Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vera Guimarães Martins

Manchete da capa de terça (19): “Na TV, Lula prometerá um 2º governo Dilma melhor”. Na linha abaixo do título: “Petista pedirá voto sem medo na presidente, em estreia de programa eleitoral”.

Que outro enunciado poderia o PT pedir aos céus senão algo assim, estampado em quatro colunas na “Primeira Página” da Folha, exatamente no dia da estreia do horário eleitoral gratuito?

Não por acaso, a reportagem foi replicada em site alinhado ao partido, que postou link para o conteúdo integral do texto no jornal. Certos estão os aliados em tirar proveito da generosidade inusual.

Adiantar o conteúdo de um programa cuja divulgação era de grande interesse do partido não chega a ser furo relevante, mas o relato, inédito, tinha seu valor jornalístico.

O problema foi o destaque conferido a uma notícia do tipo que os jornalistas definimos como “o cachorro mordeu o homem”. Traduzindo, um fato corriqueiro, esperado, que segue a ordem natural das coisas. A rigor, a manchete só deveria contemplar o inverso, o fato de “o homem morder o cachorro” –o que seria o caso, se Lula não fosse trabalhar para eleger sua candidata.

“A manchete de hoje é falta de assunto?”, perguntou um leitor. Era.

A Secretaria de Redação justificou o destaque afirmando que se tratava de uma apuração exclusiva da Sucursal em Brasília.

“Conseguimos antecipar dois pontos [do programa de TV]: o uso do ex-presidente Lula mais uma vez como principal cabo eleitoral de Dilma, assim como ocorreu em 2010, e o mea-culpa petista de que as coisas não andaram muito bem neste atual mandato.”

Vamos combinar que nenhum dos dois valia o peso dado. O primeiro ponto é uma obviedade e o segundo, uma ilação. É preciso grande dose de boa vontade ou ingenuidade para crer que Lula estivesse criticando o governo da pupila ao dizer que um eventual segundo mandato dela será melhor que o primeiro.

Mas a questão principal é que faltou equilíbrio na “Primeira Página”. Se a maior novidade (!) do horário eleitoral vinha dos petistas, a edição poderia ter contrabalançado a exposição maior do partido dando destaque, na linha abaixo do título, aos outros candidatos. Não deu. PSDB e PSB só apareceram no último parágrafo da chamada.

Para evitar equívocos e acusações fáceis, enfatizo que meu ponto não é quem foi o beneficiado, mas o desequilíbrio noticioso. Na dúvida, sugiro o exercício inverso: e se a manchete fosse Fernando Henrique Cardoso prometendo que Aécio Neves fará um governo melhor?

O medo do contágio

A Folha surpreendeu os leitores ao publicar no domingo (17) reportagens de dois enviados especiais a Serra Leoa, um dos países africanos mais castigados pela epidemia do ebola. Ter jornalistas cobrindo fatos importantes “in loco” é medida a ser celebrada, mas neste caso o jornal pisou na bola.

Não por expor seus profissionais e a população brasileira ao risco, como acusou uma médica no “Painel do Leitor” (19), mas por descuidar do dever de informar sobre as precauções tomadas.

A doença é altamente contagiosa, não tem cura e já matou cerca de 1.350 pessoas. Países do oeste africano fecharam fronteiras e criaram barreiras sanitárias para evitar a propagação do vírus.

O medo da leitora é, portanto, natural, mas a Redação se esqueceu disso –embora se tenha lembrado de bater o bumbo do marketing, informando que eram os primeiros brasileiros a chegar ao epicentro da epidemia. A omissão foi corrigida na quarta (20).

A proposta de cobertura partiu da repórter Patrícia Campos Mello e do fotógrafo Avener Prado. Além de tomar cuidados preventivos, a dupla decidiu que, na volta, ficará em isolamento num flat por dez dias –um cuidado desnecessário, segundo os infectologistas. Postei no site relato de Patrícia contando como foi a preparação.

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Vera Guimarães Martinsé ombudsman daFolha de S. Paulo