Faz quase oito anos que o New York Times publicou uma matéria muito badalada, de James Risen e Eric Lichtblau, sobre o programa secreto do governo Bush para grampear telefones sem mandado. Para muito leitores do Times, no entanto, a matéria ainda ressoa profundamente.
O atraso de 13 meses para publicar o artigo, período que incluiu uma eleição presidencial, continua a incomodar esses leitores. Por que o Times, diante de solicitação tão urgente do governo, demorou tanto? Em que isso reflete a relação entre o governo e a imprensa? Aconteceria a mesma coisa se fosse hoje? Vejo essas perguntas com frequência em e-mails e comentários online. Aparecem em colunas de jornais, no Twitter e em notas de jornal.
Atualmente, à luz do enorme vazamento de informações confidenciais sobre vigilância governamental por Edward Snowden, ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança, o episódio assume uma atualidade renovada. Snowden disse que, justamente por causa deste episódio, ele decidiu levar seu tesouro para longe (em grande parte para Glenn Greenwald, do Guardian, para a vídeo-jornalista Laura Poitras e para Barton Gellman, do Washington Post). Recentemente, Snowden disse à jornalista Natasha Vargas-Cooper que aqueles que assumem riscos ao vazar informações “devem confiar em absoluto que os jornalistas que procurarem irão divulgar aquelas informações, e não enterrá-las”.
Compreensão do que aconteceu
Nas últimas semanas, entrevistei algumas das principais personagens do antigo drama. O episódio – sobre o qual muito se escreveu, na revista New York, no Washington Post, num livro de Eric Lichtblau e num outro recente, de Peter Baker, do Times – foi pouco explicado nas páginas do próprio Times.
O ombudsman da época, Byron Calame, entregou uma longa lista de perguntas ao primeiro escalão do jornal, mas não recebeu respostas. Posteriormente, ele escreveu sobre um ponto específico da situação, estabelecendo que o artigo poderia ter sido publicado antes da eleição presidencial de 2004, quando George W. Bush obteve um segundo mandato. Mais recentemente, a HBO comprou os direitos e encomendou um roteiro. Material de cinema existe, com certeza: os repórteres que lutaram pela publicação; as autoridades do governo que queriam derrubar a matéria (inclusive, apelando, como último recurso, para uma reunião no Salão Oval na qual Bush expôs seus argumentos ao publisher do Times, Arthur Sulzberger Jr.); os editores de renome avaliando a decisão.
Considerando que o episódio recentemente voltou à tona, achei que poderia ser útil examiná-lo aqui de maneira a proporcionar aos leitores do Times uma compreensão mais profunda daquilo que aconteceu e por quê, assim como explorar por que é importante agora e quais poderiam ser as lições.
Entrevista com o diretor da NSA
Todas as pessoas envolvidas veem o episódio como intrinsecamente vinculado a um dado momento no tempo – sua proximidade com o 11 de setembro e tudo o que se seguiu. Algumas pessoas também dizem que um período tumultuado no Times, após o escândalo de Jayson Blair e as falsas reportagens que antecederam a guerra do Iraque, poderia ter tornado os editores mais cautelosos.
“Toda aquela confluência era bastante notável”, disse-me Eric Lichtblau. Embora acreditasse profundamente, e ainda acredita, que a matéria deveria ter sido publicada quando ficou pronta – no outono de 2004 –, ele acha que o contexto histórico teria sido um dos principais motivos para que não fosse. É o que também pensa Bill Keller, na época editor-executivo do jornal, que – acatando uma recomendação do chefe da sucursal de Washington, Philip Taubman – decidiu contra a publicação da matéria original. “Três anos após o 11 de setembro, ainda estávamos, como país, sob a influência do trauma, e como jornal, não estávamos imunes”, disse Keller. “Não foi um arrebatamento patriótico. Foi uma percepção profunda de que o mundo era um lugar perigoso.”
Michael V. Hayden, que era diretor da NSA e posteriormente da CIA, disse-me numa entrevista que argumentara energicamente contra a publicação até o momento em que o Times decidiu ir em frente. Sua razão fundamental: “Este esforço foi projetado para interceptar comunicações ameaçadoras” e para evitar outro ataque terrorista.
E se Snowden trouxesse as informações para o Times?
No final, o Times acabou por publicar a matéria com dois revólveres apontados para a sua cabeça: um deles, o conhecimento de que as informações no artigo também constavam do livro State of War, de James Risen, cuja data de publicação era iminente; o segundo, uma possível medida cautelar contra a publicação que, segundo Risen, proporcionou o impulso final: “Foi como um raio.” (Michael Hayden disse que isso não teria acontecido: “A hipótese de restrição prévia nunca existiu.”)
Ainda é, até hoje, “o período mais estressante e traumático da minha vida”, relembra James Risen. Embora mais tarde o Times tenha dito que novos dados de reportagem fortaleceram suficientemente a matéria para justificar sua publicação, pouca gente duvida que o livro de Risen foi o que retomou uma reportagem virtualmente morta e a fez reviver no final de 2005. “O livro de Jim foi a força impulsora”, disse Eric Lichtblau, lembrando de outro fator importante. “O governo Bush nos enganou deliberadamente, pretendendo que nunca houve dúvida alguma que de as operações de grampos telefônicos eram legais.” Isso acabou sendo uma “inverdade hilariante”. Na realidade, uma revolta em relação a essa questão era iminente no Departamento de Justiça.
O que aconteceria agora? E se Snowden tivesse trazido seu tesouro de informações para o Times? Certamente o Times teria publicado as revelações – assim como publicou muitas matérias do WikiLeaks.
John Kerry presidente
“Acho que a nossa matéria cortou o barato. Agora, nos sentimos muito melhor”, diz Risen, referindo-se a resistir às pressões do governo. A editora-executiva (na época, editora administrativa) Jill Abramson não só defendeu matérias relacionadas ao caso Snowden como sendo de interesse público, mas pôs repórteres e editores do Times para colaborar com o Guardian e o site ProPublica em matérias que tenham Snowden como fonte.
Seria adequado a imprensa reter informações por solicitação do governo? Depende de quem recebe o pedido. Michael Hayden responderia de uma maneira; Glenn Greenwald, de outra. (E mesmo Hayden disse-me que não tem como provar qualquer risco à segurança nacional a partir da publicação das matérias sobre grampos telefônicos – tanto na época, quanto atualmente.) Gosto da resposta de James Risen: “Muito raramente.”
Bill Keller e Philip Taubman dizem que, na época, tomaram as melhores decisões que podiam, após uma profunda avaliação. “Se as pessoas soubessem de tudo, pessoas diferentes chegariam a conclusões diferentes”, afirma Keller. Se a publicação do artigo no outono de 2004 mudaria ou não a história, é impossível saber. “Tornou-se uma crença” para a esquerda, lembra ele, que se a publicação tivesse ocorrido antes John Kerry seria o presidente.
“Teria tomado uma decisão diferente”
Uma coisa é certa, diz Bill Keller: a matéria (publicada em dezembro de 2005, ganhou um prêmio Pulitzer em 2006) “parece profética”. “Nós sabemos que pessoas com intenções louváveis podem ficar desnorteadas. Risen e Lichtblau estavam atrás disso há muito tempo.” E mais ainda: os repórteres estavam trabalhando sem qualquer esconderijo para os documentos confidenciais, coisa que um informante poderia ter. Baseavam sua matéria desenvolvendo, pacientemente, a confiança das fontes confidenciais.
Philip Taubman lembra sua fatídica recomendação de não publicar “como se estivesse agonizando”. Ele descarta qualquer papel que pudessem ter suas relações com membros do governo Bush, inclusive Condoleezza Rice, com quem mantém há muito tempo laços próximos na Universidade de Stanford (onde ambos são professores). Como conselheira nacional de Segurança em 2004 e secretária de Estado em 2005, ela se opôs à publicação do artigo, disse Taubman. Mas “isso não mudou minha maneira de pensar”, que era a de que a segurança nacional seria prejudicada pela publicação.
E se, na época, ele soubesse o que sabe hoje, à luz das revelações de Snowden? “Eu teria tomado uma decisão diferente se soubesse que Jim e Eric estavam puxando um fio que iria levar a todo o tapete”, disse Taubman.
Qual a lição?
Considerando a lei das consequências não pretendidas e um pouco de ajuda da ironia, a publicação da matéria sobre os grampos telefônicos sem autorização ressoa ainda hoje, mas de uma forma distinta: o furor que provocou estimulou o governo Bush a levar adiante as mudanças nas leis de vigilância governamental. “Nossa matéria pôs em andamento o processo de tornar tudo isso legal”, disse Eric Lichtblau. “Agora está tudo codificado na lei. Bush conseguiu tudo o que queria quando saiu da presidência.”
Pode haver um escândalo público com relação à última onda de revelações de vigilância, mas o governo tem uma defesa útil: é legal.
Taubman dá um curso na Universidade de Stanford sobre a tensão entre o governo e a mídia. Recentemente, levou Michael Hayden ao curso como palestrante convidado. E qual é, então, a principal lição sobre o drama em que Philip Taubman desempenhou papel tão fundamental? “O velho ditado, que nós violamos, continua valendo”, disse ele. “Sempre peque pelo lado da publicação”
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Margaret Sullivan é a ombudsman do New York Times