mori­bundo ou já morto, e apre­sen­tando sinais de vio­lên­cia, a ser arras­tado por indi­ví­duos não iden­ti­fi­ca­dos. A publi­ca­ção dessa ima­gem, obtida por um repór­ter da France-Presse, cho­cou o lei­tor Lucio Magri, que per­gunta se foi 'cor­recto e neces­sá­rio publi­car a ima­gem do cadá­ver (…) na home­pagedo Público'. Ale­gando que, 'mesmo enten­dendo o direito à infor­ma­ção, (…) exis­tem deve­res éticos que deve­riam ser res­pei­ta­dos', o lei­tor con­clui com uma suges­tão: 'Não digo que esta ima­gem não deve­ria ser publi­cada, mas pode­riam pô-la num link (com um aviso claro de que a visão da ima­gem pode­ria ferir a sen­si­bi­li­dade do leitor)'.

Con­cor­dando que a foto­gra­fia 'mos­tra com ele­vado deta­lhe uma situ­a­ção vio­lenta', podendo por isso ser 'inco­mo­da­tiva', o edi­tor do Público Online Vic­tor Fer­reira explica que 'a dúvida do lei­tor foi uma dúvida da redac­ção: questionámo-nos e deba­te­mos se deve­ría­mos publi­car ou não'. Nesse debate, em que 'nin­guém se opôs à publi­ca­ção', pre­va­le­ceu o cri­té­rio de 'dar visi­bi­li­dade a um acto ines­pe­rado, vio­lento e per­tur­ba­dor con­tra um diplo­mata que (…) era uma figura impor­tante na diplo­ma­cia mun­dial pela forma como lidou e esta­be­le­ceu liga­ções ao mundo árabe'.

Esta é uma maté­ria em que me parece impos­sí­vel esta­be­le­cer nor­mas rígi­das. Um edi­tor con­fron­tado com uma situ­a­ção deste tipo terá sem­pre de pesar o valor noti­ci­oso de uma ima­gem vio­lenta e a pos­si­bi­li­dade de ela cho­car uma parte dos lei­to­res. Nessa pon­de­ra­ção será gui­ado pela tra­di­ção do jor­nal e pela sua pró­pria sen­si­bi­li­dade e terá em conta fac­to­res como a dimen­são da man­cha grá­fica a ocu­par pela foto­gra­fia e a sua loca­li­za­ção. Entre os dois erros a evi­tar — o de ocul­tar uma ima­gem cho­cante, mas que trans­mite infor­ma­ção rele­vante, e o de lhe dar a ênfase des­me­su­rada pró­pria dos meios sen­sa­ci­o­na­lis­tas em que o comér­cio das emo­ções pre­va­lece sobre a razão infor­ma­tiva —, sobra espaço para dife­ren­tes opções. O acerto da deci­são deve ser ava­li­ado em cada caso, sem esque­cer que a coe­rên­cia das esco­lhas fei­tas ao longo do tempo é um forte ele­mento de afir­ma­ção da linha edi­to­rial em que os lei­to­res se reconhecerão.

Em comen­tá­rio envi­ado ao PÚBLICO acerca desta foto­gra­fia, argu­men­tava um lei­tor que uma notí­cia 'que já de si é bruta' não pre­cisa de ser acom­pa­nhada de 'vio­lên­cia visual gra­tuita'. Não sendo o único, este é o ponto prin­ci­pal sobre o qual deve inci­dir a refle­xão edi­to­rial: a ima­gem tinha ou não uti­li­dade infor­ma­tiva, acres­cen­tava ou não algo de rele­vante à com­pre­en­são dos fac­tos rela­ta­dos? Por mim — e sem pre­ten­der dar valor nor­ma­tivo a uma opi­nião ou pre­fe­rên­cia pes­soal —, creio que não acres­cen­tava. Para dar um rosto ao pro­ta­go­nista da his­tó­ria, res­pei­tando a sua dig­ni­dade como pes­soa, teria sido pre­fe­rí­vel ilus­trar a notí­cia on line como se fez na edi­ção impressa: com uma ima­gem de arquivo do embai­xa­dor Stevens.

E aqui chego a um ponto impor­tante nesta dis­cus­são. Tal como outros meios de refe­rên­cia pelo mundo fora, o PÚBLICO optou por colo­car essa foto­gra­fia ape­nas na edi­ção elec­tró­nica. Poderá concluir-se que os jor­nais que fize­ram esta esco­lha jul­ga­ram ina­pro­pri­ada a sua publi­ca­ção no papel, mas a con­si­de­ra­ram acei­tá­vel para uma pla­ta­forma em que a ima­gem, fixa ou em movi­mento, tem um espe­cial poder de atracção.

E essa, sim, parece-me uma ideia errada. Os valo­res que mar­cam uma iden­ti­dade jor­na­lís­tica não devem ser dife­ren­tes no papel e na rede. O poten­cial agres­sivo de uma ima­gem vio­lenta será até maior no Público Online, por atin­gir mais lei­to­res. Ques­tão dife­rente é a de apro­vei­tar as poten­ci­a­li­da­des tec­no­ló­gi­cas da edi­ção elec­tró­nica para pro­cu­rar novas solu­ções para velhos dile­mas. A suges­tão de Lucio Magri — acesso a ima­gens mais vio­len­tas atra­vés de links que sina­li­zem a sua natu­reza — merece ser pon­de­rada. E é com­pa­tí­vel, por exem­plo, com a publi­ca­ção de gale­rias foto­grá­fi­cas sobre um deter­mi­nado acon­te­ci­mento, em que as ima­gens mais cho­can­tes não apa­re­çam ao pri­meiro cli­que na página de abertura.”