O jornalismo tem a incrível capacidade de nos deixar envolvermo-nos com as histórias que contamos. E mais do que isso, muitas vezes, nos envolvemos com os personagens dessas histórias. Como ombudsman, temos muito mais contato com os leitores. Eles são um termômetro da nossa cobertura e indicam caminhos possíveis.
Dos vários leitores que entram em contato comigo mais frequentemente, existe um que comenta as matérias há muitos anos. Pelo menos três vezes por semana ele me liga. É cuidadoso e atento. Sabe identificar no jornal erros que muitos olhos perspicazes não notaram. Critica, sugere, elogia. O jornal é o companheiro de todos os dias. Há anos ele lê O POVO.
Dia desses, me falou dele. José Mario da Silva tem 55 anos, é marido, pai e avô. Cadeirante, “vítima da violência”, há um par de anos descobriu um câncer. Começou o tratamento, mas não concluiu porque o coração alarmou. Já havia feito três pontes de safena e havia risco de o coração não resistir. Meses atrás, a doença se alastrou pelo corpo.
“Eu sei que eu vou morrer, mas eu vou lutar pra viver. A minha mulher e a minha filha nem gostam quando eu toco nesse assunto. Minha mulher é muito apegada a mim. São 30 anos juntos, 30 anos, Daniela”, repetiu seu Zé Mario.
Leitor assíduo
Mesmo na cama, mesmo com um tratamento delicado, não deixa de ler o jornal. É o seu passatempo em meio à dor. “Antes, em anos anteriores, eu até ligava mais”.
“Conseguia ler o jornal todo, mas agora eu fico cansado”, justifica-se seu Zé Mario. Conhece as colunas, identifica o estilo dos jornalistas, sabe até certas expressões jornalísticas, como abre e lide. Aprendeu pelo convívio com os ombudsmans.
Há algumas semanas, seu Zé Mario descobriu os tumores se multiplicando e um problema no coração. Recomeçou o tratamento para cuidar do câncer primeiro. Dia desses, me ligou para comentar uma matéria e se despediu com um pedido: “Não sei qual é a sua religião, mas se lembre de mim nas suas orações”. Nunca o vi, mas eu o conheço.
O seu Zé Mario morreu no domingo passado. A saúde não resistiu aos problemas, mas ele lutou o quanto pôde. A família perdeu uma pessoa querida. O POVO perdeu um de seus colaboradores mais atentos e mais assíduos.
Ombudsmans anteriores
“O Zé Mario sabia analisar muito bem o jornal. Era muito atento. Me ligava todos os dias. Depois do ombudsmato, ele se tornou um amigo pessoal. Lamento muito pela morte dele”, comentou Rita Célia Faheina, jornalista que assumiu o cargo de ombudsman no ano de 2009. O jornalista Paulo Rogério, editor-adjunto do Núcleo de Negócios e ombudsman nos anos de 2010, 2011 e 2012, definiu: “Era um leitor de primeira. Grande colaborador e apaixonado pelo O POVO”.
Como ombudsman, estamos afastados da Redação e, em alguns casos, sentimos a indiferença dos colegas jornalistas, pela própria característica crítica do cargo. É ao lado dos leitores que vamos reaprendendo a ler o jornal. Vamos conhecendo o perfil do leitor do O POVO e quais são seus desejos e necessidades. O seu Zé Mario me ajudou muito nesse processo. “Ele adorava ler o jornal e fazia questão de ligar para vocês para dizer o que achou. Obrigada pelo tratamento que vocês sempre deram a ele”, emocionou-se a mulher, dona Rosália, na semana passada, quando conversamos por telefone.
Obrigada!
Nesta coluna, optei por não apresentar crítica ou outro comentário sobre alguma cobertura do jornal. Conto a história do seu Zé Mario a fim de atestar como o contato com o leitor é essencial para tornar o jornalismo e o jornalista mais humanos, mais humanizados.
Hoje escrevo para agradecer. O contato com o seu Zé Mario era apenas virtual, por telefone. Ainda assim, pude me envolver com sua história, como fizeram ombudsmans anteriores, o que demonstra o caráter familiar do relacionamento que ele mantinha com O POVO. A partir do seu Zé Mario, agradeço a cada leitor que se manifesta. E em nome dos demais ombudsmans que conviveram com ele, agradeço por toda a colaboração, por todo o cuidado que sempre teve com O POVO, mesmo diante de tanta dificuldade pessoal.
Obrigada, seu Zé Mario. O senhor ajudou a melhorar o jornal.
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Daniela Nogueiraé ombudsman do jornalO Povo