“Recebi da leitora Bárbara Salta, que se apresenta como especialmente interessada, ‘por motivos de índole académica’, em ‘assuntos militares e de geopolítica’, uma reclamação invulgar. A leitora considera que um extenso artigo publicado neste jornal no passado dia 18 de Novembro — ‘A guerra dos drones parece um jogo, mas é mais suja do que se pensa’, da autoria do jornalista Alexandre Martins — não passa de ‘uma duplicação, algo absurda’, de uma outra peça, igualmente dada à estampa no PÚBLICO (no extinto caderno P2). Esse texto anterior, intitulado simplesmente ‘A guerra dos drones’, foi assinado, a 15 de Fevereiro deste ano, por Gustavo Sampaio, que, segundo informação da direcção editorial, se encontrava então na redacção como estagiário.
A essa alegada duplicação chama Bárbara Salta ‘um logro’. ‘Enquanto leitora assídua de jornais e revistas’, escreve, ‘já tinha uma noção do efeito de ‘canibalização’ entre diferentes órgãos de comunicação social (jornais de maior tiragem que pegam em notícias de jornais de menor tiragem e os republicam, ligeiramente alterados, como se fossem inéditos e da sua autoria; ou o exemplo mais recorrente das estações de televisão que pegam em notícias dos jornais, acrescentam-lhes algumas filmagens e as apresentam como se fossem suas, sem citar a fonte original), mas nunca me tinha apercebido de que também já se faz ‘canibalização’ entre colegas de trabalho do mesmo órgão de comunicação social’.
Em defesa da sua tese, a leitora considera ‘lamentável’ que ‘o jornalista Alexandre Martins, abordando o mesmo tema, não consiga acrescentar nada de novo, nada de inédito, nada de original, destacando no seu texto, logo no primeiro parágrafo, a mesmíssima conferência proferida por P.W. Singer [cientista político norte-americano] que já tinha sido referida e explanada no artigo de Fevereiro de 2012, em certos momentos copiando integralmente frases do outro artigo (e traduções livres realizadas pelo outro jornalista), apresentando os mesmos dados estatísticos, replicando as mesmas ideias, utilizando os mesmos termos’. Conclui que a publicação do seu texto se encontra ‘no limiar do plágio’.
É uma acusação grave e, na minha opinião, errada e injusta. Errada no plano dos factos, injusta no que se refere aos valores profissionais e éticos que estão em causa. Pode naturalmente compreender-se que uma leitora que afirma ser uma estudiosa do tema tratado nos dois artigos que refere sinta que o texto mais recente não lhe trouxe ‘nada de novo’ (o que poderia ter acontecido já com o primeiro). Contudo, nem essa conclusão poderá ser generalizada ao conjunto dos leitores, nem este caso particular é diferente do de muitos outros artigos jornalísticos que divulgam com alguma profundidade informações que poderão não trazer ‘nada de novo’ a quem possua um conhecimento especializado da temática abordada. Garantir essa divulgação a uma audiência mais vasta, por razões de actualidade e interesse geral, é mesmo uma das missões fundamentais do bom jornalismo, e é pelo rigor e qualidade com que o faça que deve ser avaliado.
Reli com atenção os dois artigos que deram origem à crítica desta leitora, e o mesmo poderá fazer qualquer pessoa interessada, consultando os arquivos do PÚBLICO. Concluí que se trata, em ambos os casos, de peças jornalísticas de boa qualidade, esclarecedoras, bem documentadas e bem redigidas. Têm em comum muita informação de contexto, como seria de esperar, já que abordam a mesma realidade: a crescente utilização pelas forças norte-americanas de aeronaves não tripuladas (os drones) como instrumentos de ataque militar, nomeadamente com vista ao assassínio selectivo (mas geralmente acompanhado de baixas civis) de combatentes taliban e da Al-Qaeda nas zonas tribais do Paquistão, bem como o intenso debate político e ético que este tipo de guerra robótica tem gerado.
Os jornais regressam aos temas em função de critérios de actualidade, e se os elementos de contextualização estão correctos, podem e devem ser repetidos e actualizados, como aconteceu neste caso, sem que isso signifique qualquer apropriação indevida de trabalho alheio: uma redacção é uma equipa, e a sua memória um bem colectivo.
Na verdade, como resulta da sua leitura, as duas peças sobre os drones, separadas entre si por uma distância temporal considerável, partem de motivos diferentes de oportunidade editorial e assumem ângulos de abordagem igualmente distintos. Enquanto o artigo de Gustavo Sampaio aprofunda e completa notícias dos dias anteriores sobre operações de ataque por controlo remoto, que visaram um campo de treino islamista e a eliminação de um chefe operacional da Al-Qaeda, e descreve principalmente a evolução tecnológica deste tipo de armas e as suas implicações militares e políticas, o texto de Alexandre Martins tem por pano de fundo o avolumar da polémica, nos Estados Unidos mas também na Europa, sobre a eficácia e a legitimidade do uso destas armas, e coloca a ênfase no debate sobre o número de vítimas civis que tem provocado, crescentemente escrutinado por organizações independentes, e nas primeiras iniciativas para tentar abrir caminho à proibição da utilização letal desses aparelhos por países da União Europeia — diligências em que se envolveram, entre outros, dois eurodeputados portugueses (Rui Tavares e Ana Gomes).
Além de ignorar estas diferenças, a leitora precipitou-se ao recorrer, na sua reclamação, a argumentos que não resistem à prova dos factos. Não é verdade que no artigo de Novembro se ‘[copiem] integralmente frases’ constantes do texto de Fevereiro, ou se ‘[apresentem] os mesmos dados estatísticos’. Acresce que, no essencial, são diferentes as fontes consultadas e citadas. A única coincidência textual, salvo ligeiras diferenças de tradução, encontra-se numa citação de Peter Singer (melhor, de um dos militares por ele ouvidos para uma investigação sobre a experiência dos operadores dos drones), e compreende-se que assim seja: trata-se de uma descrição particularmente impressiva deste tipo de guerra virtual (virtual para os atacantes, naturalmente), que tem sido reproduzida um pouco por todo o lado em artigos sobre este tema.
Falando numa conferência, há três anos, o cientista norte-americano (não confundir com o filósofo australiano do mesmo nome), citou a seguinte declaração de um militar que pilotou drones sobre território do Iraque a partir do seu ‘cubículo’ numa base situada no Nevada: ‘Estamos na guerra durante 12 horas. Disparamos armas contra alvos, damos instruções para matar combatentes inimigos. Depois entramos no carro e vamos para casa. Vinte minutos depois, estamos sentados à mesa do jantar, a falar com os filhos sobre os trabalhos de casa deles’.
A este respeito, o jornalista Alexandre Martins — que me fez chegar uma explicação clara e consistente em resposta às críticas da leitora — considera que ‘deveria ter feito referência’ no seu artigo ao texto de Gustavo Sampaio, por ter sido através dele que tomou conhecimento, pela primeira vez, da referida conferência de Peter Singer, que no entanto consultou depois na íntegra. ‘Teria sido mais transparente’, escreve, e eu só posso louvar o escrúpulo.
Quanto ao resto, não vislumbro qualquer ‘duplicação’ ou sombra de plágio no seu trabalho. Numa nota que me enviou a respeito deste caso, o director adjunto do PÚBLICO Miguel Gaspar sublinha que entre os dois textos ‘há alguns elementos de background que são comuns, mas cujo uso é justificado, uma vez que sem eles o leitor não teria o enquadramento necessário do fenómeno’. Esse enquadramento, acrescenta, e eu subscrevo, ‘é muitas vezes subestimado pelos jornalistas, e a repetição de elementos-chave em diferentes textos, com essa finalidade, ajuda o leitor’.
Bárbara Salta descreve com razão alguns exemplos do que chama ‘canibalização’ jornalística entre diferentes órgãos de comunicação social. O conceito, porém, não se aplica ao trabalho do PÚBLICO sobre osdrones. A acusação de plágio, já o escrevi, é das mais graves que se podem fazer a um jornalista, e não deve ser banalizada. A sugestão de que um texto se encontra ‘no limiar do plágio’ quando o que está em causa é a repetição útil e nem sequer literal de elementos de contextualização, actualizados quando necessário, não tem fundamento. Confunde com um vício o que deve ser visto como uma virtude jornalística.”