Quando comecei no jornalismo, como repórter na Editoria de Esportes do O POVO, observava editores cortando pedaços de jornais do Sudeste, especialmente Folha de S. Paulo e O Globo, para guardar as matérias interessantes que também se tornariam pautas no jornal. Era comum garimpar ideias na imprensa nacional, para as chamadas pautas frias que poderiam ser elaboradas com um prazo de tempo considerável. Também lembro que as notícias chegavam por meio de telexes colocados em uma sala separada, pois faziam barulho. Era de lá que a gente recebia as notícias do Brasil. Grande parte das informações das agências parava nas manchetes dos jornais daqui. De lá para cá, muita coisa mudou. Hoje, a maioria das manchetes é de assuntos locais.
A globalização reforçou o noticiário regional, na medida em que circula rapidamente entre os moradores de uma mesma comunidade. Por isso, às vezes, acho estranho como nós nos encantamos pelo Cantareira, sistema que abastece de água a maior parte da cidade de São Paulo. O nível hídrico do reservatório é acompanhado pari passu pela Editoria Brasil no O POVO. Um levantamento preparado pelo Banco de Dados do jornal, a meu pedido, constatou que este mês até o dia 20 passado, foram publicadas, 10 notícias sobre o nível dos reservatórios de São Paulo. Destas, três ganharam a categoria de manchete. As demais foram notícias menores ou notinhas. Durante o período, apareceram seis matérias em várias editorias sobre a seca no Ceará. Todas na categoria de manchete. Em apenas três delas, abordou-se, especificamente, o monitoramento dos açudes no Estado. Lógico que O POVO cobre a seca com propriedade e em quantidade bem maior do que a amostragem reproduzida. Mas, talvez menos do que deveria. Hoje, ainda é mais fácil o leitor saber sobre São Paulo e Rio de Janeiro, centros canalizadores da emissão de notícias, do que Piauí e Rio Grande do Norte que fazem divisa com o Ceará. O poder hegemônico dos estados mais desenvolvidos ainda se mostra robusto na influência do noticiário local.
Reflexão
Chamado a comentar o assunto, o editor-executivo do Núcleo Cotidiano, Érico Firmo, faz uma reflexão sobre o tema: “Entendo que há, sim, uma influência da mídia do Sudeste – até natural no noticiário nacional, onde é hegemônica em todos os assuntos. Mas não critico um assunto que acompanhamos muito de perto. Essa avaliação, faço-a em relação a outros assuntos também da esfera nacional – é com o que disputa espaço. Não se deixa de publicar nossos reservatórios para publicar os de lá. A relação entre conteúdos e espaços segue outra lógica, dentro de cada editoria. E, no Sudeste, parece que nenhum assunto disputa hoje em relevância. Já editei Brasil e sei que há momentos em que não há muitas opções de assunto. E não com a mesma relevância”. Para ele, é preciso acompanhar mais de perto e com mais constância a situação dos reservatórios: “Mas o assunto está sempre no nosso radar”, reforçou.
O editor ressalta ainda que a falta d’água é um assunto que fala muito de perto a nós: “Na medida em que dedicamos páginas ao conteúdo nacional, não há nada que nos toque tanto, vindo de lá, quanto essa questão da água. Ao passo que, na nossa realidade local, há outras tantas questões que afetam a vida do leitor – em que pese a importância crucial da escassez de água. Nesse sentido, acho até natural que se amplifique um assunto de lá que nos é mais familiar, enquanto há aqui uma pluralidade maior”.
Atenção ao próximo
Falar do noticiário publicado sobre o nível do sistema hídrico que abastece São Paulo, como contraponto para a necessidade do fortalecimento do local, pode parecer inócuo. Mas não é. Tenho parentes e amigos em São Paulo, acompanho daqui as notícias de lá sobre a seca, mas os cearenses precisamos saber menos da queda diária do volume d’água do Cantareira, do que a do Castanhão, do Araras, do Orós ou do Banabuiú, que afetam diretamente as nossas vidas. A imprensa regional precisa romper, cada vez mais, com o ciclo nacional para dedicar atenção ao que está perto. O acompanhamento quase diário do volume dos sistemas que abastecem São Paulo mostra que ainda estamos longe disso.
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Tânia Alves é ombudsman do jornalO Povo