“Ele fazia diferença. Olhava o que os concorrentes ofereciam e refinava a ponto de criar um produto totalmente diferente. Buscava obsessivamente simplicidade e elegância.
Mantinha uma clientela ampla e fiel.
A descrição do modo de agir de Steve Jobs (1955-2011) deveria ser a meta de todo jornalista: fugir do óbvio, tornar compreensível e atraente o que é intricado, criar uma relação de confiança com o público.
‘Permaneça faminto, permaneça inocente’, seu conselho aos formandos da Universidade Stanford em 2005, cairia bem como lema escrito nas paredes das Redações.
Uma pessoa tão inspiradora mereceu, na Folha, um obituário frio, incompleto e aquém da sua importância histórica. A edição de quinta-feira passada não dava conta da fascinante biografia de Jobs, de bebê rejeitado a CEO da empresa mais valiosa do mundo.
A análise destacava o fato de o inventor do Macintosh ter iniciado a ‘era dos empresários que são a face da empresa’, mas isso já poderia ter sido dito sobre Henry Ford, no início do século 20, ou sobre Bill Gates e a sua Microsoft.
Não havia nada sobre a comoção nas redes sociais -foram 4,5 milhões de mensagens no Twitter, muitas originais e tocantes, como a ‘iSAD’. Faltou ainda uma boa infografia, ponto forte da Folha.
A morte de Jobs era esperada. Ele definhava e, em agosto, anunciou sua saída da Apple. Na lógica fria do jornalismo, significa que havia tempo para preparar um obituário.Mas parece que a Folha não fez a lição de casa e foi pega desprevenida pelo anúncio da morte na noite de quarta-feira.
Morrer no ‘NYT’
Fazer um bom obituário é uma arte que demanda suor. Precisa ler biografias, ouvir a opinião de especialistas, escolher as melhores frases, burilar exaustivamente o texto.
Não se pode santificar o biografado nem se contentar em empilhar fatos. Alguns detalhes sobre o modo de agir da pessoa, episódios pitorescos e suas manias ajudam a dar a impressão, ao final da leitura, de que você conhecia o morto.
O ‘New York Times’ é mestre nesse terreno. ‘A seção de obituários do Times é uma cerimônia de adeus diária de bom jornalismo’, escreveu o jornalista Matinas Suzuki Jr., em ‘O Livro das Vidas’ (Companhia das Letras).
O texto do repórter John Markoff sobre Steve Jobs é um bom exemplo dessa arte.
Objetivo e minucioso, o obituário mostra que Jobs conseguiu aquilo a que se propôs: deixar uma marca no mundo. Ali entendemos como ele se via (‘um líder digital’), de onde vinham suas referências (da contracultura dos anos 60) e o seu modo de chefiar (perfeccionista, déspota), sabemos uma ou duas fofocas (namorou Joan Baez) e encontramos uma tentativa de dimensionar seu legado (‘conduziu uma transformação cultural na forma com que experimentamos música, filmes e comunicação móvel’).
O jornal americano tem uma editoria dedicada a descrever a vida inclusive de cidadãos desconhecidos, com milhares de arquivos prontos à espera ‘da pauta de Deus’. A obsessão é encontrar o aposto perfeito de cada existência.
No Brasil, não há essa tradição, mas espera-se da grande imprensa que se prepare pelo menos para os casos especiais. A ‘Veja’, que idolatrava Jobs, fez isso: adiantou a revista para a sexta-feira e trouxe uma edição diferente e bem amarrada.
A cobertura da Folha deixou um gosto de ‘quero mais’ ou de ‘poderia ser melhor’. O jornal não conseguiu transmitir a singularidade de Jobs, que era um ídolo pop.
O leitor Daniel Cambria, 31, instrutor de yoga, afirmou: ‘compramos os produtos e usamos os serviços da Apple com um sorriso no rosto. Os jornais precisam conseguir isso também’. Assino embaixo.”