Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“É uma situ­a­ção clás­sica na his­tó­ria das quei­xas con­tra os órgãos de comu­ni­ca­ção social. Se um acon­te­ci­mento público pro­mo­vido pelo Par­tido Comu­nista, e que este con­si­dera impor­tante pelos seus pró­prios cri­té­rios, não é noti­ci­ado, é certo e sabido que segue um pro­testo para a direc­ção do jor­nal (ou outro meio de comu­ni­ca­ção), even­tu­al­mente acom­pa­nhado de uma queixa for­mal às entida­des com tutela regu­la­dora sobre o sec­tor. Inde­pen­den­te­mente do seu mérito em cada caso concreto, o con­teúdo des­ses pro­tes­tos não dis­pensa, ritu­al­mente, as insi­nu­a­ções sobre ale­ga­das moti­va­ções polí­ti­cas ou eco­nó­mi­cas dos órgãos de comu­ni­ca­ção acu­sa­dos de silen­ciar as ini­ci­a­ti­vas deste partido.

É uma tra­di­ção com déca­das de exis­tên­cia, que se dis­tin­gue, pela sua pre­vi­si­bi­li­dade, per­sis­tên­cia e pro­fis­si­o­na­lismo, das quei­xas de dis­cri­mi­na­ção — por omis­são noti­ci­osa ou menor des­ta­que informa­tivo con­fe­rido a uma ini­ci­a­tiva — pon­tu­al­mente for­mu­la­das pelas res­tan­tes for­ças polí­ti­cas ou, num plano mais geral, por outras ins­ti­tui­ções de relevo público. E é tam­bém um tipo de actuação que a expe­ri­ên­cia de mui­tos anos mos­tra não ser par­ti­cu­lar­mente efi­caz: uma boa parte da imprensa gene­ra­lista con­ti­nua a igno­rar acon­te­ci­men­tos que o PCP con­si­dera serem de grande interesse infor­ma­tivo, e o PCP, por seu lado, con­ti­nua a protestar.

Valerá a pena reflec­tir nas razões deste desen­con­tro, mas come­ça­rei por refe­rir um caso recente que o ilus­tra. O Gabi­nete de Imprensa do PCP fez-me che­gar cópias de duas car­tas, Na pri­meira, endereçada à direc­tora deste jor­nal, refere que ‘o Público, à reve­lia da gene­ra­li­dade dos órgãos de comu­ni­ca­ção social, fez aquilo que nenhum pas­quim fez ao longo das 35 edi­ções da Festa do ‘Avante!’: igno­rou olim­pi­ca­mente nas suas edi­ções de sexta-feira, sábado e domingo [dias 2, 3 e 4 do mês pas­sado] o maior evento político-cultural naci­o­nal’. E avisa: ‘Não cala­re­mos actos de cen­sura sobre a nossa actividade’.

Na segunda, diri­gida à ERC (Enti­dade Regu­la­dora para a Comu­ni­ca­ção Social) — à qual pede para ‘agir em con­for­mi­dade’ —, clas­si­fica como ‘acto de dis­cri­mi­na­ção’ que o PÚBLICO, ‘con­tra­ri­ando tam­bém o que tem feito em anos ante­ri­o­res’, não tenha dado ‘qual­quer notí­cia’ sobre a última edi­ção da refe­rida festa, nome­a­da­mente sobre a inter­ven­ção de aber­tura (sexta-feira) do Secretário-Geral do PCP’, num con­junto de edi­ções em que ‘ini­ci­a­ti­vas de outros par­ti­dos polí­ti­cos foram noti­ci­a­das’. E argu­menta que, ‘por mais subor­di­na­dos que este­jam os cri­té­rios edi­to­ri­ais do Público aos inte­res­ses do seu pro­pri­e­tá­rio, (…), não há nada que jus­ti­fi­que que se pro­ceda a uma deli­be­rada omis­são daquela que é a maior ini­ci­a­tiva político-partidária que se rea­liza no nosso país’.

Tam­bém o lei­tor Antó­nio Cor­reia se quei­xou de não ter encon­trado neste jor­nal ‘uma linha’ sobre o acon­te­ci­mento — ‘uma festa de carác­ter polí­tico [que] tem acon­te­ci­men­tos de cariz abran­gente, de que des­taco a Gala de Ópera’, escreve, acres­cen­tando que o PÚBLICO ‘ignora sis­te­ma­ti­ca­mente qual­quer acon­te­ci­mento rea­li­zado por este par­tido’. Nota ainda que, ‘no mesmo fim-de-semana se rea­li­zava uma ini­ci­a­tiva do PSD em Cas­telo de Vide e o jor­nal não a igno­rou’, pelo que teria fal­tado ao dever de ‘tra­tar todas as notí­cias de forma impar­cial’ e sem ‘ceder a pres­sões seja de quem for’.

A direc­tora do PÚBLICO, Bár­bara Reis, res­ponde às crí­ti­cas: ‘Este ano o jor­nal não cobriu de facto a Festa do ‘Avante!’ dia­ri­a­mente, não con­se­gui­mos. Mas não a igno­rá­mos. Pelo con­trá­rio. Demos pri­meira página e qua­tro colu­nas do pri­meiro plano do jor­nal, o Des­ta­que das pági­nas 2/3, ao dis­curso de encer­ra­mento de Jeró­nimo de Sousa, o líder do PCP, o mais solene e impor­tante momento da Festa do ‘Avante!’. Numa capa com três títu­los prin­ci­pais, o da Festa do ‘Avante!’ é um deles. Não apa­rece iso­lado, mas rela­ci­o­nado com uma das notí­cias for­tes do dia — o anún­cio do primeiro-ministro de que pode­ria haver novos impos­tos —, o que nós con­si­de­rá­mos mais interessante’.

Por mim, julgo útil acres­cen­tar algu­mas obser­va­ções. Em pri­meiro lugar, não é real­mente exacto dizer que o jor­nal ‘igno­rou’ a festa do PCP, embora seja ver­dade que não apos­tou na sua cober­tura, opção sem­pre dis­cu­tí­vel (não estando em con­di­ções de ava­liar, admito que Antó­nio Cor­reia tenha razão na refe­rên­cia que faz ao espec­tá­culo de ópera). Na edi­ção de 5 de Setem­bro, o jor­nal deu o devido des­ta­que, como refere a direc­tora, ao dis­curso final do líder comu­nista. E o P2 da sexta-feira ante­rior publi­cou, como pro­posta de ‘refle­xão para o dia de aber­tura da Festa do ‘Avante!’, um inte­res­sante texto sobre ‘a nos­tal­gia do comu­nismo’ e ‘a herança da mais miti­fi­cada e dia­bo­li­zada ide­o­lo­gia que mol­dou o século XX’ — que poderá não ser o tipo de peça jor­na­lís­tica apre­ci­ado pela direc­ção do PCP, mas é cer­ta­mente uma boa ini­ci­a­tiva editorial.

Em segundo lugar, não é ‘dis­cri­mi­na­tó­rio’ que, entre diver­sas ini­ci­a­ti­vas par­ti­dá­rias (ou outras) que ocor­rem num mesmo dia, o jor­nal opte por des­ta­car umas e não noti­ciar outras. Nada há nisso de ‘cen­sura’. Face à obri­ga­ção de gerir recur­sos, essas esco­lhas — de agen­da­mento e de selec­ção temá­tica — são o risco que qual­quer che­fia edi­to­rial corre todos os dias. Pode acer­tar ou errar, e é pela ade­qua­ção des­sas esco­lhas ao seu pro­jecto edi­to­rial e ao inte­resse dos seus lei­to­res que a sua com­pe­tên­cia deve ser avaliada.

No caso con­creto da edi­ção de 3 de Setem­bro, refe­rido na queixa que me che­gou, creio que será difí­cil dis­cor­dar, numa pers­pec­tiva jor­na­lís­tica, do facto de o PÚBLICO ter pri­vi­le­gi­ado a cober­tura da Uni­ver­si­dade de Verão do PSD, em Cas­telo de Vide, tanto pelo que lá dis­se­ram mili­tan­tes menos ali­nha­dos com o dis­curso ofi­cial do seu par­tido, como pelo facto de Mário Soa­res, pre­sente como con­vi­dado, ter ali mesmo cri­ti­cado os aumen­tos de impos­tos e as pri­va­ti­za­ções anun­ci­a­das pelo actual governo. É certo que seria sem­pre pos­sí­vel ter encon­trado algum espaço, nessa edi­ção, para sin­te­ti­zar a tal ‘inter­ven­ção de aber­tura’ de Jeró­nimo de Sousa no Sei­xal, mas entendo a frase de Bár­bara Reis —’Este ano (…) não con­se­gui­mos’ — como refe­rên­cia à difi­cul­dade de mobi­li­za­ção de recur­sos pró­prios e, ao mesmo tempo, como des­men­tido de qual­quer inten­ção ‘dis­cri­mi­na­tó­ria’ (o pró­prio PCP reco­nhece, aliás, que a não cober­tura da festa deste ano não cor­res­pon­deu ao que o PÚBLICO ‘tem feito em anos anteriores’).

Em ter­ceiro lugar, a impar­ci­a­li­dade deve ser afe­rida, antes de mais, pelo con­teúdo das peças noti­ci­o­sas. Julgo que o PÚBLICO rela­tou de forma não só des­ta­cada como impar­cial o dis­curso do líder do PCP no encer­ra­mento da festa. E, final­mente, nada jus­ti­fica as insi­nu­a­ções que pre­ten­dem ligar ‘os cri­té­rios edi­to­ri­ais’ deste diá­rio aos ale­ga­dos ‘inte­res­ses do seu pro­pri­e­tá­rio’, ou a quais­quer ‘pressões’.

O Esta­tuto Edi­to­rial do PÚBLICO afirma cla­ra­mente que o jor­nal ‘é res­pon­sá­vel ape­nas perante os lei­to­res, numa rela­ção rigo­rosa e trans­pa­rente, autó­noma do poder polí­tico e inde­pen­dente de pode­res par­ti­cu­la­res’. Isto sig­ni­fica que os seus ‘cri­té­rios edi­to­ri­ais’ são os que resul­tam do seu pró­prio pro­jecto infor­ma­tivo livre­mente esco­lhido, que a res­pon­sa­bi­li­dade de os defi­nir ou inter­pre­tar cabe exclu­si­va­mente à sua direc­ção edi­to­rial (e, mais lata­mente, ao colec­tivo redac­to­rial), e que é aos seus lei­to­res que com­pete, em última aná­lise, ajui­zar do bom cum­pri­mento dos prin­cí­pios, valo­res e regras que nor­teiam a sua linha edi­to­rial, bem como das opções em que se concretiza.

À luz des­ses valo­res, e mesmo admi­tindo que o PCP terá por vezes razão nas suas quei­xas, con­si­dero que acu­sa­ções gené­ri­cas de par­ci­a­li­dade ou ‘actos de cen­sura’ não têm qual­quer fun­da­mento, e que os lei­to­res sabem que não têm. Até por­que pura e sim­ples­mente não é ver­dade — e aqui dirijo-me ao lei­tor Antó­nio Cor­reia — que o PÚBLICO ‘ignore sis­te­ma­ti­ca­mente qual­quer acon­te­ci­mento rea­li­zado por este partido’.

Dito isto, cabe reco­nhe­cer que é sin­gu­lar e anó­mala a rela­ção entre boa parte da imprensa por­tu­guesa (PÚBLICO incluído) e o Par­tido Comu­nista. Por res­pon­sa­bi­li­dade, a meu ver, de ambas as partes.

O PCP tende, por razões ins­tru­men­tais, a olhar para o con­ceito de plu­ra­lismo infor­ma­tivo na imprensa como sendo algo a exe­cu­tar com régua e esqua­dro. Não é. Parece suge­rir que a selec­ção e o des­ta­que de notí­cias sobre ini­ci­a­ti­vas par­ti­dá­rias deve­riam obe­de­cer a cri­té­rios de igual­dade ou pro­por­ção for­mal, e não à ava­li­a­ção inde­pen­dente e pro­fis­si­o­nal do seu inte­resse jor­na­lís­tico. Não é essa, em lado nenhum, a pers­pec­tiva da imprensa livre, res­pon­sá­vel e que busca a qua­li­dade infor­ma­tiva. Parece acre­di­tar que o PÚBLICO, por exem­plo, tem a obri­ga­ção de con­si­de­rar muito rele­vante tudo o que os res­pon­sá­veis comu­nis­tas assim con­si­de­rem. Não tem.

Mui­tos jor­na­lis­tas e res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais, por seu lado, ten­dem de facto a meno­ri­zar a infor­ma­ção sobre a acti­vi­dade polí­tica do Par­tido Comu­nista. Por a con­si­de­ra­rem dema­si­ado pre­vi­sí­vel face à sua avi­dez pela novi­dade. Por des­co­bri­rem que é difí­cil ante­ci­par as pro­pos­tas e seguir ou rela­tar o debate interno num par­tido que vêem como mono­lí­tico e mais opaco que os seus adver­sá­rios, e que é cer­ta­mente mais efi­caz do que estes a con­tro­lar a opor­tu­ni­dade da divul­ga­ção de infor­ma­ções que lhe digam res­peito. Ou ainda por puro pre­con­ceito, que é insus­ten­tá­vel no plano jor­na­lís­tico: a influên­cia do PCP sobre uma parte impor­tante da soci­e­dade por­tu­guesa exige da imprensa maior aten­ção crí­tica e maior escru­tí­nio infor­ma­tivo da sua acti­vi­dade. Não para satis­fa­zer qual­quer lógica buro­crá­tica, mas em nome do inte­resse público.”