Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

José Queirós

“Escrevi aqui, em Julho pas­sado, que não podem ser igno­ra­das ‘as cons­tan­tes e jus­ti­fi­ca­das quei­xas de mui­tos lei­to­res, que pro­tes­tam con­tra os aten­ta­dos à lín­gua por­tu­guesa nes­tas pági­nas’, e defendi que esse tipo de falhas pode e deve ser intei­ra­mente evi­tado. Mais de um ano antes, con­fron­tada com a frequên­cia das recla­ma­ções neste domí­nio, a direc­ção do PÚBLICO garan­tira estar a pre­pa­rar medi­das para eli­mi­nar erros incom­pa­tí­veis com a ima­gem de qua­li­dade que este jor­nal reclama para si. Se hoje regresso ao tema, sob o impulso dos pro­tes­tos cres­cen­tes dos lei­to­res, é para assi­na­lar a con­clu­são que se impõe: ou o esforço então anun­ci­ado não teve con­sequên­cias úteis (e vale­ria a pena per­ce­ber porquê), ou a cor­rec­ção da escrita não é de facto — como deve­ria ser — uma pri­o­ri­dade para os res­pon­sá­veis editoriais.

Veja-se o caso da sobre­capa que envol­via a edi­ção do pas­sado dia 22 de Novem­bro. Não se tra­tava de um daque­les invó­lu­cros publi­ci­tá­rios que, como infe­liz­mente se tor­nou habi­tual, escon­dem aos poten­ci­ais com­pra­do­res, nas ban­cas, as notí­cias que mere­cem des­ta­que de pri­meira página. Era, desta vez, uma opção edi­to­rial deli­be­rada, com a qual se pre­ten­deu cha­mar a aten­ção para a remo­de­la­ção nessa data ope­rada na edi­ção online, mos­trando em papel o novo rosto do site do PÚBLICO e algu­mas das suas novi­da­des. É lamen­tá­vel que nem numa oca­sião como esta, de afir­ma­ção da ima­gem do jor­nal, se cuide de evi­tar manchá-la com atro­pe­los de escrita inaceitáveis.

Foi, no entanto, o que acon­te­ceu. No canto supe­rior direito dessa sobre­capa, o des­res­peito pela lín­gua manifestava-se de modo exu­be­rante no título ‘Ver o inte­rior de uma antiga casa romana há luz de 2000 anos’, que reme­tia para uma peça assi­nada pela jor­na­lista Ana Gers­chen­feld, essa sim cor­rec­ta­mente inti­tu­lada ‘Cien­tis­tas por­tu­gue­ses mos­tram inte­rior de uma antiga casa romana à luz de há 2000 anos’, ou seja, com os méto­dos de ilu­mi­na­ção então usados.

Quem, como o lei­tor Manuel Fer­reira dos San­tos, ini­ci­asse a lei­tura pela última página (neste caso o verso da sobre­capa), não fica­ria com melhor opi­nião sobre o domí­nio da orto­gra­fia por parte de quem deu luz verde à publi­ca­ção da frase ‘O recen­ti­mento não é só eco­nó­mico’, que, bem visí­vel no canto supe­rior esquerdo, cha­mava para a lei­tura de um texto de opi­nião do colu­nista Pedro Lomba, inti­tu­lado ‘Res­sen­ti­men­tos’. Neste caso, a cha­mada fazia-se acom­pa­nhar do nome e da foto­gra­fia do autor, assim injus­ta­mente envol­vido na asneira alheia.

Aca­bara o refe­rido lei­tor de virar a página para con­fir­mar que, como seria de espe­rar, o erro não tinha ori­gem no texto do colu­nista, quando o seu olhar foi atraído para uma cha­mada colo­cada por cima dessa cró­nica, em que se escre­via, a pro­pó­sito da demis­são do direc­tor de infor­ma­ção da RTP, estar ‘em causapedido da PSP de ima­gens rela­tiva à carga poli­cial de dia 14 junto à AR’. Comenta Manuel Fer­reira dos San­tos que ‘assim se vê que, ape­sar de todas as moder­ni­da­des tec­no­ló­gi­cas, sem pes­soas não se faz um jor­nal de qua­li­dade’. Não se faz, de facto, em papel ou na Inter­net, sem pro­fis­si­o­nais qua­li­fi­ca­dos para as fun­ções que desempenham.

Os exem­plos reti­ra­dos da sobre­capa de 22 de Novem­bro — a que seria depri­mente acres­cen­tar aqui outras cali­na­das recen­tes devi­da­mente assi­na­la­das em quei­xas dos lei­to­res — mos­tram como, em mui­tos casos, os erros de escrita que moti­vam essas recla­ma­ções não devem ser atri­buí­dos a quem redige os tex­tos do jor­nal. Outros são cer­ta­mente da res­pon­sa­bi­li­dade dos redac­to­res, e deve­riam ser cor­ri­gi­dos por quem revê, edita ou fecha pági­nas. Seria aliás de espe­rar que os tex­tos assi­na­dos por quem reve­lasse fra­gi­li­da­des neste domí­nio fos­sem objecto de redo­brada aten­ção antes de serem publicados.

O maior pro­blema, porém, parece situar-se pre­ci­sa­mente no pata­mar de quem tem res­pon­sa­bi­li­da­des acres­ci­das na hie­rar­quia redac­to­rial. Não só é fre­quente encon­trar cha­ma­das de pri­meira ou última página em que são erra­da­mente gra­fa­das pala­vras ou for­mu­la­das incor­rec­ta­mente fra­ses que os auto­res dos tex­tos escre­ve­ram ori­gi­nal­mente em bom por­tu­guês, como a lei­tura con­ti­nu­ada do jor­nal indica que a maior parte des­ses erros (e não ape­nas os mais visí­veis) ocorre em títu­los, entra­das, legen­das ou des­ta­ques de texto que em regra não serão da res­pon­sa­bi­li­dade dos auto­res das peças jor­na­lís­ti­cas, mas de quem tem a última pala­vra no envio das pági­nas para impres­são ou na publi­ca­ção das maté­rias na edi­ção online.

Isto só pode sig­ni­fi­car que há no PÚBLICO quem, devendo zelar pela cor­rec­ção de even­tu­ais erros de redac­ção alheios, é afi­nal autor e res­pon­sá­vel directo pela publi­ca­ção de uma boa parte das toli­ces orto­grá­fi­cas e gra­ma­ti­cais que são dadas à estampa. Não se trata, con­vém notar, de sim­ples gra­lhas, ou de fal­tas de aten­ção que seriam sem­pre cen­su­rá­veis, mas de mani­fes­ta­ções de igno­rân­cia e de insu­fi­ci­ente domí­nio da lín­gua, que não são acei­tá­veis num jor­nal que diz ter por objec­tivo a exce­lên­cia editorial.

O tra­ba­lho de edi­ção e fecho de pági­nas não é assi­nado, e seria obvi­a­mente injusto ende­re­çar ao con­junto dos res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais uma crí­tica gene­ra­li­zada pelas falhas paten­tes ao nível da qua­li­dade da escrita. É no entanto a ima­gem pro­fis­si­o­nal de todos — direc­ção, edi­to­res, res­pon­sá­veis pelo fecho de pági­nas — e a pró­pria repu­ta­ção do jor­nal que esta­rão cres­cen­te­mente em causa se con­ti­nuar a permitir-se que a pala­vra final sobre o que é publi­cado possa per­ten­cer dema­si­a­das vezes a quem não asse­gure, neste campo, o cum­pri­mento de padrões míni­mos de exi­gên­cia profissional.

Para além das defi­ci­ên­cias na escrita, outras falhas fre­quen­tes demons­tram baixa qua­li­dade na exe­cu­ção de tare­fas rela­ci­o­na­das com o fecho de pági­nas. É o caso, por exem­plo, das legen­das de foto­gra­fias ou das par­ce­las de texto em des­ta­que que não che­gam a ser redi­gi­das, sur­gindo no seu lugar as indi­ca­ções téc­ni­cas ou os peda­ços de uma alga­ra­vi­ada incom­pre­en­sí­vel que se encon­tram nas matri­zes das pági­nas para assi­na­lar o espaço (número de carac­te­res) des­sas legen­das ou destaques.

O resul­tado, para citar alguns exem­plos recen­tes, pode ser o de o lei­tor encon­trar fra­ses deli­ran­tes como ‘em delit am , conul­lum zzril aut alis (…)’ a des­cre­ver a ima­gem de um jogo de fute­bol, ou ‘loreet ullan ex esse­quis eriure deles­sis nit (…)’ como pro­posta de ideia prin­ci­pal a reter num artigo de opi­nião. Ou ainda, se não lhe for fami­liar o rosto do pro­ta­go­nista de uma notí­cia e pro­cu­rar identificá-lo na legenda da foto­gra­fia, ser brin­dado com a ‘expli­ca­ção’ inú­til ‘pequeno des­ta­que em caixa com fundo que tam­bém pode ser­vir de legenda para a foto­gra­fia’, como suce­deu não há muito tempo, a acom­pa­nhar uma ima­gem do secre­tá­rio de Estado adjunto Car­los Moe­das. Uma vez terá graça, mas a repe­ti­ção des­tes epi­só­dios ridí­cu­los só pode ser o resul­tado de um des­leixo que deve ser enten­dido como falta de res­peito para com os leitores.

É tam­bém de falta de res­peito que deve falar-se quando são igno­ra­das, como con­ti­nua a acon­te­cer com frequên­cia, as cha­ma­das de aten­ção dos lei­to­res para erros de infor­ma­ção que devem ser cor­ri­gi­dos. No pas­sado dia 9, numa notí­cia da edi­ção online sobre a reti­rada a uma empresa far­ma­cêu­tica, no Canadá, da patente para comer­ci­a­li­za­ção do mais conhe­cido medi­ca­mento para a dis­fun­ção eréc­til (o Via­gra), escrevia-se que o prin­cí­pio activo deste fár­maco ‘fun­ci­ona como vaso­di­la­ta­dor’, com­ba­tendo uma enzima que ‘inibe a pro­du­ção de monó­xido de car­bono pro­du­zido pelas nos­sas célu­las’. Horas depois, em comen­tá­rio publi­cado, o lei­tor Miguel Leite fazia notar que o medi­ca­mento em causa pro­voca o aumento dos níveis de óxido nítrico e nunca de monó­xido de car­bono, o que aliás o tor­na­ria num veneno pró­prio para matar por pri­va­ção de oxi­gé­nio. Mais de três sema­nas depois, o erro per­ma­nece em linha, e o que desa­pa­re­ceu foi a inter­ven­ção cor­rec­tiva do leitor.

Alguns dias antes, numa peça sobre um alerta de mare­moto no Havai, escrevera-se que este fora emi­tido na sequên­cia de ‘um sismo de inten­si­dade 7,7 na escala de Rich­ter’, repe­tindo o erro comum de con­fun­dir a inten­si­dade de um sismo (quan­ti­fi­cada na escala de Mer­calli para medir os danos cau­sa­dos) com a sua mag­ni­tude em ter­mos de ener­gia liber­tada, que é o que mede a escala de Rich­ter. A lei­tora Ana Antão aler­tou para o erro, que tam­bém não foi corrigido.

Trata-se, em ambos os casos, de maté­rias cien­tí­fi­cas envol­vendo conhe­ci­men­tos que não pode­rão ser exi­gi­dos a jor­na­lis­tas não espe­ci­a­li­za­dos, embora uma pes­quisa com­pe­tente ou a con­sulta a redac­to­res mais infor­ma­dos nes­ses domí­nios per­mi­tisse cer­ta­mente evitá-los. O que não é acei­tá­vel é que sejam igno­ra­dos os aler­tas dos lei­to­res mais vigi­lan­tes, per­mi­tindo que sejam atri­buí­das ao PÚBLICO infor­ma­ções erra­das que per­ma­ne­cem em linha. Se a tudo isto se acres­cen­tar a faci­li­dade com que cer­tas exi­bi­ções de incul­tura sobre­vi­vem aos fil­tros edi­to­ri­ais (na já refe­rida edi­ção de 22.11 lia-se por exem­plo que ‘a pri­meira dama fran­cesa’ se sente bem no ‘Palá­cio dos Elí­seos’), resta con­cluir que há muito a fazer para asse­gu­rar um ver­da­deiro con­trolo de qua­li­dade nes­tas páginas.”