“Anunciada como um debate que terá partido da iniciativa do primeiro-ministro, para ouvir a ‘sociedade civil’ sobre ‘a reforma do Estado’, realizou-se nas últimas terça e quarta-feira no Palácio Foz, em Lisboa, uma conferência intitulada ‘Pensar o Futuro — um Estado para a Sociedade’. Os leitores deste jornal foram informados do que lá foi dito nos discursos de abertura e de encerramento — a cargo, respectivamente, do secretário de Estado Carlos Moedas e do próprio Passos Coelho —, mas foram mantidos na ignorância do que se debateu nas diversas sessões dedicadas a temas como, entre outros, a educação, a saúde, a segurança social ou a defesa. Isto é, não foram informados sobre as teses e argumentos que terão alimentado uma discussão (se é que houve discussão) dos profundos cortes na despesa pública que o Governo se prepara para anunciar com o rótulo de ‘reforma do Estado’.
Na origem desta ausência de informação esteve a discordância dos responsáveis editoriais do PÚBLICOface às regras de cobertura jornalística que os promotores da conferência tentaram impor. Segundo relatou a jornalista Sofia Rodrigues em notícia publicada no passado dia 16, essas regras foram anunciadas no início da sessão de abertura por Sofia Galvão, figura destacada do PSD a quem foi confiada a organização da iniciativa. Nestes termos: ‘Não haverá registos de imagem e som senão nesta sessão de abertura e na de encerramento. A permanência de jornalistas na sala pode manter-se, mas não haverá citações de nada que aqui seja dito sem expressa autorização dos citados’. A organizadora terá ainda acrescentado que tais regras tinham sido ‘percebidas e aceites pela comunicação social’.
A jornalista do PÚBLICO, que abandonou o local na sequência deste anúncio — tal como fizeram outros representantes de órgãos de informação (mas não todos) —, garantiu, na notícia já referida, que o jornal ‘não tinha sido informado previamente destas limitações’ ao seu trabalho. Informada da decisão tomada por Sofia Rodrigues, a direcção do PÚBLICO aprovou-a e optou por renunciar ao acompanhamento jornalístico dos debates. À excepção de uma peça em que se reportou, na edição de quinta-feira, o discurso final do primeiro-ministro (não abrangido pelas restrições anunciadas), o espaço noticioso dedicado à iniciativa limitou-se assim ao relato do condicionamento informativo que a marcou, denunciado em editorial como ‘uma inaceitável tentativa de vedar aos cidadãos um debate que lhes interessa’. Nesse editorial — que, tal como se tornou regra nos últimos anos, não é assinado, mas responsabiliza naturalmente a direcção do jornal — afirma-se ainda que ‘a conferência foi feita sob o signo do segredo e da censura prévia’.
A posição assumida pelo PÚBLICO foi questionada por alguns leitores, em sentidos diferentes e contraditórios. Houve quem criticasse o que foi entendido como um boicote informativo a uma iniciativa governamental, e houve quem, pelo contrário, sustentasse que o jornal deveria ter ignorado também o discurso de Passos Coelho, como forma de protesto contra um atentado à liberdade de informação. Duarte Martinho, por exemplo, pergunta se ‘não deveriam os jornalistas ter boicotado toda a conferência’ e faz notar que o primeiro-ministro caucionou pessoalmente o condicionamento imposto à comunicação social, ao dizer nesse discurso final que aguardava que lhe fossem entregues nos próximos dias as conclusões dos debates, que ‘representam fidedignamente o que foi dito’, não sendo assim contaminadas, no seu entender, pela mediação jornalística. O mesmo ‘inconveniente’, afinal, invocado por Sofia Galvão quando justificou as regras adoptadas no Palácio Foz como uma medida para evitar que aparecessem na imprensa ‘afirmações descontextualizadas’ atribuídas aos oradores.
Nem todos os responsáveis por órgãos de comunicação reagiram do mesmo modo à situação criada pelos promotores da conferência. Entre os que optaram por acompanhar e noticiar os debates houve quem garantisse ter sido avisado das regras restritivas, presumindo-se que com elas se tenha conformado, quer as tenha ou não cumprido à letra. Soube-se, entretanto, que um despacho distribuído pela agência Lusa ao início da noite de segunda-feira explicava que, segundo Sofia Galvão, ‘a comunicação social não poderá registar nem citar as declarações feitas nos painéis de debate ‘.
O PÚBLICO, segundo me explicou a directora, Bárbara Reis, ‘não foi convidado’ a acompanhar a iniciativa, tendo sabido da sua existência ‘através de outros meios de comunicação’. Não teve, também, conhecimento atempado da controversa norma adoptada: ‘Chegámos à conferência sem saber as regras. Na véspera à noite, ao consultar a agenda da Lusa (não uma notícia, a agenda), lemos uma breve nota que fazia referência a limitações’. Tratava-se, porém, de uma nota ‘contraditória e confusa’, em que se lia que ‘o encontro é aberto à imprensa escrita, excepto as sessões de abertura e fecho, que podem ser cobertas também pela imprensa de audio e vídeo’ (!).
Nesse mesmo dia, prossegue Bárbara Reis, ‘a jornalista Sofia Rodrigues falou com a organizadora da conferência, para lhe pedir o programa. Nesse contacto, em momento algum Sofia Galvão falou de regras particulares sobre a cobertura da conferência ou limitações de qualquer tipo. O programa que nos enviou a seguir também não aborda o tema’. ‘Compreendemos, conhecemos e respeitamos’, escreve a directora do jornal, ‘diferentes tipos de conferências e regras para a sua cobertura. Quando são diferentes da norma e da tradição, diferentes do expectável, as regras são apresentadas, discutidas e acordadas com o jornal com antecedência. (…) Não foi o caso. Pelo contrário: a conferência foi apresentada como sendo ‘aberta à sociedade civil’ e ao PÚBLICO não chegou qualquer aviso prévio de que esta seria uma conferência com regras diferentes’.
Assim, a afirmação genérica de que a ‘comunicação social’ aceitara as normas em questão não é de todo rigorosa, devendo ainda notar-se que uma negociação nesse sentido não é substituível por uma declaração unilateral à Lusa. Bárbara Reis considera por isso que o que se passou configura ‘uma quebra dos vínculos de confiança, lealdade e respeito pelo trabalho dos jornalistas’, e explica que foram ponderadas várias opções para reagir à situação, tendo prevalecido a que os leitores já conhecem.
Não valerá a pena reproduzir aqui todas as críticas já dirigidas aos promotores da iniciativa. Parece-me evidente que a tentativa de dificultar a informação sobre quem disse o quê no Palácio Foz (com a notória excepção para Moedas e Passos Coelho), tal como a entrega exclusiva da captação e edição de sons e imagens dos debates a funcionários do Governo, se inserem numa lógica de propaganda e controlo da informação, que só pode prejudicar o escrutínio independente e a credibilidade das conclusões que serão entregues ao primeiro-ministro.
É óbvio que nada impede os governantes ou quem os apoia de organizarem as reuniões que entenderem, com as regras que entenderem, e não custa imaginar bons motivos para conciliábulos mais discretos ou discussões de divulgação limitada. Não se confunda é isso com debate público sobre a ‘reforma do Estado’, destinado a ouvir ‘o que a sociedade civil quer’, como disse Moedas. Nem se confunda a sociedade civil com um punhado de convidados para uma troca de ideias patrocinada pelo Governo. Nem, muito menos, se aceite a ideia, invocada pela organização, de que a regra da não citação dos intervenientes se justificaria para evitar um ‘constrangimento das conversas’. Quem, de entre as figuras públicas que passaram pelo Palácio Foz, se rebaixaria à exigência do anonimato para emitir opiniões, nas suas áreas de conhecimento, sobre alguns dos mais graves problemas do país?
Nada tenho a opor, assim, às críticas dirigidas pelo PÚBLICO à organização do debate, embora discorde dos termos utilizados no editorial do dia 16, em que se fala de uma conferência feita ‘sob o signo do segredo e da censura prévia’, uma acusação manifestamente desproporcionada. Nem critico a atitude de protesto assumida por Sofia Rodrigues, que em qualquer caso pertence ao foro individual do livre exercício da consciência profissional.
Falta, no entanto, responder às dúvidas dos leitores. Fez bem o PÚBLICO em ignorar o conteúdo dos debates no Palácio Foz? Por mim, julgo que não. Pela importância e actualidade dos temas discutidos, pela reputação de alguns dos conferencistas, tinham à partida indiscutível interesse noticioso, sem descurar o seu enquadramento no plano político. A organização quis ‘proibir’ a citação de declarações não autorizadas pelos seus autores? Por que não pedir essa autorização, se a sua relevância o justificasse? Por que não, em alternativa, ignorar essa absurda ‘proibição’, em nome do direito e dever de informar? Por que não, mesmo não assistindo ao encontro, recuperar o que fosse relevante através de fontes fiáveis?
Qualquer que fosse a solução escolhida, deveria ter prevalecido, na minha opinião, o dever primacial dos jornalistas, que é o de informar os seus leitores. Sem prejuízo do protesto contra limitações censuráveis ao livre exercício da profissão. A menos que (como pode sempre acontecer na cobertura de um acontecimento) as expectativas iniciais de interesse público fossem defraudadas por falta de relevância ou novidade da matéria noticiosa. Porém, pelo que vi referido na imprensa que reportou os debates, algumas sugestões e propostas marcantes em áreas como o cálculo das pensões, o desenho do Serviço Nacional de Saúde, a política salarial ou o grau de autonomia das escolas — quer se aproximassem ou se afastassem das actuais orientações governamentais — deveriam certamente ter sido dadas a conhecer aos leitores deste jornal.”