Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

José Queirós

“Foi já a 4 de Julho do ano pas­sado que o PÚBLICO noti­ciou que o Supremo Tri­bu­nal Admi­nis­tra­tivo (STA) deter­mi­nara a perda de man­dato do pre­si­dente da Câmara de Faro, José Macá­rio Cor­reia, por actos ilí­ci­tos pra­ti­ca­dos alguns anos antes, quando pre­si­dia à autar­quia de Tavira. Os lei­to­res recordar-se-ão de que mais recen­te­mente (a 16 de Janeiro) foi noti­ci­ado que a con­de­na­ção do autarca se tor­nara defi­ni­tiva, dado que o Tri­bu­nal Cons­ti­tu­ci­o­nal (TC) se recu­sou a apre­ciar o recurso que apre­sen­tara con­tra a sen­tença do STA.

Pouco mais de duas sema­nas antes da divul­ga­ção desta última notí­cia, con­cre­ta­mente no último dia de 2012, recebi uma men­sa­gem de Macá­rio Cor­reia, em que o ainda pre­si­dente da Câmara de Faro me dava conhe­ci­mento de uma expo­si­ção envi­ada na vés­pera à direc­tora do jor­nal, acu­sando o PÚBLICO de se ter afas­tado ‘gra­ve­mente’ da ‘linha de rigor pro­fis­si­o­nal de outros órgãos’ na peça que publi­cara no iní­cio de Julho, que seria ‘total­mente infundada’.

Queixando-se de que essa notí­cia não fora até então ‘des­men­tida’, nem lhe fora dada qual­quer expli­ca­ção, Macá­rio Cor­reia infor­mava Bár­bara Reis de que dei­xa­ria de pres­tar ‘qual­quer infor­ma­ção’ a este jor­nal e iria tor­nar público ‘o atro­pelo à ver­dade e ao rigor e ética pro­fis­si­o­nais’ de que afir­mava ter sido vítima, ‘salvo se hou­ver uma digna e res­pon­sá­vel ati­tude da Direc­ção do jornal’.

Sem dei­xar de estra­nhar que esta recla­ma­ção me che­gasse cerca de meio ano após a publi­ca­ção da notí­cia em causa, pro­cu­rei apu­rar o que se pas­sara. Depa­rei com um longo enredo jurí­dico, polí­tico e jor­na­lís­tico, que se estende — e avanço já as con­clu­sões a que che­guei — entre um ponto de par­tida mar­cado por um lapso infor­ma­tivo do PÚBLICO, que não foi devi­da­mente cor­ri­gido em tempo útil, e um ponto de che­gada que obriga a ques­ti­o­nar o com­por­ta­mento do autarca algar­vio no plano da boa-fé em rela­ção à imprensa e à opi­nião pública e da trans­pa­rên­cia de pro­ce­di­men­tos devida a elei­to­res e munícipes.

Recu­ando à peça de 4 de Julho, assi­nada pelo jor­na­lista José Augusto Moreira, pude veri­fi­car que não se tra­tava, de modo algum, de uma notí­cia ‘total­mente infun­dada’. Em acór­dão datado de 20 de Junho, o STA tinha de facto orde­nado a perda de man­dato de Macá­rio Cor­reia, por con­du­tas ‘vio­la­do­ras dos ins­tru­men­tos de ges­tão ter­ri­to­rial e orde­na­mento urba­nís­tico’ ao tempo em que pre­si­dia à Câmara de Tavira. A notí­cia não só era ver­da­deira nesse ponto essen­cial, como se mos­trava espe­ci­al­mente rele­vante, tendo em conta que a acu­sa­ção do Minis­té­rio Público aco­lhida pelo tri­bu­nal abran­gia diver­sas vio­la­ções das nor­mas pro­tec­to­ras da Reserva Eco­ló­gica Naci­o­nal, em cuja defesa se dis­tin­guira pre­ci­sa­mente Macá­rio Cor­reia, enquanto secre­tá­rio de Estado do Ambi­ente do então primeiro-ministro Cavaco Silva.

Redi­gida em cima da hora de fecho do jor­nal, a notí­cia con­ti­nha no entanto um erro fac­tual impor­tante. Ligava a sen­tença do STA a irre­gu­la­ri­da­des rela­ci­o­na­das com o licen­ci­a­mento do empre­en­di­mento ‘Pal­mei­ras Resort’, des­ti­nado a aco­lher 800 viven­das, que tinha sido objecto de uma queixa apre­sen­tada pela asso­ci­a­ção ambi­en­ta­lista Quer­cus. O caso dera ori­gem a notí­cias ante­ri­o­res, em que se refe­ria nome­a­da­mente a absol­vi­ção da autar­quia no tri­bu­nal de pri­meira ins­tân­cia, mas não estava ainda encer­rado no plano judicial.

Na ver­dade, como resul­tava da lei­tura de notí­cias mais desen­vol­vi­das publi­ca­das nos dias seguin­tes, não fora esse o pro­cesso que dera ori­gem à deci­são do STA. As ile­ga­li­da­des que o tri­bu­nal supe­rior enten­deu deve­rem con­du­zir à perda de man­dato diziam res­peito ao licen­ci­a­mento de diver­sas obras dis­per­sas pelo con­ce­lho de Tavira, que Macá­rio Cor­reia terá apro­vado, entre 2005 e 2007, con­tra o pare­cer dos ser­vi­ços téc­ni­cos do muni­cí­pio e em vio­la­ção dos pla­nos de orde­na­mento em vigor.

Em suces­si­vas peças pos­te­ri­o­res, ao longo do mês de Julho, o PÚBLICO refe­riu sem­pre cor­rec­ta­mente os fac­tos que esti­ve­ram na ori­gem da con­de­na­ção do autarca, não repe­tindo o erro da notí­cia ini­cial, que o jor­na­lista atri­bui à cir­cuns­tân­cia de o caso ‘Pal­mei­ras Resort’ ser até então o único conhe­cido como tendo dado ori­gem a uma inter­ven­ção judi­cial con­tra Macá­rio Cor­reia, e ao facto de, na vés­pera da publi­ca­ção, o autarca se ter escu­sado a ‘escla­re­cer os fac­tos que esti­ve­ram na ori­gem do processo’.

Embora não tenha sido repe­tida, a refe­rên­cia ini­cial ao caso ‘Pal­mei­ras Resort’ repre­sen­tou um erro infor­ma­tivo que deve­ria ter sido ime­di­ata e expli­ci­ta­mente cor­ri­gido, por res­peito aos lei­to­res, o que não suce­deu. ‘Deve­ría­mos ter feito um ‘Público Errou’ na altura’, reco­nhece a direc­tora do jor­nal, enquanto o autor da notí­cia explica que o PÚBLICO deu pri­o­ri­dade nos dias seguin­tes a ten­tar ouvir o autarca sobre o lití­gio em torno do licen­ci­a­mento do ‘Pal­mei­ras Resort’, mas depa­rou sem­pre com a sua recusa em pres­tar escla­re­ci­men­tos. Depois, o assunto ‘saiu da agenda’ e Macá­rio Cor­reia, que diz ter soli­ci­tado expli­ca­ções, que não rece­beu, atra­vés do jor­na­lista do PÚBLICO que habi­tu­al­mente o con­tacta no Algarve, Idá­lio Revez, reto­mou com este um ‘rela­ci­o­na­mento normal’.

O que não saiu da ‘agenda’ foi o pro­blema polí­tico resul­tante da deci­são de perda de man­dato, com Macá­rio Cor­reia a manter-se no cargo enquanto aguar­dava uma deci­são sobre o recurso que inter­pu­sera junto do TC, ale­gando que sobre os actos con­cre­tos de licen­ci­a­mento con­si­de­ra­dos ilí­ci­tos pelo STA decor­riam ainda pro­ces­sos judi­ci­ais por con­cluir. A pres­são do calen­dá­rio polí­tico, com o PSD — que vê aproximar-se o período de anún­cio das can­di­da­tu­ras autár­qui­cas — a fazer depen­der a con­fir­ma­ção do seu apoio ini­cial a uma recan­di­da­tura do pre­si­dente da Câmara de Faro de uma deci­são ‘atem­pada’ do TC, e este a recusar-se a avan­çar uma data con­creta para anun­ciar um vere­dicto (notí­cia de Idá­lio Revez no PÚBLICO de 6 de Janeiro), terá feito cres­cer o ner­vo­sismo nos meios polí­ti­cos locais.

Foi neste con­texto que Macá­rio Cor­reia deci­diu recu­pe­rar, no final do ano, a antiga ale­ga­ção de ‘fal­si­dade’ da notí­cia de Julho, o que levou o seu autor a prestar-lhe, então, as expli­ca­ções soli­ci­ta­das. Em con­sequên­cia, foi des­men­tida pela pri­meira vez de forma clara nas pági­nas do jor­nal a infor­ma­ção errada que em 4 de Julho atri­buíra essa deci­são judi­cial ao caso ‘Pal­mei­ras Resort’ (notí­cia de José Augusto Moreira na edi­ção de 6 de Janeiro). Pode­ria dar-se o caso por encer­rado, se o jor­na­lista não tivesse enten­dido, e bem, obter infor­ma­ção actu­a­li­zada sobre o tema ‘Pal­mei­ras Resort’. A isto res­pon­deu Macá­rio Cor­reia, con­forme foi publi­cado, que os tri­bu­nais tinham con­cluído pela lega­li­dade do licen­ci­a­mento desse empre­en­di­mento turístico.

Sucede que, à data des­tas decla­ra­ções, a ver­dade era outra, con­forme o PÚBLICO noti­ciou no pas­sado dia 26. Após uma deci­são judi­cial de facto favo­rá­vel ao autarca, tomada em Feve­reiro pelo Tri­bu­nal Admi­nis­tra­tivo de Loulé, e tendo os ambi­en­ta­lis­tas recor­rido da sen­tença, o Tri­bu­nal Cen­tral Admi­nis­tra­tivo Sul (TAC) obri­gou à rea­ber­tura do pro­cesso na pri­meira ins­tân­cia, num acór­dão em que é cri­ti­cada em ter­mos inu­si­ta­da­mente seve­ros a deci­são da juíza de Loulé e decla­rada a ‘nuli­dade abso­luta e total’ da sen­tença que pro­fe­riu. Este acór­dão é datado de 6 de Dezem­bro pas­sado, não pare­cendo crí­vel que o pre­si­dente da Câmara de Faro o pudesse des­co­nhe­cer quando afir­mou ao PÚBLICO ser esse um assunto já ‘arqui­vado’ pela justiça.

Entre­tanto, e como o PÚBLICO rela­tou com des­ta­que a 16 de Janeiro pas­sado, Macá­rio Cor­reia viu con­fir­mada, atra­vés da posi­ção tomada pelo TC, a perda do man­dato em Faro. Tem agora à sua frente dias difí­ceis no plano jurí­dico — pro­cu­rando adiar atra­vés dos últi­mos expe­di­en­tes legais dis­po­ní­veis o cum­pri­mento da deli­be­ra­ção que o obriga a aban­do­nar a autar­quia — e no plano polí­tico, se ainda tiver razões para acre­di­tar numa indi­gi­ta­ção do PSD para a sua recandidatura.

Quanto ao pro­cesso, afi­nal rea­berto, do mega-empreendimento em Tavira, que sur­pre­en­den­te­mente deci­diu recor­dar — ao insis­tir, seis meses depois, num des­men­tido do PÚBLICO sobre fac­tos acerca dos quais o jor­nal infor­mou cor­rec­ta­mente os lei­to­res, tendo no entanto errado ao associá-los, na notí­cia de 4 de Julho, às cau­sas da sua con­de­na­ção judi­cial —, difi­cil­mente o inte­resse público dei­xará de ser lesado, seja pela cons­tru­ção de cen­te­nas de viven­das em espaço pro­te­gido, seja por indem­ni­za­ções ou con­tra­par­ti­das a que a autar­quia se veja obri­gada perante os promotores.

Tendo come­tido, por falta de veri­fi­ca­ção em tempo útil, um erro infor­ma­tivo que só tar­di­a­mente reco­nhe­ceu de forma clara, o PÚBLICO evi­tou no entanto, com as notí­cias publi­ca­das nas últi­mas sema­nas, o erro maior de se dei­xar ins­tru­men­ta­li­zar por mano­bras polí­ti­cas num tema de evi­dente inte­resse público. Embora Macá­rio Cor­reia diga agora não saber ‘se che­gou a ser emi­tido o alvará’ para o ‘Pal­mei­ras Resort’, o que se passa, segundo o jor­na­lista que acom­pa­nhou o caso, é que os pro­mo­to­res ‘tive­ram o cui­dado de não o dei­xar cadu­car’ e estão ‘na posse de um licen­ci­a­mento que lhes per­mite cons­truir as tais 800 viven­das’ numa área espe­ci­al­mente sen­sí­vel do ponto de vista ambi­en­tal. O que só vem refor­çar a impor­tân­cia de uma inves­ti­ga­ção jor­na­lís­tica apro­fun­dada acerca do con­tro­verso empreendimento.”