“Na minha crónica do passado dia 11 de Novembro, critiquei a publicação apressada na edição online doPÚBLICO, na noite do passado dia 6, de uma notícia que se verificou não ser verdadeira, e que por isso foi corrigida no dia seguinte. Afirmava-se, nesse texto entretanto retirado do site do jornal, que ‘um jornalista’ (posteriormente identificado como sendo o ex-redactor do PÚBLICO Nuno Ferreira) ‘terá tentado agredir o ministro Miguel Relvas’, na cidade da Horta, nos Açores. Essa falsa informação foi corrigida, depois de apurados os factos (ou uma parte deles), quer por este jornal, quer por outros meios que se tinham prestado a publicar essa e outras invenções, como a de que Nuno Ferreira ‘tentou entrar no quarto de hotel do ministro’, quando na verdade, como já foi esclarecido, se dirigia para o seu próprio quarto no mesmo estabelecimento.
Defendi nesse texto, mais uma vez, ‘a necessidade de serem repensados os procedimentos de validação das notícias colocadas na Internet’. Insisti na importância de se procurar ‘garantir o contraditório’, ‘verificar os factos e buscar a verdade’ — regras elementares do jornalismo digno desse nome —, para que seja evitada a disseminação de erros informativos e falsidades. A propósito do facto de a primeira peça doPÚBLICO sobre o caso ter tido por ponto de partida uma notícia da edição online do Expresso, que o editor Luciano Alvarez me explicou ter sido confirmada pelo gabinete do ministro Relvas, questionei ainda qual ‘a credibilidade isenta de dúvidas’ que deverá merecer a este jornal ‘um gabinete governamental cuja relação peculiar com a verdade já pôde experimentar’.
Esta observação — na verdade uma interrogação retórica, em que o termo ‘peculiar’ deve ser visto como um eufemismo — foi considerada ‘grave’ pelo gabinete do ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares, que me dirigiu uma carta em que manifesta ‘surpresa’ pelo conteúdo do texto que assinei há uma semana e solicita que aborde ‘numa futura coluna do PÚBLICO’ as questões que nela são levantadas. Passo a transcrever na íntegra esse documento, que me foi remetido na passada terça-feira, 13 de Novembro, pelo chefe do gabinete ministerial, Vítor Sereno, seguindo-se a minha resposta às passagens desse texto que julgo relevantes ou merecedoras de esclarecimento aos leitores.
J.Q.
Carta do Gabinete do Ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares
Foi este Gabinete surpreendido com as considerações que faz, na sua mais recente coluna semanal noPúblico, a propósito de uma notícia surgida na edição electrónica do jornal a propósito da detenção de um ex-jornalista desse diário na cidade da Horta, acusado de tentativa de agressão a um agente da autoridade num estabelecimento hoteleiro da cidade onde se encontrava também alojado o Ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas.
A surpresa foi-nos suscitada pelo facto de o Senhor Provedor acolher como boa, exclusivamente, a versão divulgada pelo referido ex-jornalista do Público, que chega a ser citado em discurso direto na sua coluna, sem nunca ter havido o cuidado, da sua parte, de proceder a qualquer contacto junto deste Gabinete no sentido de apurar uma versão rigorosa e sem graves lacunas dos acontecimentos, presenciados pelo menos por dois membros da comitiva do Ministro e por dois elementos da PSP da cidade da Horta.
A surpresa acentua-se pelo facto de, na mesma coluna de opinião, o Senhor Provedor chamar – e muito bem – a atenção dos jornalistas para a necessidade de evitar a ‘disseminação de falsidades’ através da ‘garantia do contraditório’ e da ‘verificação dos factos’.
Ao aceitar por boa a versão de um jornalista que pertenceu durante longos anos aos quadros redatoriais do jornal, sem curar da verificação dos factos junto de fontes alternativas e previsivelmente contraditórias, o Senhor Provedor desmente afinal os salutares princípios que proclama, caindo no defeito do velho Frei Tomás: ‘Faz o que ele diz, não faças o que ele faz’.
Pior do que isso, o Senhor Provedor parece incentivar os jornalistas do Público a não procurar a versão dos acontecimentos, destes ou de quaisquer outros, que envolvam o Ministro Miguel Relvas, ao concluir o seu texto desta forma que consideramos profundamente reprovável, por ser mais própria de um vulgar analista político do que de alguém investido de autoridade específica para analisar sem preconceito o conteúdo do jornal: ‘Que credibilidade isenta de dúvidas merece, enfim, um gabinete governamental cuja relação peculiar com a verdade já pôde experimentar[?]’
É especialmente grave esta reflexão final, na medida em que parece autorizar a inexistência futura de contactos de jornalistas do jornal Público junto deste Gabinete, desconsiderado de modo inaceitável pelo Senhor Provedor por motivos que só podem redundar de grave preconceito político ou ideológico e não são de todo recomendáveis na prática profissional do jornalismo.
Refere o Senhor Provedor que um jornal independente não deve ‘satisfazer-se com fontes oficiais e versões policiais’. A pergunta que lhe dirigimos é a inversa: deve um jornal divulgar uma notícia em que são visadas autoridades políticas e membros de corporações policiais descurando os contactos com estas entidades pelo simples facto de exercerem funções públicas?
Pela consideração pessoal que nos merece, e pela relevância que atribuímos às considerações do foro técnico e deontológico que semanalmente explana na sua coluna do jornal de que é Provedor, muito gratos lhe ficaríamos se dignasse abordar esta questão numa futura coluna do Público.
Gabinete do Ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares
Resposta ao Gabinete do Ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares
1. Não é verdade que tenha acolhido como ‘boa, exclusivamente’, uma versão. Resumi os factos que oPÚBLICO e outros órgãos de comunicação reportaram, corrigindo o teor de informações (erradas) inicialmente divulgadas. Critiquei, isso sim, o facto de a primeira notícia do PÚBLICO, na linha de uma notícia do Expresso que terá sido confirmada por esse gabinete, acolher como ‘boa, exclusivamente’ uma versão dos acontecimentos que não fora sujeita a contraditório nem a verificação. Versão essa que, pelo que se depreende desta carta, será, nomeadamente, a de ‘dois membros da comitiva do ministro’.
2. Pelo contrário, expliquei claramente que ‘há duas versões contrárias do que se passou’ em relação ao incidente ocorrido no hotel da Horta, que resultou na detenção do jornalista. Escrevi que ‘os seguranças acusam-no [a Nuno Ferreira] de ter tentado agredi-los, enquanto o jornalista garante que foi ele a vítima de agressão’, e salientei que essa divergência não foi ainda devidamente clarificada.
3. Não é verdade que o ex-jornalista do PÚBLICO tenha sido citado em discurso directo na minha coluna. Aliás, não o contactei.
4. Também não contactei, nem tinha de contactar, esse gabinete. Não redigi uma notícia sobre os acontecimentos. Avaliei e censurei os procedimentos que conduziram à decisão de publicar uma peça noticiosa que se revelou falsa e teve de ser corrigida. Expliquei, no entanto, aos leitores que um dos motivos invocados para essa decisão, a meu ver errada, foi a de que o texto em causa fora elaborado a partir de informações divulgadas pouco antes pelo Expresso, numa notícia cujo teor, conforme me garantiu o editor doPÚBLICO Luciano Alvarez, lhe fora entretanto confirmado ‘na íntegra’ por esse gabinete.
5. Nessa notícia do Expresso escreveu-se, por exemplo, que ‘o homem [Nuno Ferreira] tentou chegar junto do quarto do ministro’. A Sic Notícias deu a mesma informação. Num despacho da Lusa, foi-se um pouco mais longe e disse-se que ‘um homem [Nuno Ferreira] tentou entrar no quarto’. E por aí adiante. Nada disto foi dado como confirmado, tudo isto foi depois corrigido. Por isso admiti na minha crónica que este terá sido um episódio de ‘intoxicação informativa’.
6. De acordo com a primeira peça do PÚBLICO — e foi sobre essa que me pronunciei — ‘um jornalista, residente da Costa da Caparica [sic], terá tentado agredir o ministro Miguel Relvas’. Essa informação foi desmentida e não consta da acusação feita a Nuno Ferreira. Por isso escrevi também que se tratava de ‘uma história inventada’.
7. A ideia de que o que escrevi ‘parece incentivar os jornalistas do Público a não procurar a versão dos acontecimentos, destes ou de quaisquer outros, que envolvam o Ministro Miguel Relvas’ e ‘parece autorizar a inexistência futura de contactos de jornalistas do jornal Público junto deste Gabinete’ não tem qualquer fundamento. Procurei, sim, como deveria ser evidente para quem tenha lido o que escrevi, incentivar os jornalistas a buscarem sempre o contraditório, a informarem-se das versões diferentes ou contraditórias sobre os factos. Devo notar que, neste caso, não foi o gabinete do ministro que não foi ouvido.
8. Estou certo de que, se tivesse feito uma recomendação tão disparatada como essa que me é atribuída nesta carta, nenhum jornalista sério a seguiria. O ministro Relvas e o seu gabinete devem evidentemente ser sempre ouvidos sobre qualquer tema que lhes diga respeito e acerca de qualquer matéria que estejam qualificados para esclarecer. Têm, aliás, o dever de prestar as informações de interesse público que lhes sejam solicitadas.
9. Tendo eu questionado, a propósito deste caso, que um jornal independente possa ‘satisfazer-se com fontes oficiais e versões policiais’, pergunta-se-me nesta carta se ‘deve um jornal divulgar uma notícia em que são visadas autoridades políticas e membros de corporações policiais descurando os contactos com estas entidades’. A resposta é obviamente negativa, mas a pergunta vem pouco a propósito num caso em que não são essas entidades as visadas, nem foram elas que não foram ouvidas.
10. Que o jornalismo independente não deve ‘satisfazer-se com fontes oficiais’ ou ‘versões policiais’ é um preceito tão essencial ao cumprimento da sua missão que nem merece discussão. Mas eu acrescentei, no que se refere às versões policiais: ‘para mais quando estas resistem com dificuldade a um juízo de verosimilhança’. Um juízo desse tipo não é uma afirmação taxativa sobre a verdade de factos ainda por apurar face a versões contraditórias. É um juízo de probabilidade que aconselha cautela e diligência acrescidas no relato de factos sobre os quais persistem narrações divergentes.
11. Neste caso, não me parece difícil arriscar uma opinião sobre qual de dois cenários em confronto é à partida mais verosímil. O jornalista Nuno Ferreira decidiu agredir um agente de segurança que o impedia de ‘aceder ao quarto onde se encontrava o senhor ministro’ (como se escreveu num comunicado da PSPcitado no PÚBLICO de 8 de Novembro), ou, como ele sustenta, foi bloqueado, detido e algemado por três elementos presumivelmente ligados à segurança de Relvas quando percorria o caminho para o seu próprio alojamento? A hipótese de que tenha pretendido invadir violentamente o quarto protegido do governante é mais provável do que a de ter sido vítima de intimidação por parte de agentes de segurança que o tinham visto anteriormente, como ele próprio reconhece e foi noticiado, a dirigir um comentário hostil ao ministro e a empunhar mais tarde, pacificamente, um cartaz irónico que o tinha também por alvo?
12. Finalmente, a frase considerada ‘especialmente grave’ pelo gabinete do ministro. Questionei que oPÚBLICO conferisse uma ‘credibilidade isenta de dúvidas [a um] gabinete governamental cuja relação peculiar com a verdade já pôde experimentar’. Não o fiz movido por qualquer preconceito, mas pelas lições da experiência. As fontes oficiais não são todas iguais: se em relação a todas elas os jornalistas devem evitar uma posição acrítica, será natural que encarem com mais dúvidas ou desconfiança as que no passado deram motivos para ver diminuída a sua fiabilidade. Na minha opinião — que partilhei com os leitores aquando das inaceitáveis pressões deste ministro sobre uma jornalista do PÚBLICO —, há razões de sobra para incluir nessa categoria Miguel Relvas e o seu gabinete.”