“O tratamento editorial de dados estatísticos e o ângulo a privilegiar na divulgação de números que retratam uma realidade multifacetada é um dos terrenos em que o jornalismo de qualidade deve deixar a sua marca. O caso de que hoje me ocupo — a manchete da edição do passado dia 21 de Janeiro, que vários leitores criticaram, por entenderem que dava ‘um retrato distorcido da realidade’ no que se refere à criação e encerramento de empresas no país — é praticamente idêntico ao que deu origem a um texto aqui publicado em 28 de Outubro do ano passado. O tema é o mesmo, e as críticas são do mesmo teor. Ainda assim, julgo que valerá a pena partilhar algumas reflexões sobre as reclamações que me chegaram, já que se tratou, desta vez, do assunto escolhido para o título principal da primeira página.
O que nesse título se escreveu foi o seguinte: 28 mil empresas fecham e criação de novos negócios cai em 2012. Na peça noticiosa para que esta frase remetia divulgavam-se números fornecidos pelo Ministério da Justiça sobre a criação e a extinção de empresas ao longo do ano passado e procedia-se à comparação dessas cifras com o que nesse domínio ocorrera nos anos anteriores. O objecto da notícia de Outubro passado fora exactamente o mesmo, com a diferença de que então se tratava de noticiar os dados conhecidos relativamente ao período de Janeiro a Setembro de 2012. A comparação com o título então escolhido (Já fecharam 14 mil empresas este ano…) aponta para o agravamento do fenómeno nos últimos meses.
Os pós-títulos da manchete de 21 de Janeiro destacavam ainda três outros aspectos da realidade noticiada: Falências reais aumentaram quase 10% face a 2011; O saldo ainda é favorável à criação de empresas, mas com pouco impacto no emprego; Há mais negócios a surgir na agricultura e menos nos serviços. Todas estas afirmações se encontravam devidamente sustentadas na informação publicada no interior do jornal, onde um gráfico que ilustrava a notícia permitia reter, entre outras, as seguintes conclusões estatísticas: o número de empresas extintas descera de 33.758 em 2011 para 27. 683 em 2012; o número de novas empresas diminuíra de 33.163 criadas em 2011 para 29.311 no ano passado; o saldo entre encerramentos e aberturas de negócios mostrava-se positivo (mais 1.628) em 2012, ao contrário do que sucedera no ano anterior.
É principalmente esse ‘saldo positivo’ que os leitores que criticaram a manchete invocam para argumentar que deveria ter sido esse o ângulo informativo privilegiado nos títulos, e não o número de empresas fechadas e a queda na criação de novos negócios. ‘Acho inadmissível o título de primeira página, onde mais uma vez se desmoraliza o país (…), quando na pág. 16 o quadro mostra uma criação líquida de 1628 [empresas]’, escreveu o leitor Ricardo d’Azevedo, que já criticara a mesma opção editorial em Outubro passado. ‘Parece-me que o PÚBLICO não consegue dominar essa ânsia de transmitir um retrato distorcido da realidade (…). Voltou a esquecer-se de noticiar, nas mesmas grandes parangonas da primeira página, que foram entretanto criadas 29.311 empresas’, comenta o leitor Fernando Santos. Sublinhando também o ‘saldo positivo’ entre nascimento e morte de projectos empresariais, o leitor Ricardo Alves diz ver no ‘critério editorial’ que atribui à direcção do PÚBLICO motivo para afirmar que ‘não surpreende a escolha (…) do destaque’ da capa.
A autora da notícia, Raquel Almeida Correia, apresenta diferentes argumentos em defesa do enfoque escolhido. Destaco o que me parece mais relevante: ‘Importa dizer que para a escolha deste ângulo também contribuiu o facto de os chamados fechos ‘reais’, que reflectem de uma forma mais autêntica as dificuldades que o tecido empresarial português atravessa, terem aumentado 9,4% face a 2011″. Por fechos ‘reais’ deve entender-se, conforme explica a jornalista, o número de falências que verdadeiramente ocorreram ao longo do ano, que se distinguem das ‘dissoluções administrativas, efectuadas pelos serviços quando as empresas estão inactivas mas ainda constam nos ficheiros’.
De facto, como ficava claro pela leitura da peça — e era destacado no pós-título da manchete —, das cerca de 28.000 empresas desaparecidas do cadastro económico no ano passado, mais de 16.600 correspondiam a extinções realmente ocorridas em 2012, o que representou uma subida de quase 10% em relação ao ano anterior. Acontece ainda que, como também se explicava na notícia, a limpeza de ficheiros, iniciada em 2008 no âmbito do programa Simplex, está já perto de se encontrar concluída, levando a que o peso dos encerramentos ‘administrativos’ de empresas inactivas tenha já sido proporcionalmente muito menor (como se escreveu, ‘caíram 40,4% no ano passado’, em relação a 2011).
Por isso, escreve Raquel Almeida Correia, o que se transmitiu aos leitores não foi um ‘retrato distorcido da realidade’, mas sim ‘um retrato do país, num momento em que mais empresas encerram do que em anos anteriores (sem que seja por via administrativa), e em que a criação de novos negócios, apesar de superar os fechos, está a cair e a mostrar-se insuficiente para colocar um travão ao desemprego’. Nesse sentido aponta outra conclusão extraída dos números oficiais: ‘Verificou-se em 2012 uma queda de 11,6% na abertura de novos negócios, quando em 2011 houve uma subida de 24,9%’.
A leitura isolada de alguns números pode, como se vê, conduzir a conclusões aparentemente discrepantes, que tenderão a ser valorizadas de acordo com a perspectiva (mais optimista ou mais pessimista) de cada leitor sobre a evolução económica do país. Neste caso, a consideração de todos os dados disponíveis mostra que a opção de destacar o aparente ‘saldo positivo’ resultante da apresentação em bruto dos números oficiais para retratar essa evolução teria redundado, afinal, num erro informativo.
Na verdade, ‘os números sobre o fecho de empresas e a queda na criação de novos negócios reflectem o abrandamento da economia’, como constata o director adjunto do PÚBLICO Miguel Gaspar, que esclarece que ‘a direcção do jornal acompanha a argumentação da autora da notícia’ e revela que ‘a escolha do título de capa e a selecção deste tema para manchete foram acompanhadas por um debate interno’. Esse debate conduziu à opção pela ideia privilegiada na capa (‘o número de empresas que fecham e não o saldo entre empresas que fecham e empresas que abrem’), o que aconteceu ‘precisamente por se ter concluído’ que esse outro ângulo ‘introduziria, ele sim, uma visão falaciosa da realidade’.
Sublinhando que ‘as notícias e as escolhas editoriais do PÚBLICO não têm por critério ‘moralizar’ ou ‘desmoralizar’ o país, Miguel Gaspar conclui: ‘Neste caso, verifica-se que um conjunto de dados estatísticos foi trabalhado jornalisticamente de forma cuidada e com a contextualização adequada. Sem essa capacidade, o jornal teria apenas feito uma leitura superficial dos dados, aí sim distorcendo, mesmo que involuntariamente ou por omissão, a realidade concreta. O valor que é urgente realçar é a capacidade de, através de jornalistas especializadas, conseguir analisar estatísticas para além do óbvio’.
Por mim, subscrevo inteiramente esta conclusão, o que me dispensa de repetir argumentos que sobre este tema aqui alinhei há alguns meses. Na minha opinião, os leitores acima citados não têm razão quando sugerem que a manchete do passado dia 21 seria tendenciosa. O PÚBLICO fez muito bem em não se limitar a transcrever burocraticamente os valores globais das estatísticas oficiais e em aprofundar a leitura dos números divulgados, conseguindo assim transmitir mais fielmente a transformação realmente ocorrida na paisagem empresarial. Não houve aqui enviesamento informativo. Houve, pelo contrário, um exemplo de bom jornalismo.
Ainda assim, a repetição das críticas de leitores a um trabalho informativo que por sua vez repete no essencial o que sobre o mesmo tema se escrevera três meses antes — as mesmas opções de título, as mesmas soluções infográficas, uma estrutura informativa e gráfica em tudo semelhante — suscita uma reflexão sobre outras facetas que contribuem para a qualidade jornalística, como a clareza e a diversidade de abordagens.
Ter-se-ia ganho em clareza, por exemplo, apresentando um gráfico em que não se ignorasse a distinção entre o número de falências reais e o que resulta da simples limpeza de ficheiros, evitando assim que se repetissem as leituras equívocas que o trabalho publicada em Outubro já provocara. Por outro lado, o significado dos números divulgados tornar-se-ia mais nítido se tivesse sido dada maior visibilidade nos títulos ao dado mais revelador da situação descrita: o crescimento real do número de falências. Finalmente, a sempre desejável diversidade de abordagens informativas deveria ter aconselhado o aprofundamento de algumas pistas proporcionadas pelos números oficiais, como por exemplo a que aponta para o fenómeno, contra a corrente, do notório crescimento da criação de empresas no sector agrícola.”