“Escrevi aqui, em Julho passado, que não podem ser ignoradas ‘as constantes e justificadas queixas de muitos leitores, que protestam contra os atentados à língua portuguesa nestas páginas’, e defendi que esse tipo de falhas pode e deve ser inteiramente evitado. Mais de um ano antes, confrontada com a frequência das reclamações neste domínio, a direcção do PÚBLICO garantira estar a preparar medidas para eliminar erros incompatíveis com a imagem de qualidade que este jornal reclama para si. Se hoje regresso ao tema, sob o impulso dos protestos crescentes dos leitores, é para assinalar a conclusão que se impõe: ou o esforço então anunciado não teve consequências úteis (e valeria a pena perceber porquê), ou a correcção da escrita não é de facto — como deveria ser — uma prioridade para os responsáveis editoriais.
Veja-se o caso da sobrecapa que envolvia a edição do passado dia 22 de Novembro. Não se tratava de um daqueles invólucros publicitários que, como infelizmente se tornou habitual, escondem aos potenciais compradores, nas bancas, as notícias que merecem destaque de primeira página. Era, desta vez, uma opção editorial deliberada, com a qual se pretendeu chamar a atenção para a remodelação nessa data operada na edição online, mostrando em papel o novo rosto do site do PÚBLICO e algumas das suas novidades. É lamentável que nem numa ocasião como esta, de afirmação da imagem do jornal, se cuide de evitar manchá-la com atropelos de escrita inaceitáveis.
Foi, no entanto, o que aconteceu. No canto superior direito dessa sobrecapa, o desrespeito pela língua manifestava-se de modo exuberante no título ‘Ver o interior de uma antiga casa romana há luz de 2000 anos’, que remetia para uma peça assinada pela jornalista Ana Gerschenfeld, essa sim correctamente intitulada ‘Cientistas portugueses mostram interior de uma antiga casa romana à luz de há 2000 anos’, ou seja, com os métodos de iluminação então usados.
Quem, como o leitor Manuel Ferreira dos Santos, iniciasse a leitura pela última página (neste caso o verso da sobrecapa), não ficaria com melhor opinião sobre o domínio da ortografia por parte de quem deu luz verde à publicação da frase ‘O recentimento não é só económico’, que, bem visível no canto superior esquerdo, chamava para a leitura de um texto de opinião do colunista Pedro Lomba, intitulado ‘Ressentimentos’. Neste caso, a chamada fazia-se acompanhar do nome e da fotografia do autor, assim injustamente envolvido na asneira alheia.
Acabara o referido leitor de virar a página para confirmar que, como seria de esperar, o erro não tinha origem no texto do colunista, quando o seu olhar foi atraído para uma chamada colocada por cima dessa crónica, em que se escrevia, a propósito da demissão do director de informação da RTP, estar ‘em causapedido da PSP de imagens relativa à carga policial de dia 14 junto à AR’. Comenta Manuel Ferreira dos Santos que ‘assim se vê que, apesar de todas as modernidades tecnológicas, sem pessoas não se faz um jornal de qualidade’. Não se faz, de facto, em papel ou na Internet, sem profissionais qualificados para as funções que desempenham.
Os exemplos retirados da sobrecapa de 22 de Novembro — a que seria deprimente acrescentar aqui outras calinadas recentes devidamente assinaladas em queixas dos leitores — mostram como, em muitos casos, os erros de escrita que motivam essas reclamações não devem ser atribuídos a quem redige os textos do jornal. Outros são certamente da responsabilidade dos redactores, e deveriam ser corrigidos por quem revê, edita ou fecha páginas. Seria aliás de esperar que os textos assinados por quem revelasse fragilidades neste domínio fossem objecto de redobrada atenção antes de serem publicados.
O maior problema, porém, parece situar-se precisamente no patamar de quem tem responsabilidades acrescidas na hierarquia redactorial. Não só é frequente encontrar chamadas de primeira ou última página em que são erradamente grafadas palavras ou formuladas incorrectamente frases que os autores dos textos escreveram originalmente em bom português, como a leitura continuada do jornal indica que a maior parte desses erros (e não apenas os mais visíveis) ocorre em títulos, entradas, legendas ou destaques de texto que em regra não serão da responsabilidade dos autores das peças jornalísticas, mas de quem tem a última palavra no envio das páginas para impressão ou na publicação das matérias na edição online.
Isto só pode significar que há no PÚBLICO quem, devendo zelar pela correcção de eventuais erros de redacção alheios, é afinal autor e responsável directo pela publicação de uma boa parte das tolices ortográficas e gramaticais que são dadas à estampa. Não se trata, convém notar, de simples gralhas, ou de faltas de atenção que seriam sempre censuráveis, mas de manifestações de ignorância e de insuficiente domínio da língua, que não são aceitáveis num jornal que diz ter por objectivo a excelência editorial.
O trabalho de edição e fecho de páginas não é assinado, e seria obviamente injusto endereçar ao conjunto dos responsáveis editoriais uma crítica generalizada pelas falhas patentes ao nível da qualidade da escrita. É no entanto a imagem profissional de todos — direcção, editores, responsáveis pelo fecho de páginas — e a própria reputação do jornal que estarão crescentemente em causa se continuar a permitir-se que a palavra final sobre o que é publicado possa pertencer demasiadas vezes a quem não assegure, neste campo, o cumprimento de padrões mínimos de exigência profissional.
Para além das deficiências na escrita, outras falhas frequentes demonstram baixa qualidade na execução de tarefas relacionadas com o fecho de páginas. É o caso, por exemplo, das legendas de fotografias ou das parcelas de texto em destaque que não chegam a ser redigidas, surgindo no seu lugar as indicações técnicas ou os pedaços de uma algaraviada incompreensível que se encontram nas matrizes das páginas para assinalar o espaço (número de caracteres) dessas legendas ou destaques.
O resultado, para citar alguns exemplos recentes, pode ser o de o leitor encontrar frases delirantes como ‘em delit am , conullum zzril aut alis (…)’ a descrever a imagem de um jogo de futebol, ou ‘loreet ullan ex essequis eriure delessis nit (…)’ como proposta de ideia principal a reter num artigo de opinião. Ou ainda, se não lhe for familiar o rosto do protagonista de uma notícia e procurar identificá-lo na legenda da fotografia, ser brindado com a ‘explicação’ inútil ‘pequeno destaque em caixa com fundo que também pode servir de legenda para a fotografia’, como sucedeu não há muito tempo, a acompanhar uma imagem do secretário de Estado adjunto Carlos Moedas. Uma vez terá graça, mas a repetição destes episódios ridículos só pode ser o resultado de um desleixo que deve ser entendido como falta de respeito para com os leitores.
É também de falta de respeito que deve falar-se quando são ignoradas, como continua a acontecer com frequência, as chamadas de atenção dos leitores para erros de informação que devem ser corrigidos. No passado dia 9, numa notícia da edição online sobre a retirada a uma empresa farmacêutica, no Canadá, da patente para comercialização do mais conhecido medicamento para a disfunção eréctil (o Viagra), escrevia-se que o princípio activo deste fármaco ‘funciona como vasodilatador’, combatendo uma enzima que ‘inibe a produção de monóxido de carbono produzido pelas nossas células’. Horas depois, em comentário publicado, o leitor Miguel Leite fazia notar que o medicamento em causa provoca o aumento dos níveis de óxido nítrico e nunca de monóxido de carbono, o que aliás o tornaria num veneno próprio para matar por privação de oxigénio. Mais de três semanas depois, o erro permanece em linha, e o que desapareceu foi a intervenção correctiva do leitor.
Alguns dias antes, numa peça sobre um alerta de maremoto no Havai, escrevera-se que este fora emitido na sequência de ‘um sismo de intensidade 7,7 na escala de Richter’, repetindo o erro comum de confundir a intensidade de um sismo (quantificada na escala de Mercalli para medir os danos causados) com a sua magnitude em termos de energia libertada, que é o que mede a escala de Richter. A leitora Ana Antão alertou para o erro, que também não foi corrigido.
Trata-se, em ambos os casos, de matérias científicas envolvendo conhecimentos que não poderão ser exigidos a jornalistas não especializados, embora uma pesquisa competente ou a consulta a redactores mais informados nesses domínios permitisse certamente evitá-los. O que não é aceitável é que sejam ignorados os alertas dos leitores mais vigilantes, permitindo que sejam atribuídas ao PÚBLICO informações erradas que permanecem em linha. Se a tudo isto se acrescentar a facilidade com que certas exibições de incultura sobrevivem aos filtros editoriais (na já referida edição de 22.11 lia-se por exemplo que ‘a primeira dama francesa’ se sente bem no ‘Palácio dos Elíseos’), resta concluir que há muito a fazer para assegurar um verdadeiro controlo de qualidade nestas páginas.”