Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O efeito Hillary Clinton e a polarização na cobertura política

Numa “carta aberta“ ao Times escrita na semana passada [retrasada], o escritor David Brock denunciou que uma matéria sobre as práticas de e-mail de Hillary Rodham Clinton tinha “resvalado em profundidade” e estava repleta de “insinuações”. Ele exigia uma correção imediata.

A matéria, publicada na versão online na noite de segunda-feira (2/3) e na parte de cima da primeira página da versão impressa do dia seguinte, detalhava o uso que a sra. Clinton fazia de seu endereço pessoal de e-mail enquanto era secretária de Estado, ao invés de um endereço do governo, e dizia que essa prática poderia consistir numa violação de normas.

A reclamação de David Brock, que circulou com a ajuda da organização de vigilância de mídia fundada por ele, a Media Matters for America, contou com grande aceitação. Muitos leitores – em comentários à matéria, em e-mails para meu escritório e no Twitter – repetiram seu principal ponto de discórdia: a regra explícita sobre o uso do e-mail governamental só entrou em vigor em 2014, depois que a sra. Clinton deixou seu cargo, tornando o assunto, na melhor das hipóteses, uma “não-matéria”.

Uma leitora, Cathleen Bemis, escreveu-me dizendo que o Times deveria ter sido “suficientemente responsável para incluir o texto das leis e os regulamentos que teriam sido violados, a data em que teriam sido feitas emendas à lei oficial de forma a mostrar claramente que se tratou de um caso de violação”. Ela chamou o artigo de “calúnia cruel”.

Um “para entender o assunto” poderia ter ajudado

Em resposta a David Brock – um entusiástico apoiador de Hillary, embora já tenha sido um espinho para os simpatizantes dos Clinton –, o Times citou normas de 2009, ano em que a sra. Clinton assumiu o cargo. (Para aqueles que acompanham o assunto em casa, vejam a página 51050, seção 1236.22b.) A própria matéria incluía a seguinte frase: “Na época, os regulamentos da Administração Nacional de Arquivos e Registros exigiam que qualquer e-mail enviado ou recebido de contas particulares deveria ser preservado como parte dos registros da agência.”

O Times tinha razão ao defender a matéria, que era válida. Discordo que fosse uma calúnia. No entanto, não está eximido de culpa. Como destaca Cathleen Bemis, a matéria deveria ter sido mais clara no que se refere a quais normas específicas haviam sido violadas e quando elas haviam entrado em vigor. As referências são muito vagas e deixaram a matéria aberta à queixa exagerada de David Brock. Sua crítica conseguiu apoio político, não porque destacasse um erro factual – já que a matéria estava correta –, mas porque levantou poeira suficiente para obscurecer os fatos.

O jornalista Michael Tomasky também levantou algumas preocupações numa matéria do Daily Beast intitulada “Escândalo de e-mails de Hillary? Devagar com o andor”. Ele referiu-se a um grande “erro potencial” na matéria, destacando que o artigo do Times “não diz com precisão a data específica, ou mesmo o ano, das novas normas”.

Tal como o Times mostrou a David Brock, essas normas já existiam antes de 2014, quando a Lei dos Arquivos Nacionais sofreu uma emenda; foram incluídas nas regras de 2009 da Administração Nacional de Arquivos e Registros. Um parágrafo que citava o capítulo e discorria sobre o assunto deveria ter feito parte da matéria. (Uma barra lateral, com “Pergunta” e “Resposta”, ou um “para entender o assunto” também poderia ter ajudado; mesmo no segundo dia.)

“Uma reação desfavorável já era de se esperar”

No entanto, longe de ter “resvalado em profundidade”, a matéria teve sequências. O Washington Post tocou no assunto com artigos sobre orientações da Casa Branca às autoridades de primeiro escalão sobre o uso do correio eletrônico do governo e sobre se a sra. Clinton violou normas de segurança. A Associated Press acrescentou outro ângulo, sobre o e-mail da sra. Clinton ter seu próprio provedor. E o Times escreveu suítes fortes sobre o assunto.

E aqui, o eufemismo de uma década: Hillary Clinton – muito provavelmente a primeira das opções do Partido Democrata a ser candidata a presidente, embora ainda não o seja declaradamente – é uma figura extremamente polarizadora. Embora David Brock estivesse fazendo sua reclamação sobre a injustiça da matéria para com a sra. Clinton, outros leitores escreveram dizendo que a reportagem e seu título eram suaves demais para ela.

Tal como escrevi em meu blog na semana passada, discordo. A matéria não era oba-oba. Afinal, o Times pegou uma revelação potencialmente prejudicial e foi fundo, atraindo a atenção de outros importantes veículos da mídia e o protesto dos opositores políticos de Hillary Clinton. O título da matéria – que dizia que a ex-secretária de Estado “possivelmente” teria violado normas – foi adequadamente cauteloso.

Falei com Schmidt e com a chefe da sucursal de Washington, Carolyn Ryan, sobre a reação. Schmidt, responsável pela matéria do e-mail enquanto fazia uma cobertura em Benghazi, disse que a reação negativa não o preocupava: “Uma reação desfavorável já era de se esperar. O que me surpreende é que não tenha sido maior”, disse. Acrescentou que os detalhes da matéria eram suficientemente específicos e descartou quaisquer preocupações sobre a matéria ser vaga. “Achei que ficou muito clara.”

Segurança absoluta nas matérias

Carolyn Ryan, que é responsável pela cobertura política do Times, editou a matéria segunda-feira à noite. Também ela descartou a ideia de que deveria ter sido mais específica, descrevendo-a como “incrivelmente sólida”. E ela ofereceu uma perspectiva para matérias sobre Hillary Clinton: “A reação é extremamente transferível. Existe um grupo de leitores que quer que ela seja a próxima presidente e é profundamente cético em relação a qualquer crítica e existe um grupo igualmente apaixonado que acha que uma presidência com outro Clinton será uma calamidade para o país.”

Mas os jornalistas do Times devem “esquecer a gritaria”. Qualquer matéria sobre Hillary Clinton, disse ela, “esbarra com o partidarismo, mas isso não muda a maneira como abordamos o assunto”. Carolyn Ryan acerta em muitas questões, mas em relação a esta última, tenho que discordar. Há lições a serem tiradas deste episódio.

À medida que o Times continuar a dar cobertura a Hillary Clinton em 2016, terá que tratar de dúzias de pequenos conflitos como este. Será uma campanha muito longa e a cobertura de Hillary Clinton será, inevitavelmente, examinada ao microscópio provocando a tensão de reações conflitantes.

De uma maneira ou de outra, as reportagens serão atacadas. Mas o Times pode fazer algo muito importante a si próprio – e aos seus leitores – ao garantir que todas as matérias tenham segurança absoluta: fontes sólidas, uma redação particularmente clara e imparcial e uma edição feita com o olhar de um Ministério Público.

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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times