“Estão os emigrantes portugueses a desistir do país? Estarão a crise e a perda de benefícios sociais a levar uma parte significativa desses nossos compatriotas a optar pela residência permanente nos países de acolhimento, abandonando a ideia de regressar a Portugal? É o que poderá concluir-se, à primeira vista, de uma pequena notícia publicada a 19 de Novembro na edição online e retomada, no dia seguinte, de forma um pouco mais desenvolvida, no jornal impresso. O leitor José Pedro Tomás considera, contudo, que tal conclusão não resulta de modo evidente do que leu, e queixa-se de lacunas importantes na notícia.
O texto colocado na Internet tinha por título Emigrantes portugueses estão a 'desistir' do país, fórmula que na edição em papel se alargou para Emigrantes portugueses estão a desistir do país e a pedir nova nacionalidade, deixando cair pelo caminho as aspas antes utilizadas no verbo desistir. Teve por ponto de partida uma informação divulgada pelo Eurostat (organismo europeu responsável pela informação estatística) sobre a naturalização de emigrantes nos países de destino. Segundo esses dados, referentes a 2010, cerca de cinco mil portugueses pediram nesse ano a nacionalidade francesa, enquanto 2200 tomaram idêntica iniciativa na Suíça, e mais de 1300 no Luxemburgo.
O PÚBLICO pediu uma interpretação destes números a Pedro Góis, um investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que considerou tratar-se de 'dados novos, que traduzem uma desistência de Portugal', indicando que 'estes portugueses estão a tornar permanente a sua emigração'. Ressalvando não conhecer o perfil dos autores dos pedidos de naturalização, o investigador admitiu que, a tratar-se de emigrantes mais antigos, a sua decisão poderia estar associada a uma menor 'eficácia' dos 'sistema de saúde portugueses' e à 'desertificação'. Confrontado com outros dados anteriormente divulgados pelo Eurostat, segundo os quais Portugal registou no mesmo ano 21.800 pedidos de naturalização apresentados por imigrantes (com destaque para os de cidadãos brasileiros e cabo-verdianos), considerou que nesses casos se trata sobretudo de tentar obter a cidadania europeia, com as inerentes vantagens de circulação legal.
Esta pequena notícia suscitou a José Pedro Tomás um bom número de questões. Cito as principais: 'Por que é que estes são ‘dados novos’, se ninguém indica os antigos valores? São mais ou menos os pedidos de naturalização do que os verificados nos anos anteriores? A naturalização implica a perda de nacionalidade portuguesa na França ou na Suíça (já que no Luxemburgo o próprio artigo diz que não implica)? Se não implica essa perda, por que é que a aquisição da nacionalidade do país onde se reside implica ‘desistência’ do país de que se é natural? Por que é que os portugueses, quando se naturalizam, ‘desistem’ de Portugal, e os estrangeiros que se naturalizam portugueses (…) apenas querem ‘ter liberdade de circulação na Europa e EUA’?'.
Segundo a autora da peça, Natália Faria, 'o que o PÚBLICO procurou fazer foi ‘oferecer’ uma interpretação' dos números divulgados pelo Eurostat, para 'fornecer ao leitor pistas de compreensão sobre o respectivo significado'. Por isso questionou um especialista, que, 'esse sim, os leu como sinal de que estes emigrantes estão a ‘desistir’ do país'. Considerando ser essa 'uma interpretação válida', a jornalista reconhece que se poderiam 'ter procurado outras interpretações', mas explica que 'tal nem sempre é compaginável com a lógica e os ritmos do jornalismo online'. Razão pela qual, acrescenta, 'também não se procurou ir mais além na contraposição destes números com os relativos a anos anteriores', o que exigiria 'outro investimento em termos de tempo e recursos'.
Por mim, creio que as questões colocadas pelo leitor fazem todo o sentido. Antecipar perguntas como essas — e procurar responder-lhes — na elaboração de uma peça informativa baseada num elemento de actualidade (neste caso o número de naturalizações no espaço europeu, que acabara de ser divulgado) é o que é próprio do jornalismo exigente. A relevância da informação estatística sobre as naturalizações em 2010 depende naturalmente da comparação com números anteriores. De igual modo, saber se as naturalizações no país de destino representam ou não, no seu conjunto, operações de aquisição de dupla nacionalidade, tem importância para a avaliação do significado da informação. Em ambos os casos, trata-se do valor acrescentado que deve caracterizar as notícias 'completas' que o PÚBLICO promete aos seus leitores.
O leitor questiona igualmente a interpretação dos dados patente nos títulos, ou melhor, a sua insuficiente fundamentação no texto. Poderiam, de facto, ter sido consideradas outras hipóteses explicativas. Uma delas é óbvia e surge num comentário à notícia online: 'A ideia de que pedir dupla nacionalidade é desistir de Portugal é ridícula. Ser cidadão do país de residência tem benefícios que não estão disponíveis para emigrantes não naturalizados'. Convém notar que, se a interpretação contestada está devidamente atribuída a um especialista, o texto e o título transformam-na em explicação única, associando o jornal a uma opinião legítima, mas que não resulta de pesquisa suficiente e documentada na peça. O que é ainda reforçado, na versão impressa, pela queda das aspas na palavra 'desistir', dando ao título escolhido a natureza de uma informação veiculada pelo PÚBLICO.
Não se trata, aqui, de um problema específico do noticiário online — na verdade, o texto publicado no dia seguinte no jornal impresso também não respondia às questões (pertinentes) colocadas pelo leitor. O motivo invocado para se ter prescindido de diligências que teriam permitido aperfeiçoar a peça levanta, no entanto, uma questão de fundo: deve ser aceite a ideia de que fazer notícias completas 'nem sempre é compaginável com a lógica e os ritmos do jornalismo online'?
Afastando-me do caso atrás referido, e reconhecendo que não se trata de um problema simples, julgo que a experiência mostra que é urgente debatê-lo e que as soluções a encontrar se revelarão decisivas para a qualidade do jornalismo nas novas plataformas tecnológicas. Por mim, creio que a resposta deve ser, pelo menos, tendencialmente negativa. Penso que é necessário desfazer um equívoco, que tem vindo a acentuar-se, em torno das possibilidades de actualização noticiosa contínua abertas pelos sitesinformativos.
Uma coisa são os acontecimentos — por vezes ainda em curso — que, uma vez confirmados, devem, por razões de forte interesse público, começar a ser noticiados de imediato, aproveitando as vantagens da instantaneidade do meio, mesmo quando não está ainda reunida toda a informação que permita responder de forma satisfatória às perguntas pertinentes que a qualquer leitor — e, por maioria de razão, a qualquer jornalista — sejam suscitadas pela informação inicial. Essas serão as típicas notícias em actualização, e essa característica — a de uma notícia ainda incompleta à luz dos padrões profissionais praticados no jornal — deve ser sempre claramente sinalizada.
Outra coisa são as inúmeras peças noticiosas, igualmente seleccionadas por critérios de actualidade, em relação às quais o peso da urgência medida ao minuto não deve sobrepor-se aos procedimentos a que o jornal se obriga — e são todas aquelas que não se justifica que sejam apresentadas de forma fragmentária (ou, pior, marcadas por erros informativos), quando um adiamento razoável do seu aparecimento nos ecrãs permite proporcionar informação mais completa e devidamente verificada e editada.
As reclamações que me chegam sobre notícias da edição online indicam que os leitores, sensatamente, valorizam mais a qualidade do que a velocidade. A possibilidade de actualizar em contínuo um tema noticioso é uma excelente oportunidade oferecida pela Internet, mas importa evitar o risco de se associar ao trabalho jornalístico corrente um sentido desproporcionado de extrema urgência — porque é para oonline…— que se traduza num abaixamento dos padrões profissionais. A ideia de que não se aplicaria às edições para a rede o objectivo de apresentar notícias completas e respeitadoras das melhores práticas só pode, a prazo, minar a confiança dos leitores na marca jornalística que têm como referência, quer a procurem em papel ou em dispositivos electrónicos.
Não há soluções mágicas para conciliar em absoluto, e em cada caso concreto, as potencialidades da informação quase instantânea com a essência do bom jornalismo. As estimulantes diferenças funcionais entre novos e velhos meios obrigam, isso sim, a afinar critérios de decisão no plano das escolhas em que se traduz diariamente a responsabilidade editorial sobre a publicação de qualquer notícia. Creio que essas escolhas serão tanto mais adequadas e coerentes quanto mais alargado e profundo for o debate interno sobre a experiência já acumulada.”