Com o título “Missão: conseguir entrar na arena” (Esportes na Copa, página 5), o jornal publicou, na segunda-feira passada, 30/6, matéria que relata o percurso de um repórter do O POVO para conseguir assistir ao jogo Holanda e México na Arena Castelão, em Fortaleza. A “missão” citada no título era adquirir, durante o caminho até o estádio, um ingresso para a partida realizada no dia anterior, 29/6, às 13 horas, na capital cearense. A matéria, em versão estendida, pode ser lida no Blog Gol: http://migre.me/kfF5O
A missão foi executada, como está escrito no texto: “Missão cumprida. Vi o jogo com direito a ingresso de categoria 1, no lado da sombra. Ingresso que comprei nas escadarias de acesso ao estádio por apenas R$ 30, o valor impresso no tíquete era de R$ 440”. No texto, como se lê, o jornalista se orgulha de ter comprado a entrada por um preço bem abaixo do que estava impresso no ingresso – mesmo que a venda tenha sido feita de modo ilegal, e O POVO sabia disso.
Regulamento da Fifa
Dias antes, na edição de 27/6, o jornal havia publicado a matéria “Preços de ingressos disparam em mercado paralelo nas redes sociais” (Esportes na Copa, página 4), em que detalhava os mercados virtuais de venda e compra de ingresso para a Copa do Mundo, principalmente por grupos no Facebook.
Um dos quadros da matéria, “O que diz a lei”, descrevia o regulamento da Fifa: “A Fifa proíbe a revenda de ingressos do Mundial. Os ingressos podem apenas ser transferidos para ‘convidados autênticos’ (parentes, amigos, colegas) do detentor do bilhete por meio do site da entidade ou revendidos também através do site da Fifa. No último caso, a Fifa não oferece garantias de que haverá um comprador.” Ou seja, o jornal conhecia bem a regra de compra e venda dos tíquetes para acesso aos jogos.
Estatuto do Torcedor
O procurador de Justiça José Wilson Sales, coordenador do Núcleo do Desporto e Defesa do Torcedor (Nudetor), do Ministério Público do Ceará, cita dois itens do Estatuto de Defesa do Torcedor relacionados ao caso.
O artigo 41-F expressa que é crime “vender ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete”, cuja pena é “reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa”. O item seguinte, artigo 41-G, indica que é crime “fornecer, desviar ou facilitar a distribuição de ingressos para venda por preço superior ao estampado no bilhete”. Nesse caso, a pena é de “reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa”. (Detalhe: ‘cambismo’ é uma expressão popular para a venda ilegal do ingresso.)
O Estatuto não criminaliza a compra de ingresso. Criminaliza somente a venda. Entretanto, se há alguém que vende ilegalmente é porque há alguém que compra ilegalmente. “Não há situação de enquadramento do comprador. Mas o problema vai mais além. E se o ingresso for tido como perdido, se tiver sido roubado? Adquirir algo de roubo é crime de receptação”, lembra o procurador.
O que diz a Redação
Sobre o assunto, comentam os editores do Núcleo Copa: “A matéria se propôs a mostrar desde a falta de fiscalização à disponibilidade de ingressos de última hora para quem estava prestes a entrar no Castelão – além da efervescência no entorno do estádio. Na edição do material, faltou deixar claro que a situação é passível de punição, em caso de exorbitância na cobrança da entrada.”
Pauta positiva?
O jornal sabe que é proibida a comercialização do ingresso por qualquer outro meio que não seja a página virtual da entidade realizadora da Copa. Qualquer um, no entanto, pode recorrer a esses meios ilícitos de aquisição da entrada. Não está em jogo o princípio ético do torcedor pessoa física. É sabido que a compra e a venda têm ocorrido às margens do estádio, a poucas horas do início dos jogos. A diferença é quando um veículo de comunicação faz disso uma pauta positiva, sem citar, em momento algum da matéria, a proibição e a ilegalidade do ato.
A iniciativa era mostrar o quão falha é a fiscalização? O objetivo era ratificar que a compra e a venda ocorrem com frequência antes dos jogos? A ideia era apresentar como é fácil burlar as regras? Se foi, ninguém soube, porque a matéria não expõe isso. Pelo contrário, valoriza o ato ao mostrar o jornal alardeando que conseguiu burlar o regulamento.
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Daniela Nogueira é ombudsman do jornalO Povo