Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia e a presidência na Era FHC

O campo dos estudos brasileiros sobre comunicação política tem se consolidado nos últimos anos. O país já conta com grupos de trabalho e associações profissionais dedicados à área, bem como com uma vasta bibliografia sobre mídia e política. Todavia, entre os temas importantes que ainda não foram tratados com a atenção devida está a comunicação presidencial. Algumas questões surgem neste contexto. Quais estratégias os Presidentes da República adotam para se comunicar com o público? Quais estruturas de assessoria e de relacionamento com a imprensa são montadas no Palácio do Planalto? Quais canais os Presidentes utilizam para influenciar a cobertura jornalística? Em que medida o Presidente tem sucesso no controle da agenda pública? Existem vários estudos sobre mídia e política que abordam alguns destes temas, mas ainda não contamos com esforços de teorização ou com estudos empíricos sistemáticos que apresentem respostas a estas questões.

Neste artigo, apresento algumas observações preliminares sobre a estratégia de comunicação estabelecida nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A discussão faz parte da pesquisa que estou desenvolvendo sobre o papel da televisão na política brasileira desde a redemocratização e que deverá resultar em um livro. A discussão que apresento a seguir está baseada em entrevistas que realizei em 2006 com jornalistas e políticos, includindo o Presidente Fernando Henrique Cardoso [a entrevista com Fernando Henrique Cardoso foi conduzida pelo autor em São Paulo no dia 18 de julho de 2006].

Estratégias de comunicação presidencial

Ao assumir o poder, os chefes do Poder Executivo podem adotar diferentes modelos de comunicação. Para controlar a agenda da mídia e influenciar a agenda pública, os Presidentes e suas equipes podem adotar diferentes estratégias. O Presidente [utilizo o substantivo masculino, já que a Presidência tem sido historicamente monopolizada por homens no brasil] deve decidir quais atores do campo jornalístico são importantes e quem da sua equipe ficará encarregado da relação com estes atores. A grosso modo, é importante distinguir pelo menos três tipos de atores no campo do jornalismo: proprietários, editores e repórteres. O Presidente pode buscar se relacionar diretamente com cada um destes atores. No mundo da política real, todavia, o tempo dos detentores do poder é escasso. Estas tarefas são freqüentemente delegadas a membros da equipe, especialmente ao assessor de imprensa e/ou porta-voz.

A estratégia de comunicação presidencial depende de vários fatores contextuais. Em países que contam com instituições jornalísticas mais profissionalizadas, em que as salas de redação têm maior autonomia em relação a outsiders, incluindo proprietários, a relação do Presidente com os jornalistas e editores é particularmente importante. Já em países ou períodos em que os níveis de profissionalização e autonomia jornalísticos são baixos, ou nos casos de proprietários com tradição de manipulação de suas empresas, contatos com os donos da mídia são particularmente importantes.

Na breve discussão que apresento a seguir aplico estas distinções à era FHC, enfatizando em particular a relação entre o Palácio do Planalto e a Rede Globo. O objetivo é elaborar algumas observações que possam apresentar subsídios para pesquisas futuras sobre a comunicação presidencial.

FHC e os jornalistas

Não é necessário aqui lembrar o papel absolutamente central do Plano Real na eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994. Também creio ser desnecessário enfatizar que os meios de comunicação estiveram entre os atores que apoiaram o plano de forma ativa. A posse de FHC ocorre em meio a um consenso generalizado na mídia e na sociedade em torno do novo plano econômico. Cardoso inicia o seu primeiro mandato desfrutando de níveis elevados de aprovação.

Neste pequeno ensaio trato de uma questão mais específica. Qual foi a estratégia de comunicação montada pelo Presidente Fernando Henrique? Mais especificamente, que tipo de relacionamento FHC e sua equipe de comunicação estabeleceram com a mídia em geral e com a TV Globo em particular? Quais dos três tipos de atores no campo do jornalismo (proprietários, editores e repórteres) foram privilegiados?

Comecemos com a relação entre o Palácio do Planalto e os repórteres. Apesar do clima de consenso que predominou no início do primeiro mandato, o Presidente e sua equipe partiram do pressuposto de que a esquerda em geral, e o PT em particular, exerciam uma influência significativa nas redações e de que a relação com repórteres não seria necessariamente fácil. Um dos aspectos mais importantes da comunicação presidencial na era FHC foi a decisão de indicar a jornalista Ana Tavares para ocupar a Assessoria de Imprensa da Presidência da República. Em seus oito anos no cargo, a jornalista montou o que muitos repórteres e editores definiram em suas entrevistas como a assessoria de imprensa mais profissional e eficaz já montada no Palácio do Planalto. Ana Tavares conhecia os jornalistas que cobriam o governo e era por eles conhecida, criando um importante clima de confiança pessoal. Muitos jornalistas descreveram em suas entrevistas que era ‘fácil’ cobrir a Presidência, pois a assessora passava as informações necessárias e freqüentemente conseguia agendar entrevistas com o Presidente.

Portanto, a comunicação presidencial na era FHC foi caracterizada não só pela decisão de delegar a relação com jornalistas para a Assessora de Imprensa, como também pela criação das condições necessárias para o seu funcionamento. Em outras palavras, Ana Tavares teve um relativo êxito na coleta de informações solicitadas pela imprensa e no agendamento de entrevistas com o Presidente, o que facilitou o trabalho com repórteres e eliminou algumas resistências.

FHC e os editores

Todavia, de nada adianta ao Presidente cultivar boas relações com jornalistas se os editores vetarem ou alterarem as matérias que são produzidas por eles. Portanto, além de repórteres, a relação com editores e chefes de redação é vital para o êxito das estratégias de comunicação presidencial.

No caso específico da Rede Globo, o governo Fernando Henrique enfrentou uma transição importante na direção do departamento de jornalismo da emissora. Quando Fernando Henrique toma posse em 1995, a Central Globo de Jornalismo (CGJ) era comandada por Alberico de Sousa Cruz. Responsabilizado pela famosa edição do debate entre Lula e Collor no segundo turno da eleição de 1989, Alberico ocupou o cargo de Diretor Geral da CGJ entre 1990 e 1995. Neste período, Alberico estabeleceu relações pessoais e íntimas com políticos e Presidentes, incluindo Fernando Collor de Mello. Um dos aspectos que facilitou inicialmente a estratégia de comunicação de Fernando Henrique foi o fato de que ele também tinha boas relações pessoais com Alberico e que esta relação facilitou a influência do governo no jornalismo da Globo. Nas minhas entrevistas, tanto políticos como jornalistas afirmaram que a parcialidade e a amizade pessoal de Alberico com FHC foi uma das razões principais da sua demissão poucos meses depois. Alberico é substituído por Evandro Carlos de Andrade no posto de Diretor Geral da Central Globo de Jornalismo em julho de 1995. Em trabalhos anteriores, já analisei em detalhe a importância e as conseqüências desta mudança. [Mauro Porto, ‘Novos apresentadores ou novo jornalismo? O Jornal Nacional antes e depois da saída de Cid Moreira’. Comunicação e Espaço Público, Vol. 4, n. 1-2, 2002, pp. 9-31; e Mauro Porto, ‘TV news and political change in Brazil: The impact of democratization on TV Globo´s journalism.’ Journalism, Vol. 8, n. 4, 2007, pp. 381-402] Para os objetivos deste texto, cabe ressaltar que a contratação de Evandro Carlos de Andrade teve por objetivo recuperar a credibilidade do jornalismo da Rede Globo através de uma maior profissionalização e de menos intervenções explícitas e parciais no campo da política. Neste sentido, a relação de Cardoso com os editores da Rede Globo ficou mais difícil, quando comparada com o fácil acesso do Presidente na gestão de Alberico.

Estas mudanças no corpo de editores da Rede Globo tiveram repercussões importantes para a comunicação presidencial. Em sua entrevista, Fernando Henrique afirmou que um dos filhos de Roberto Marinho comunicou a ele que a empresa ia mudar a direção do jornalismo. Segundo o Presidente, os proprietários da Globo afirmaram na ocasião que uma das conseqüêcias da mudança seria uma maior independência da emissora em relação ao governo.

Ao ressaltar estas mudanças, não estou pretendendo afirmar que Fernando Henrique teve dificuldades no seu relacionamento com os novos editores da Central Globo de Jornalismo ou que a emissora exerceu um jornalismo imparcial em relação ao governo. Em livro que será lançado em breve, demonstro que o jornalismo da Rede Globo continuou a privilegiar os enquadramentos do governo federal durante o segundo mandato de Fernando Henrique. [Mauro Porto, Televisão e Política no Brasil: A Rede Globo e as Interpretações da Audiência. Rio de Janeiro: E-Papers (no prelo).] O meu objetivo aqui é apenas ressaltar um tema até agora negligenciado pelos estudos de comunicação política: o fato de que mudanças na linha editorial da principal empresa de comunicação do país afetam as estratégias de comunicação presidencial. Em particular, a maior profissionalização do jornalismo da Globo fez com que o favorecimento das perspectivas do governo se estabelecesse de forma mais sutil e indireta, quando comparado às manipulações mais explícitas do passado.

FHC e os donos da mídia

Finalmente, cabe ressaltar o terceiro ator do campo jornalístico que é essencial para as estratégias de comunicação dos Presidentes: os proprietários dos meios de comunicação. Sabendo da importância dos proprietários na formação da linha editorial de suas empresas, Fernando Henrique buscou cultivar uma relação direta e pessoal com eles. Em momentos de crise, o Presidente chegou a intensificar contatos com os donos da mídia com o objetivo de alterar a cobertura noticiosa. Por exemplo, no primeiro semestre de 1998 a reeleição de Fernando Henrique parecia ameaçada pelo caráter essencialmente negativo da agenda da mídia e pelo crescimento de Lula nas pesquisas. O Presidente entrou então em contato com vários proprietários de meios de comunicação alertando para o fato de que a continuidade deste tipo de cobertura poderia levar à eleição de Lula. [Em sua entrevista, Cardoso ressaltou que agenda da mídia no primeiro semestre de 1998 era realmente negativa e culpou a influência do PT nas redações por este tom da cobertura. Todavia, o Presidente negou que tenha estabelecido contatos freqüentes e diretos com proprietários dos meios de comunicação para alterar a cobertura noticiosa. O Presidente admitiu apenas ter conversado a respeito com Octavio Frias, proprietário da Folha de S. Paulo. Apesar do Presidente negar o fato, alguns jornalistas relataram em suas entrevistas que proprietários de empresas de comunicação foram procurados na época pelo Presidente.]

Um dos fatos marcantes da era FHC foi o gradual afastamento de Roberto Marinho do comando da Rede Globo por motivos de saúde. Quando Fernando Henrique tomou posse em 1995, os três filhos de Marinho já haviam assumido o controle da empresa. As conseqüências desta mudança geracional não podem ser ignoradas. Marinho exercia um controle claro e às vezes direto da linha editorial da principal empresa de comunicação do país. Já os seus três filhos optaram por uma maior profissionalização da Central Globo de Jornalismo, dando mais autonomia para editores e jornalistas. Portanto, a importância do cultivo de relações diretas com os proprietários da Globo diminuiu na era FHC.

Não pretendo com isso afirmar que FHC teve dificuldades no relacionamento com os proprietários da Globo ou que os filhos de Roberto Marinho não exerceram influêcia no seu governo. Em sua entrevista, o Presidente relatou, por exemplo, ter consultado os novos proprietários das Organizações Globo quando se negociava nomes para a composição da equipe do Ministério das Comunicações. O meu objetivo é ressaltar um aspecto ainda não explorado pelos estudos brasileiros de comunicação política: o impacto do afastamento de Roberto Marinho para as estratégias de comunicação da Presidência da República.

Espero que este texto de naturera introdutória contribua para gerar novas questões e novas pesquisas sobre a relação entre o campo jornalístico e as estratégias de comunicação presidencial.

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Integrante do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política e professor na Universidade de Tulane, Nova Orleans