Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“O Hos­pi­tal de Braga, uma uni­dade inte­grada no Ser­viço Naci­o­nal de Saúde, mas gerido no âmbito de uma par­ce­ria público-privada com o grupo Mello, tem ao seu ser­viço uma 'res­pon­sá­vel de comu­ni­ca­ção' a quem cabe a tarefa, des­crita num docu­mento interno, de 'ave­ri­guar' os 'con­teú­dos' res­pei­tan­tes ao esta­be­le­ci­mento que este­jam 'dis­po­ní­veis na Inter­net'. Em notí­cia publi­cada no pas­sado dia 13 de Dezem­bro, os lei­to­res do PÚBLICO foram infor­ma­dos de que, em resul­tado des­sas 'ave­ri­gua­ções', uma fun­ci­o­ná­ria tinha sido alvo de um pro­cesso dis­ci­pli­nar, por ter cri­ti­cado — 'num grupo pri­vado do Face­book, des­ti­nado a tra­ba­lha­do­res do hos­pi­tal', segundo rela­tou o jor­na­lista Samuel Silva — um polé­mico regu­la­mento interno, publi­cado meses antes, sobre 'far­da­mento' e 'con­duta' dos fun­ci­o­ná­rios daquela uni­dade hospitalar.

A pro­fis­si­o­nal visada pelo pro­cesso dis­ci­pli­nar — que no texto publi­cado nesse 'grupo pri­vado do Face­book' terá con­si­de­rado 'bur­ros' e 'incom­pe­ten­tes' os res­pon­sá­veis pelo regu­la­mento em causa — é acu­sada de ter uti­li­zado expres­sões 'capa­zes de ofen­der a cre­di­bi­li­dade, o pres­tí­gio ou a con­fi­ança que sejam devi­dos ao Hos­pi­tal de Braga'. A notí­cia do PÚBLICO dava ainda conta de crí­ti­cas diri­gi­das à admi­nis­tra­ção do esta­be­le­ci­mento pelo depu­tado e diri­gente do Bloco de Esquerda João Semedo, que con­si­de­rou 'aten­ta­tó­rio das liber­da­des indi­vi­du­ais' haver no hos­pi­tal quem tenha a fun­ção de 'denun­ciar à ges­tão comen­tá­rios que lhe pare­cem pouco abo­na­tó­rios'. O jor­nal ouviu tam­bém sobre o assunto, para além da admi­nis­tra­ção hos­pi­ta­lar, o gabi­nete do minis­tro da Saúde e a Admi­nis­tra­ção Regi­o­nal de Saúde do Norte, tendo rece­bido res­pos­tas eva­si­vas ou pouco esclarecedoras.

Esta notí­cia, suges­ti­va­mente inti­tu­lada Hos­pi­tal de Braga con­trola men­sa­gens dos fun­ci­o­ná­rios no Face­book, não foi alvo de qual­quer des­men­tido, e ins­pi­rou um dos tex­tos do edi­to­rial do PÚBLICO na mesma edi­ção, em que se ques­ti­o­nava o com­por­ta­mento da ges­tão hos­pi­ta­lar. Nes­tes ter­mos: 'Se isto for con­si­de­rado nor­mal nas empre­sas, o que fal­tará para come­çar a inves­ti­gar emails pri­va­dos ou gra­var con­ver­sas, tele­fó­ni­cas ou não? Que limi­tes podem ser impos­tos à liber­dade de expres­são? (…) Não é assim que come­çam, bran­da­mente, todas as censuras?'.

Notí­cia e edi­to­rial levan­ta­ram dois tipos de 'dúvi­das' ao lei­tor Manuel Fer­nan­des, de Lis­boa. Em pri­meiro lugar, ques­ti­ona o facto de, 'em ambos os tex­tos, ser men­ci­o­nado um ‘grupo pri­vado do Face­book’', já que se tra­ta­ria, segundo terá cons­ta­tado, de ' uma página, desig­nada por ‘grupo aberto’, des­ti­nada a ‘pro­fis­si­o­nais que inte­gram ou inte­gra­ram o Hos­pi­tal de Braga’, mas na qual (…) escre­vem uten­tes e deten­to­res de empre­sas comer­ci­ais, nome­a­da­mente clí­ni­cas', e que 'está aberta à lei­tura de qual­quer pes­soa'. Con­tes­tando por isso a apli­ca­ção a este caso da desig­na­ção de 'grupo pri­vado', o lei­tor acres­centa: 'Este aspecto parece-me par­ti­cu­lar­mente impor­tante por­que, no edi­to­rial, faz-se a dis­tin­ção entre o que é dito em ‘gru­pos pri­va­dos’ e o que é dito em redes soci­ais, para con­cluir que a admi­nis­tra­ção do Hos­pi­tal de Braga teria legi­ti­mi­dade para ten­tar saber o que se diz nas segun­das (redes soci­ais), mas não no pri­meiro (‘grupo pri­vado’)'. E ques­ti­ona: 'Mas, então, uma página do Face­book em que qual­quer pes­soa pode escre­ver e, prin­ci­pal­mente, que pode ser lida por toda a gente, não cabe no con­ceito de ‘rede social’?'.

Manuel Fer­nan­des cri­tica ainda a afir­ma­ção com que abre o texto do edi­to­rial, segundo a qual 'o tal ‘grupo pri­vado’ (que já vimos não o ser…) ‘é vigi­ado regu­lar­mente às ordens da admi­nis­tra­ção’'. Argu­men­tando que na pró­pria notí­cia se explica que 'o depar­ta­mento de comu­ni­ca­ção tem entre as suas fun­ções ‘ave­ri­guar que con­teú­dos exis­tiam sobre o hos­pi­tal na Inter­net’' [trata-se de uma cita­ção do pro­cesso dis­ci­pli­nar], con­clui que, 'em vez da fun­ção de bufo, insi­nu­ada no edi­to­rial, o depar­ta­mento de comu­ni­ca­ção do Hos­pi­tal de Braga faz exac­ta­mente o que se espera dele', pelo que o PÚBLICO teria feito, na sua opi­nião, 'uma grande con­fu­são entre liber­dade de expres­são e a divul­ga­ção pública de insul­tos e injúrias'.

Em res­posta às ques­tões levan­ta­das pelo lei­tor, Nuno Pacheco, direc­tor adjunto do jor­nal e autor do edi­to­rial em causa, escla­rece um ele­mento fac­tual rele­vante: 'O que o lei­tor refere como ‘grupo aberto’ era, à data das decla­ra­ções em causa (Abril de 2012), um grupo fechado, como o jor­na­lista Samuel Silva, autor da notí­cia, teve oca­sião de con­fir­mar na altura e, con­tac­tado por mim, vol­tou a con­fir­mar agora. Hoje é aberto, mas nessa altura não era'. 'O que o artigo relata, e aquilo con­tra o que o edi­to­rial se insurge', explica, 'é a ave­ri­gua­ção de men­sa­gens inter­nas e a sua uti­li­za­ção para pos­te­rior pro­ce­di­mento dis­ci­pli­nar. (…) O facto de uma fun­ci­o­ná­ria repor­tar, a par das refe­rên­cias à empresa nos media públi­cos (blo­gues, Face­book, You­tube), infor­ma­ções dessa tal rede pri­vada, não é método que deva ser lou­vado — e é nesse sen­tido que o edi­to­rial aponta. Isso poderá levar, como é dito no edi­to­rial, a que mails inter­nos pos­sam tam­bém pas­sar a ser vigi­a­dos'. 'Não me parece', acres­centa Nuno Pacheco, 'que haja con­fu­são entre ‘liber­dade de expres­são e a divul­ga­ção pública de insul­tos e injú­rias’, como o lei­tor sugere. A divul­ga­ção dos tais ‘insul­tos e injú­rias’ foi feita, repito, em cir­cuito interno, entre tra­ba­lha­do­res do hospital'.

Não me com­pete apre­ciar neste espaço — e por isso nunca o fiz — as opi­niões dos edi­to­ri­a­lis­tas e outros colu­nis­tas do PÚBLICO, à excep­ção de casos em que pos­sam estar em causa as nor­mas do seu Esta­tuto Edi­to­rial, ou quando as opi­niões se fun­da­men­tem em dados não ver­da­dei­ros (e mesmo aí o que esta­ria em causa seriam os fac­tos, e não a opi­nião). Não se me levará a mal, no entanto, que, tratando-se de um caso que envolve a liber­dade de expres­são, mani­feste em ter­mos gené­ri­cos a minha sim­pa­tia pela tese defen­dida no edi­to­rial em causa.

Não será este o lugar, tam­bém, para dis­cu­tir o tema da res­pon­sa­bi­li­dade indi­vi­dual pelo que se escreve nas redes da Inter­net. Limito-me a notar que podem ser difu­sas as fron­tei­ras entre gru­pos 'aber­tos' ou 'fecha­dos': onde devem ser incluí­das, por exem­plo, para efeito de apli­ca­ção da dou­trina defen­dida no edi­to­rial, as redes de tipo cor­po­ra­tivo, como poderá ser o caso (a notí­cia não é clara a esse res­peito) do grupo cri­ado no Hos­pi­tal de Braga? Seja como for, o mais impor­tante será rea­fir­mar que a liber­dade de expres­são não pode ficar à porta de empre­sas e ins­ti­tui­ções, e que o direito à crí­tica a ori­en­ta­ções hie­rár­qui­cas não deve ser res­trin­gido por qual­quer forma de abuso do poder.

Este é, sim, o lugar para apre­ciar as prá­ti­cas pro­fis­si­o­nais que envol­vem a publi­ca­ção das peças infor­ma­ti­vas e as dúvi­das que estas pos­sam sus­ci­tar aos lei­to­res. Nesse plano, julgo haver dois repa­ros a fazer à notí­cia publi­cada a 13 de Dezem­bro, ape­sar de se tra­tar, no essen­cial, de um texto jor­na­lís­tico cor­recto e oportuno.

Em pri­meiro lugar, e fazendo fé no escla­re­ci­mento rece­bido, deve­ria ter sido incluída a infor­ma­ção actu­a­li­zada e com­pleta sobre a natu­reza do 'grupo' do Face­book em ques­tão. É per­fei­ta­mente com­pre­en­sí­vel que o lei­tor Manuel Fer­nan­des se insurja con­tra a desig­na­ção de 'grupo pri­vado' atri­buída na peça a uma página que pôde veri­fi­car estar 'aberta à lei­tura de qual­quer pes­soa'. Nuno Pacheco reco­nhece essa falha: 'Se a notí­cia (…) tivesse incluído a infor­ma­ção de que o tal ‘grupo pri­vado’ no Face­book (aces­sí­vel ape­nas a tra­ba­lha­do­res do hos­pi­tal no momento em que as acu­sa­ções de uma fun­ci­o­ná­ria, entre­tanto alvo de pro­cesso dis­ci­pli­nar, foram regis­ta­das e repor­ta­das à admi­nis­tra­ção) se trans­for­mou, pas­sa­dos vários meses, num espaço aberto, tal­vez já não sus­ci­tasse dúvi­das como as que o lei­tor aponta'. A omis­são de um facto rele­vante pode, com efeito, ser tão nociva como a divul­ga­ção de uma infor­ma­ção erró­nea para a com­pre­en­são ade­quada do que se noti­cia, inqui­nando a apre­ci­a­ção que cada lei­tor queira fazer sobre a situ­a­ção relatada.

Em segundo lugar, uma notí­cia publi­cada em Dezem­bro sobre um caso que, como nela se diz, 'remonta a Abril', quando foi publi­cado o tal 'regu­la­mento de far­da­mento e con­duta do Hos­pi­tal de Braga', não deve­ria ter esque­cido o con­texto dos fac­tos. Isto é, deve­ria ter infor­mado os lei­to­res, ou ter-lhes recor­dado, quais as nor­mas regu­la­men­ta­res que então gera­ram polé­mica, para que cada um pudesse for­mar a sua pró­pria opi­nião fun­da­men­tada sobre a 'inte­li­gên­cia' e 'com­pe­tên­cia' dos seus auto­res, tal como o terá feito, no uso do seu direito à crí­tica, a fun­ci­o­ná­ria que foi alvo de pro­cesso disciplinar.”