Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Perfis incompreendidos

Os dois artigos apareceram um ao lado do outro na primeira página: um, sobre Darren Wilson, o policial branco que matou fatalmente um adolescente negro no mês passado em Ferguson, estado de Missouri; o outro, um retrato do jovem que foi morto, Michael Brown.

Para muitos jornalistas, os artigos, assim como o lugar que ocupavam, faziam um sentido absoluto. Podem ter pensado neles, no jargão jornalístico, como “perfis gêmeos”. Gêmeos porque foram apresentados de forma igual, sob uma manchete única que dizia: “Duas vidas nas encruzilhadas em Ferguson”. E perfis porque cada um era um exemplo de um tipo padronizado de matéria jornalística: a exploração exaustiva da vida, do trabalho e da personalidade de uma pessoa.

Mas para alguns leitores o vínculo entre esses dois textos de Ferguson não fazia sentido. Por que vocês publicariam, um ao lado do outro, artigos sobre dois homens muito diferentes, parecendo igualá-los? E para alguns leitores, trechos do segundo texto eram irritantes. A descrição afirmando que Michael Brown “não era anjo” foi um ponto particularmente crítico, sob o argumento de ser gratuita – principalmente porque o artigo foi publicado no dia do funeral.

Há muitos aspectos em questão e eu coloquei alguns deles num texto que escrevi recentemente para meu blog. O autor do artigo sobre Michael Brown, John Eligon, disse-me que lamentava o uso da frase – e explicou que seu principal objetivo era analisar de modo mais profundo a vida desse jovem que, na morte, ganhara tanto interesse jornalístico.

“Intelectualmente interessante”

Mas um assunto que não foi explorado é a forma pela qual o Times usa perfis e como muitas vezes estes textos não são compreendidos pelos leitores. Venho pensando sobre esse assunto há alguns meses, desde que ouvi queixas de leitores sobre um perfil de Robert Kagan, o intelectual neoconservador. Muitos leitores não gostaram da ideia de dar tanta atenção a Kagan porque, em sua opinião, suas ideias caíram em descrédito depois da guerra do Iraque. Na época, o autor do perfil, Jason Horowitz, disse-me que o artigo decorrera, em parte, do ressurgimento de Kagan na mídia depois que ele escrevera um artigo sobre política externa norte-americana para a New Republic e fora convidado a expor suas opiniões ao presidente Obama. Horowitz disse que não pretendera elogiá-lo, de forma alguma, mas apenas focalizar uma personalidade intrigante com valor noticioso. Mas os leitores – com bastante razão – queriam saber por que tanta atenção não era dedicada àqueles que se opunham à guerra no Iraque.

Muitas vezes, os leitores têm reações fortes aos perfis com base no que acreditam sobre a pessoa que é descrita. Alguns o veem como uma maneira do Times enaltecer as pessoas. Por exemplo, um perfil publicado em julho de John Christy – um destacado cético das mudanças climáticas – enfureceu alguns leitores. “O que aconteceu com o NYT para escrever elogios desenfreados sobre John Christy?”, perguntou Mike Anthony, de Westhampton, estado de Nova York. Mike Roddy, de Yucca Valley, na Califórnia, queixou-se que “há poucos cientistas em qualquer área que tenham sido tão consistentemente desmascarados”.

O autor do perfil, Michael Wines, disse-me que ele e seu editor viram um valor jornalístico intrínseco em Christy, professor de Ciência Atmosférica, e que seu objetivo não era sugerir a aprovação de suas ideias. Mas Michael Wines também ouviu reclamações de leitores infelizes. “É claro que recebi muitas reações de pessoas dizendo-me que eu estava legitimando John Christy, mas não estou legitimando ninguém”, disse-me ele. Repórter que cobre nacionalmente meio ambiente, Wines disse que considerava “intelectualmente interessante” conhecer melhor as ideias de John Christy e as duras reações que enfrentam nos círculos científico e acadêmico.

Sem declarações de amor

Mas muitos leitores interpretam a simples presença desses textos como prova da aprovação pelo Times. Pouco importa se os artigos são críticos ou sutis; os leitores querem que sejam, por definição, positivos.

É fácil compreender por quê: infelizmente, alguns perfis são exageradamente elogiosos. E mesmo os perfis com muita informação são frequentemente acompanhados por fotografias elogiosas e chamadas de contornos suaves, como ocorreu com Bradford L. Smith num texto de julho: “O principal advogado da Microsoft é o enviado do mundo tecnológico”. Muito bem escrito por Vanessa Friedman na semana passada, o perfil do estilista Alexander Wang tinha um objetivo mais amplo, aprofundando a questão de um designer poder ou não trabalhar para mais de uma casa de moda.

Os melhores perfis são escritos com todos os defeitos – não como declarações de amor a seus tópicos, mas como representações completas de uma pessoa concreta. (Alguns exemplos clássicos do gênero encontram-se em The Woman at the Washington Zoo, de Marjorie Williams.) No entanto, quando os perfis são mais sutis, como é o caso da visão imparcial que John Eligon tem de Michael Brown, a própria qualidade pode correr contra as expectativas do leitor.

Fazer o que com essa desconexão? Os jornalistas podem ir um pouco mais longe para tornar mais claro o valor do texto no parágrafo que explica especificamente o objetivo da matéria. Podem estar conscientes de que, querendo ou não, um perfil do New York Times pode muitas vezes ter o efeito de lançar um resplendor, ou mesmo uma auréola, sobre uma pessoa – seja ela um cientista, um estilista ou um intelectual linha dura.

E os leitores podem fazer sua parte compreendendo que os perfis não devem ser declarações de amor. Na verdade, os melhores não têm nada a ver com isso.

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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times