“É uma situação clássica na história das queixas contra os órgãos de comunicação social. Se um acontecimento público promovido pelo Partido Comunista, e que este considera importante pelos seus próprios critérios, não é noticiado, é certo e sabido que segue um protesto para a direcção do jornal (ou outro meio de comunicação), eventualmente acompanhado de uma queixa formal às entidades com tutela reguladora sobre o sector. Independentemente do seu mérito em cada caso concreto, o conteúdo desses protestos não dispensa, ritualmente, as insinuações sobre alegadas motivações políticas ou económicas dos órgãos de comunicação acusados de silenciar as iniciativas deste partido.
É uma tradição com décadas de existência, que se distingue, pela sua previsibilidade, persistência e profissionalismo, das queixas de discriminação — por omissão noticiosa ou menor destaque informativo conferido a uma iniciativa — pontualmente formuladas pelas restantes forças políticas ou, num plano mais geral, por outras instituições de relevo público. E é também um tipo de actuação que a experiência de muitos anos mostra não ser particularmente eficaz: uma boa parte da imprensa generalista continua a ignorar acontecimentos que o PCP considera serem de grande interesse informativo, e o PCP, por seu lado, continua a protestar.
Valerá a pena reflectir nas razões deste desencontro, mas começarei por referir um caso recente que o ilustra. O Gabinete de Imprensa do PCP fez-me chegar cópias de duas cartas, Na primeira, endereçada à directora deste jornal, refere que ‘o Público, à revelia da generalidade dos órgãos de comunicação social, fez aquilo que nenhum pasquim fez ao longo das 35 edições da Festa do ‘Avante!’: ignorou olimpicamente nas suas edições de sexta-feira, sábado e domingo [dias 2, 3 e 4 do mês passado] o maior evento político-cultural nacional’. E avisa: ‘Não calaremos actos de censura sobre a nossa actividade’.
Na segunda, dirigida à ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) — à qual pede para ‘agir em conformidade’ —, classifica como ‘acto de discriminação’ que o PÚBLICO, ‘contrariando também o que tem feito em anos anteriores’, não tenha dado ‘qualquer notícia’ sobre a última edição da referida festa, nomeadamente sobre a intervenção de abertura (sexta-feira) do Secretário-Geral do PCP’, num conjunto de edições em que ‘iniciativas de outros partidos políticos foram noticiadas’. E argumenta que, ‘por mais subordinados que estejam os critérios editoriais do Público aos interesses do seu proprietário, (…), não há nada que justifique que se proceda a uma deliberada omissão daquela que é a maior iniciativa político-partidária que se realiza no nosso país’.
Também o leitor António Correia se queixou de não ter encontrado neste jornal ‘uma linha’ sobre o acontecimento — ‘uma festa de carácter político [que] tem acontecimentos de cariz abrangente, de que destaco a Gala de Ópera’, escreve, acrescentando que o PÚBLICO ‘ignora sistematicamente qualquer acontecimento realizado por este partido’. Nota ainda que, ‘no mesmo fim-de-semana se realizava uma iniciativa do PSD em Castelo de Vide e o jornal não a ignorou’, pelo que teria faltado ao dever de ‘tratar todas as notícias de forma imparcial’ e sem ‘ceder a pressões seja de quem for’.
A directora do PÚBLICO, Bárbara Reis, responde às críticas: ‘Este ano o jornal não cobriu de facto a Festa do ‘Avante!’ diariamente, não conseguimos. Mas não a ignorámos. Pelo contrário. Demos primeira página e quatro colunas do primeiro plano do jornal, o Destaque das páginas 2/3, ao discurso de encerramento de Jerónimo de Sousa, o líder do PCP, o mais solene e importante momento da Festa do ‘Avante!’. Numa capa com três títulos principais, o da Festa do ‘Avante!’ é um deles. Não aparece isolado, mas relacionado com uma das notícias fortes do dia — o anúncio do primeiro-ministro de que poderia haver novos impostos —, o que nós considerámos mais interessante’.
Por mim, julgo útil acrescentar algumas observações. Em primeiro lugar, não é realmente exacto dizer que o jornal ‘ignorou’ a festa do PCP, embora seja verdade que não apostou na sua cobertura, opção sempre discutível (não estando em condições de avaliar, admito que António Correia tenha razão na referência que faz ao espectáculo de ópera). Na edição de 5 de Setembro, o jornal deu o devido destaque, como refere a directora, ao discurso final do líder comunista. E o P2 da sexta-feira anterior publicou, como proposta de ‘reflexão para o dia de abertura da Festa do ‘Avante!’, um interessante texto sobre ‘a nostalgia do comunismo’ e ‘a herança da mais mitificada e diabolizada ideologia que moldou o século XX’ — que poderá não ser o tipo de peça jornalística apreciado pela direcção do PCP, mas é certamente uma boa iniciativa editorial.
Em segundo lugar, não é ‘discriminatório’ que, entre diversas iniciativas partidárias (ou outras) que ocorrem num mesmo dia, o jornal opte por destacar umas e não noticiar outras. Nada há nisso de ‘censura’. Face à obrigação de gerir recursos, essas escolhas — de agendamento e de selecção temática — são o risco que qualquer chefia editorial corre todos os dias. Pode acertar ou errar, e é pela adequação dessas escolhas ao seu projecto editorial e ao interesse dos seus leitores que a sua competência deve ser avaliada.
No caso concreto da edição de 3 de Setembro, referido na queixa que me chegou, creio que será difícil discordar, numa perspectiva jornalística, do facto de o PÚBLICO ter privilegiado a cobertura da Universidade de Verão do PSD, em Castelo de Vide, tanto pelo que lá disseram militantes menos alinhados com o discurso oficial do seu partido, como pelo facto de Mário Soares, presente como convidado, ter ali mesmo criticado os aumentos de impostos e as privatizações anunciadas pelo actual governo. É certo que seria sempre possível ter encontrado algum espaço, nessa edição, para sintetizar a tal ‘intervenção de abertura’ de Jerónimo de Sousa no Seixal, mas entendo a frase de Bárbara Reis —’Este ano (…) não conseguimos’ — como referência à dificuldade de mobilização de recursos próprios e, ao mesmo tempo, como desmentido de qualquer intenção ‘discriminatória’ (o próprio PCP reconhece, aliás, que a não cobertura da festa deste ano não correspondeu ao que o PÚBLICO ‘tem feito em anos anteriores’).
Em terceiro lugar, a imparcialidade deve ser aferida, antes de mais, pelo conteúdo das peças noticiosas. Julgo que o PÚBLICO relatou de forma não só destacada como imparcial o discurso do líder do PCP no encerramento da festa. E, finalmente, nada justifica as insinuações que pretendem ligar ‘os critérios editoriais’ deste diário aos alegados ‘interesses do seu proprietário’, ou a quaisquer ‘pressões’.
O Estatuto Editorial do PÚBLICO afirma claramente que o jornal ‘é responsável apenas perante os leitores, numa relação rigorosa e transparente, autónoma do poder político e independente de poderes particulares’. Isto significa que os seus ‘critérios editoriais’ são os que resultam do seu próprio projecto informativo livremente escolhido, que a responsabilidade de os definir ou interpretar cabe exclusivamente à sua direcção editorial (e, mais latamente, ao colectivo redactorial), e que é aos seus leitores que compete, em última análise, ajuizar do bom cumprimento dos princípios, valores e regras que norteiam a sua linha editorial, bem como das opções em que se concretiza.
À luz desses valores, e mesmo admitindo que o PCP terá por vezes razão nas suas queixas, considero que acusações genéricas de parcialidade ou ‘actos de censura’ não têm qualquer fundamento, e que os leitores sabem que não têm. Até porque pura e simplesmente não é verdade — e aqui dirijo-me ao leitor António Correia — que o PÚBLICO ‘ignore sistematicamente qualquer acontecimento realizado por este partido’.
Dito isto, cabe reconhecer que é singular e anómala a relação entre boa parte da imprensa portuguesa (PÚBLICO incluído) e o Partido Comunista. Por responsabilidade, a meu ver, de ambas as partes.
O PCP tende, por razões instrumentais, a olhar para o conceito de pluralismo informativo na imprensa como sendo algo a executar com régua e esquadro. Não é. Parece sugerir que a selecção e o destaque de notícias sobre iniciativas partidárias deveriam obedecer a critérios de igualdade ou proporção formal, e não à avaliação independente e profissional do seu interesse jornalístico. Não é essa, em lado nenhum, a perspectiva da imprensa livre, responsável e que busca a qualidade informativa. Parece acreditar que o PÚBLICO, por exemplo, tem a obrigação de considerar muito relevante tudo o que os responsáveis comunistas assim considerem. Não tem.
Muitos jornalistas e responsáveis editoriais, por seu lado, tendem de facto a menorizar a informação sobre a actividade política do Partido Comunista. Por a considerarem demasiado previsível face à sua avidez pela novidade. Por descobrirem que é difícil antecipar as propostas e seguir ou relatar o debate interno num partido que vêem como monolítico e mais opaco que os seus adversários, e que é certamente mais eficaz do que estes a controlar a oportunidade da divulgação de informações que lhe digam respeito. Ou ainda por puro preconceito, que é insustentável no plano jornalístico: a influência do PCP sobre uma parte importante da sociedade portuguesa exige da imprensa maior atenção crítica e maior escrutínio informativo da sua actividade. Não para satisfazer qualquer lógica burocrática, mas em nome do interesse público.”