Tudo indica que nós, brasileiros, estamos caminhando para um período de extrema turbulência política, causada pela tensão e pelas incertezas em torno das eleições presidenciais do ano que vem e pela evolução da crise econômico-financeira no país. Esta perspectiva obriga o jornalismo a repensar algumas das normas mais entranhadas na cultura profissional, como a da objetividade, isenção e imparcialidade, diante da complexidade crescente no ambiente informativo contemporâneo.
Não se trata mais de uma discussão teórica sobre a validade ou não das regras sobre objetividade e isenção, mas de analisar como as rotinas cotidianas do jornalismo estão sendo afetadas pela ação combinada das novas tecnologias digitais de informação e da crise estrutural no exercício da política em nosso país.
A cobertura dos trabalhos da CPI da Pandemia concentra a maior parte destes dilemas vividos de forma consciente ou automatizada por repórteres, editores e comentaristas, tanto de veículos impressos nacionais ou locais, como pelos profissionais atuando em telejornais, blogs jornalísticos e redes sociais.
A complexidade e diversidade da avalanche de informações surgida em torno da CPI atropelaram a norma da imparcialidade jornalística na medida em que os próprios profissionais perceberam a impossibilidade da neutralidade noticiosa. Com tantas versões, contraversões e omissões nos depoimentos, repórteres e analistas foram obrigados a se moverem num campo minado onde o risco maior não é o de publicar uma notícia falsa ou meias verdades, mas o de servir como coadjuvante involuntário na desinformação impulsionada na CPI por testemunhas, investigados e lobistas pró e contra o governo.
Os principais atores no jogo do poder sabem que precisam da imprensa para que seus objetivos sejam alcançados. A manipulação da informação tornou-se uma rotina altamente sofisticada e onipresente, o que obriga os jornalistas a destrincharem o discurso de políticos, governantes, empresários, militares, consultores e lobistas para tentar identificar o que pode ser minimamente veraz e, portanto, digno de ser transmitido ao público.
Esta responsabilidade já existia antes da chegada da internet, mas era muito menos complexa porque não havia tantas versões diferentes sobre os mesmos fatos, dados ou eventos. A desinformação sempre existiu, mas sua identificação era difícil porque havia pouca diversificação nas narrativas para permitir comparações. Mas tudo isto mudou.
A “arquitetura de escolhas” jornalísticas
Com a avalancha informativa na era digital, o comportamento crítico passou a ser um atributo essencial na vida de um repórter, editor ou comentarista. É o antidoto básico contra a desinformação e as fake news (notícias falsas). Só que a preocupação crítica envolve várias outras questões e a principal delas é a constatação de que o jornalista, como qualquer outro ser humano, tem uma percepção individual, uma maneira própria de ver o mundo que o cerca. Cada um de nós vê a realidade de forma pessoal e distinta das demais pessoas, porque temos diferentes experiências, heranças, culturas, níveis variados de informação, modos de vida, remuneração etc.
A função do jornalista dentro de uma comunidade é o que o diferencia das demais pessoas em matéria de percepção da realidade. O jornalista é o que o economista Richard Thaler e o sociólogo Cass Sunstein, ambos norte-americanos e autores do livro Nudge (Empurrão), definem como “arquitetos de escolhas”. Repórteres, editores e comentaristas “arrumam” os dados, fatos e eventos de uma forma pessoal, seguindo sua percepção individual e os transmitem ao público na forma de reportagens e comentários. O que as pessoas recebem não são os dados, fatos ou eventos, mas a “arquitetura” das escolhas feitas pelo jornalista.
A “arquitetura de escolhas” não é um fato novo na vida do jornalismo, pois sempre existiu na hora de montar uma reportagem. Os profissionais faziam a escolha do material base para uma notícia seguindo estrita, e quase mecanicamente, as normas dos manuais de redação. Agora, em plena avalanche informativa, a visibilidade da “arquitetura de escolhas” tornou-se algo indispensável para qualificar uma notícia. Permitir que o público saiba quem e como foi feita a escolha dos dados, fatos e eventos mencionados numa notícia passou a ser fundamental para os leitores, ouvintes, telespectadores e internautas se identificarem ou não com o que estão lendo, ouvindo, vendo ou interagindo.
Jornalistas e influencers
Ter uma posição deixou de ser um defeito para se tornar um componente da notícia porque ela passou a ser um dos elementos na avaliação de credibilidade. O posicionamento do profissional é uma postura assumida racionalmente e não o que muitos chamam de “achômetro”, uma opinião emitida sem compromisso com a realidade. O mundo digital está forçando os profissionais do jornalismo a assumirem posicionamentos, o que é diferente de emitir opiniões. Um posicionamento é fundamentado na experiência profissional no trato com dados, fatos e eventos noticiosos, enquanto uma opinião resulta de uma percepção conjuntural e transitória de situações vividas pelo repórter, editor ou comentarista.
Posicionamento e opinião servem também para distinguir os jornalistas dos chamados influencers (influenciadores) que se multiplicam nas redes sociais. Estes últimos são personagens cujo sucesso depende do tamanho da audiência interessada nas opiniões emitidas pelo influencer sobre os mais diversos assuntos. A qualidade e confiabilidade das opiniões fica num discreto segundo plano porque o que interessa é criar uma espécie de “rebanho” virtual de seguidores.
Um jornalista não é um influencer pela própria natureza de seu trabalho, embora também influencie pessoas através da prática da “arquitetura de escolhas”. O objetivo não é criar “rebanhos”, apesar de muitos profissionais acabarem seduzidos pela possibilidade de se tornarem líderes de “seitas” informativas. O posicionamento de um jornalista e a decorrente visibilidade pública desta atitude, passaram a ser uma condição para que as escolhas feitas pelo profissional do material usado na produção de uma notícia permitam que leitores, ouvintes, telespectadores e internautas tenham maior facilidade e clareza na contextualização das informações recebidas. Isto é crucial, sobretudo, em períodos de turbulência político-eleitoral quando o enviesamento das notícias se torna uma commodity usada em larga escala por políticos, influencers e grupos tipo “gabinete do ódio”.
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Carlos Castilho é jornalista.