Antropólogo italiano, ou ítalo-brasileiro – já que tem uma longa história com o país onde escolheu morar –, Massimo Canevacci concedeu esta entrevista ao blog do TCAv (Grupo de pesquisa Audiovisualidades e Tecnocultura: comunicação, memória e design) para conversar sobre suas diversas pesquisas e conceitos desenvolvidos a partir do embate com a metrópole comunicacional contemporânea, tema que estuda há mais de 20 anos. Atualmente, ele reside em Florianópolis e leciona na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Sua relação com o Brasil começou por acaso, quando ficou sabendo, em 1984, que uma editora brasileira tinha publicado seu livro Dialética da família sem conhecimento dele ou da editora italiana. O então professor da Universidade de Roma escreveu ao editor local e tempo depois foi convidado para fazer um seminário sobre a família.
A partir dessa primeira visita começou a viajar com frequência, inclusive para fazer suas pesquisas: primeiro na cidade de São Paulo, de onde surgiria a obra Cidade polifônica (1997) e depois pesquisando culturas indígenas. Canevacci participará da Semana da Imagem na Comunicação, a ser realizada na Unisinos em agosto deste ano. Segundo o pesquisador, eventos como esse ajudam a encontrar os caminhos para a pesquisa em comunicação digital. “Em algumas universidades há ainda um pouco de medo de enfrentar a comunicação digital como ela merece. Há um pouco de preconceito. Eu acho que a Semana da Imagem pode ser muito importante para discutir todos esses assuntos e tentar projetar um tipo de pesquisa que não seja somente em Porto Alegre ou no Brasil. Uma rede global, com pesquisadores que estejam em diversos lugares do mundo, focalizando esse extraordinário desafio que é a comunicação contemporânea”, enfatiza. O pesquisador é professor visitante em diversas universidades do mundo e membro do TCAv.
Canevacci concedeu esta entrevista à jornalista Sonia Montaño, por telefone. Mestre em Ciências da Comunicação pela Unisinos, Sonia trabalhou durante vários anos no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e atualmente cursa doutorado em Ciências da Comunicação na Unisinos e é professora visitante no Curso de Comunicação Digital da mesma instituição. É também repórter freelancer para diversos veículos de comunicação na América Latina.
O Grupo de pesquisa Audiovisualidades e Tecnocultura: comunicação, memória e design (TCAv) pesquisa e analisa audiovisuais em contextos midiáticos e em contextos não reconhecidamente midiáticos ou audiovisuais e busca compreender suas linguagens e configurações nos usos e apropriações praticados pelas mídias e pelos espectadores, entendidos esses, agora, também como protagonistas.
Confira a entrevista.
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Na Semana da Imagem na Comunicação você vai abordar o tema carpe codex. Poderia antecipar essa abordagem?
Massimo Canevacci –Reelaborei um conceito de Horácio, o poeta e escritor romano, que era carpe diem, que significa algo assim como “agarre o momento”. Eu o transformei em “agarre o código” na metrópole comunicacional, que é uma metrópole muito mais voltada para a comunicação, o consumo e a cultura do que a produção industrial. A grande dimensão do contexto metropolitanto é fundamental para entender um outro conceito importante, o de subjetividade multividual. O conceito de multivíduo é a multiplicação de eus no mesmo sujeito, é um tipo de identidade que envolve a cultura digital. Ela está favorecendo um tipo de atividade, de desejo, que é também uma forma política de comunicar, de cada pessoa exprimir, narrar a sua própria história.
A comunicação tem atualmente o papel que, para Marx, tinha a divisão social do trabalho. Ninguém quer ser enquadrado, nem somente narrado e nem somente interpretado. Cada pessoa, seja no contexto indígena, acadêmico, metropolitano, da juventude, das mulheres ou qualquer movimento urbano, quer ser o sujeito ativo de sua própria comunicação. Isso é um problema político enorme, porque a estrutura hierárquica da comunicação digital está ainda baseada sobre a produção e reprodução de poder. Mas, ao mesmo tempo, essa expansão enorme de subjetividade – que chamo multivíduo – vai criando movimentos como na Espanha, por exemplo, ou em tantos outros países. Vai criando um tipo de subjetividade que quer ser o ator da política comunicacional contemporânea.
Seria uma forma política própria da cultura digital?
M.C. –Há uma profunda interconexão entre a metrópole comunicacional, a subjetividade multividual e as culturas digitais. Sublinho culturas, no plural, porque não é uma questão de tecnologia: a dimensão da comunicação digital está transformando profundamente o contexto global e local. Então, é possível pensar num tipo de cidadania transitiva conectada com a etnografia ubíqua. A distinção clássica entre espaço e tempo está sendo misturada sempre mais e mais. Nesse sentido, as ciências humanas deviam modificar radicalmente sua metodologia para criar um tipo de projeto no qual a cidadania transitiva fosse de fundamental importância. O que está acontecendo agora em Milão, Madri, El Cairo é cidadania transitiva.
É um tipo de cidadania com códigos próprios?
M.C. –Sim. Tudo isso traz, por exemplo, a augumented reality (realidade aumentada), um tipo de código que substitui o código de barra. Ele não só é muito mais potente em quantidade e qualidade de informação, mas favorece um tipo de comunicação horizontal. Eu posso colocar aquele código na cidade, na metrópole, e cada pessoa pode, com seu celular, não só decodificar mas também colocar imagens, narrações, criar essa realidade aumentada. Voltando ao carpe codex, significa tentar fazer uma experiência performática, onde cada subjetividade – que é performática no contexto atual – possa elaborar um projeto de realidade aumentada. Imagine, na universidade, se cada aluno, professor ou simples trabalhador criasse uma história que não tivesse início, meio ou fim: poderia representar uma mudança radical para modificar o sentido de universidade. O carpe codex poderia se expandir pela cidade, seja Porto Alegre ou São Paulo, para criar um movimento que fosse, ao mesmo tempo, material, na metrópole, e imaterial, na tecnologia digital. Seria criar um movimento comunicacional que modificasse o sentido da comunicação e da política.
Como a comunicação móvel transforma a experiência da metrópole?
M.C. –É uma nova experiência produzida pela capacidade de subjetividade móvel que consegue ser conectada, consegue reunir no mesmo espaço-tempo contextos diferenciados. Então, quando falo de cultura digital, não falo simplesmente de multimídia, de redes sociais ou de web 2.0; falo da pervasividade da cultura digital que penetra o exercício de nossa corporalidade ou de nossa extensão com notebooks, celulares, etc, seja no território material ou imaterial da metrópole comunicacional. Tudo isso cria um fluxo muito complexo e perturbador que deve ser etnograficamente analisado com metodologias novas. O analógico tinha uma lógica e o digital tem outro tipo de lógica. Tento focalizar a potencialidade digital além do dualismo, além do bem e do mal, de uma identidade fixada, além de um território onde vou nascer, trabalhar e morrer. Tudo isso tem grande potencialidade. É o conflito da comunicação urbana contemporânea.
Em seu livro Fetichismos visuais – corpos erópticos e metrópole comunicacional(2008), o senhor usa alguns conceitos que você próprio criou para compreender a metrópole, como por exemplo, o de “fetichismo visual”. Poderia explicá-lo?
M.C. –A alteração das relações entre seres humanos e mercadorias envolve fetichismos visuais disseminados, sobretudo, pela tecnologia digital. Esse novo estilo de vida mistura publicidade, moda, música, arte e design – não mais mercadorias clássicas. É um conceito-chave em Marx, mas o fetichismo mudou profundamente sua natureza nos últimos tempos. Passou de um fetichismo material, baseado na produção industrial que Marx analisou como elemento de reificação do humano, para um âmbito mais amplo da interação metropolitana com a comunicação digital. É por isso que o fetichismo está expandido na publicidade, no cinema, no esporte, na arquitetura, no design, e tudo isso apresenta um enorme desafio para quem quer fazer pesquisa, porque esse tipo de corporalidade, baseada sobre um fetichismo visual, está virando sempre mais o centro de uma política comunicacional. O meu projeto é de dissolver o poder reificante do fetichismo contemporâneo.
Esse tipo de dissolução do elemento de poder que o fetichismo incorpora é conectado claramente com um tipo de produção, com um tipo de perversão, e com um tipo de preconceito em que muitas pessoas identificam o fetichismo como um tipo de sexualidade. Então, penetrando dentro desse tipo de ambiguidade, o fetichismo não é somente essa dimensão de poder e domínio baseado no colonialismo, perversão sexual, reificação industrial: tem também o lado utópico. O fetichismo tem a capacidade de construir um projeto além dos dualismos objeto/sujeito, corpo/mercadoria, pele/pixel, natureza/cultura, material/imaterial.
Como se daria essa dissolução do poder?
M.C. –Estou tentando, no meu projeto de pesquisa atual, penetrar a superficialidade de um fetichismo visual que chamo de metafetichismo, isto é, um fetichismo que vai além da reificação, da perversão, que realiza o grande sonho da metamorfose, do mito, do desejo de modificar a forma de cada subjetividade. Modifico a minha forma. Metafetichismo e metamorfose pode ser um tipo de aliança produtiva e política para criar um novo tipo de libertação do ser humano. Não somente do ser humano, mas também da dimensão animal, vegetal, orgânica e divina, entendendo-a como uma dimensão sagrada, imanente à vida.
E como entram aí os “corpos erópticos”?
M.C. –A eróptica é a metodologia de pesquisa. Ela precisa de um treino para cada pesquisador. Treinar seu próprio olhar para se olhar enquanto olha. Ou seja, transformar seu próprio corpo em um corpo cheio de olhos que tem a capacidade de misturar a dimensão óptica com a dimensão erótica, essa mistura é a eróptica. Metodologia sensual de pesquisa porque o olhar deve ser adequado ao contexto de pesquisa. O olhar precisa desafiar e virar também fetichista e sensual.
Como essa metodologia funciona, se operacionaliza?
M.C. –Para compreende-la na prática utilizo o conceito de atrator. O atrator é um elemento que, quando eu estou com meu olhar navegando na internet ou caminhando na rua mais ou menos distraído, ele captura meu olhar e sentidos, mobiliza todo o corpo do observador que se estranha com a visão e com a sensação. Um elemento que impele o corpo de quem olha. Esse tipo de olhar bloqueia minha pupila, é uma capacidade de manifestar uma qualidade de um fetichismo visual forte. Treinando meu olhar com a eróptica consigo focalizar os atratores que são muito problemáticos para o pesquisador, porque quando ele é fixado pelo atrator fica perturbado, sua sensibilidade é seduzida para se perder na força sedutora do atrator fetichista. Esse tipo de perigo, eu prefiro enfrentá-lo, por isso a metodologia é penetrar e ser penetrado. Entrar dentro do corpo do fetichismo visual que o atrator capturou.
Estas questões que conversamos, sobre sua reflexão em geral, são do campo da comunicação? São questões de antropologia? Ou essa distinção é irrelevante e obsoleta?
M.C. –O sistema de disciplina da universidade, de compartimento, está em crise irreversível. A divisão disciplinar assim como foi construída na época moderna não funciona mais. Cada disciplina para mim é indisciplinada. Eu cruzo antropologia, comunicação, arquitetura, posso fazê-lo, tenho o direito de fazê-lo. Acho que cada pesquisador precisa afirmar uma descentralização irregular e indisciplinada. Isso significa inventar um novo processo de conhecimento, ou melhor, um novo processo de sabedoria.