A verdade é o corpo de uma mulher dentro de um vestido saco dos anos 60. O corpo aparece furtivamente, mostrando ora o formato dos quadris, ora os seios. Como no samba onde uma mulher “dentro de um vestido saco, tinha ao lado um cara fraco e foi tirada para dançar”. Acabou em briga. Willard Van Orman Quine, o filósofo positivista, diz a mesma coisa –conhecemos o mundo através de uma rede de crenças (o vestido) que são modificadas apenas nas margens pela experiência (as formas que as vezes aparecem) Todos os jornais procuram a objetividade, a verdade. Mas é impossível.
Há publicações que declaram desde logo que óculos estão usando, como a “Economist” que, apesar de conservadora, informa muito bem, é clara e precisa. Ou o “Humanité”, ligado ao Partido Comunista Francês, ou o “New York Times”, que revela que apoia um determinado candidato. A Folha escolheu outra estratégia para buscar a verdade: apresenta todos os lados, puxa o vestido saco para um lado e para o outro radicalmente para que o leitor possa adivinhar como é o corpo da mulher.
Como economista e “ombudsman” por um dia, comento a Folha. Primeiro, como o jornalismo trata todos os governos. Para os neoliberais extremados, as ações governamentais são a origem única de todos os problemas. E paradoxalmente, são responsáveis por todas as soluções. Para os desenvolvimentistas extremados, o governo não faz o suficiente, apesar das limitações de recursos. O governo é o bode expiatório para a esquerda e para a direita. Sempre foi e sempre será assim, em períodos eleitorais ou não. Faz parte da vida política e social –”piove, governo ladro”. Não chove, governo ladrão. Mas o problema tem solução? Seria um bom investimento ter dois sistemas Cantareira? Se chovesse normalmente, seria um escândalo, um elefante branco. Se não chove nem a metade do que no pior ano de seca em 1953 é outro escândalo.
Carga tributária
O jornalista e os jornais precisam radicalizar para serem lidos. Exemplo é a manchete “Violada no palco” –o cantor quebrou o violão no palco. Ninguém foi violado. E tem que ser rápido –escrever hoje sobre a notícia de hoje e brigar por espaço na “Primeira Página”.
Nada disso, entretanto, justifica o abandono do esforço de esclarecimento. O índice de Gini calculado pela Pnad cresceu de 0,495 para 0,497. Houve um erro no cálculo. Mas o jornalista da Folha e a equipe do Datafolha sabem perfeitamente que o índice é calculado a partir de uma amostra –duas regiões metropolitanas por Estado. Portanto a informação deveria ter sido “o índice de Gini passou de 0,495 para 0,497”. Com margem de erro de 2% (se for apenas 2%), o índice que estava no intervalo entre 0,445 e 0,504 passou para intervalo 0,487 e 0,506 –empate técnico. Mas virou manchete na Folha e em outros jornais. A mesma regra serve para a inflação –6,52% é maior do que 6%? A Folha deveria esclarecer –o esclarecimento é um furo.
Os colunistas de economia formam um bouquet equilibrado –Alexandre Schwartsman vitupera contra os maus tratos do Banco Central sobre o regime de metas. Fala contra os foguetes de Gaza para a plateia de Tel Aviv. O tranquilo Marcelo Miterhof expõe com muito cuidado teses desenvolvimentistas como se justificasse os foguetes de Israel para uma plateia de palestinos.
Os empresários pedem menos impostos, menos impostos. Alguém já pesquisou como deve ser calculada a carga tributária? Os pagamentos ao INSS devem ser incluídos? São incluídos nas estatísticas de outros países do mundo? São receitas do governo ou receitas que apenas passam pelo governo e são devolvidas aos beneficiários? Podem financiar gastos de segurança, saúde e educação? Representam mais ou menos 14% do PIB. A carga tributária do Brasil seria de 36% menos 14%, ou seja, 22% do PIB? Dá para esclarecer? Seria um furo.
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João Sayad, 68, doutor pela Universidade Yale, é professor de economia na USP. Foi ministro do Planejamento, secretário da Fazenda do Estado de São Paulo e de Finanças da Prefeitura de São Paulo.