Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A pena guerrilheira

É na morte de expoentes como o escritor humanista argentino Ernesto Sábato, ocorrida sábado dia 30 de abril, que se percebe o escandaloso despreparo da cobertura dita cultural da mídia. A honrosa diferença vai sempre para o jornal espanhol El País em sua edição de domingo (1/5), que cobriu (no sentido mais amplo de notícia e reflexão, forma e conteúdo) o fato registrando a dimensão mais exata possível de um escritor que foi muito além da literatura para se lançar pensador e político libertário.


Comunista desde 1930 (embora saísse do Partido por não pactuar com desvios da prática stalinista), Sábato se apresentou lúcido na proclamação do indivíduo ante as máquinas e estruturas demolidoras da sensibilidade. Romântico radical exercia sem pudor este amar ao extremo sob o risco de até parecer ‘ingênuo’. Declarou-se anarcocristão, descrente de ideologias castradoras, totalitarismos, ‘verdades’ científicas e dogmas salvadores.


Aí a dificuldade das redações narcotizadas pela cobertura fragmentada só do eventual, enferrujada no exercício da opinião, entender a dimensão de alma tão magnífica. Cria-se o ranço da rotina que idolatra o curto e grosso, o prato feito e fast food para deglutição rápida da notícia.


Almas tradutoras


O mérito do El País está na velocidade. Tal qualidade já se mostrou na edição de domingo, 1 de maio. Claro que as revistas e alguns ‘especiais’ devem vir até com boas edições. O que se releva foi a prontidão com o tema em uma cobertura que exigia mais do repórter dia-a-dia no pula daqui pra lá, às vezes vítima do bípede mero transportador de releases ou um declaratório sem contraditório (como já qualificou mestre Dines).


Exigia-se a edição na sua plenitude em que editorias de política, especialistas, economia, antropologia, filosofia, artes gráficas e ilustradores estivessem alinhados com a Cultura em seu sentido mais profundo. Processo além do produto. Questão que até os gestores públicos traem quando se submetem aos mercados para ‘fazer nome’ e esquecem o quanto criadores (desalinhados) e produtores (excluídos) precisam de ferramentas, canais e redes para criarem outras possibilidades estéticas e de expressão.


Não era só um mestre literato era um animal solidário e atormentado de compaixão por se ver, algumas vezes, impotente ante a sordidez do humano que ele exaltava. Para a literatura, dizia: ‘Tenho a mesma relação que um guerrilheiro tem com um exército regular’.


Sábato em Hombres y Engrenages (1951), Uno y El Universo (1945) e La Resistencia reforça seu testemunho comprometido com a indignação do profeta em desencanto com este futuro de colapso. Em 1981 publica La robotización del hombre. Já em em Sobre Heróes y Tumbas (1961) o romance da saga argentina. ‘Pela liberdade deve se arriscar a vida’, disse ao receber o Prêmio Cervantes em 1994. Era o presidente de honra e de fato da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas. Recebeu de Raul Alfonsín a tarefa de nominar e detalhar milhares de casos que resultou no documento ‘Nunca Más’, também conhecido como ‘Informe Sábato’ (entregue em um inesquecível dia 20 de setembro de 1984).


Nem as rusgas com outro genial marco da polêmica, contradição e extraordinária obra, Jorge Luis Borges, lhe afetava no fundo. Havia duas almas tradutoras profundas de uma Argentina complexa, tensa e intensa, apaixonada até a medula como é a marca nossa latinoamericana em que se inclui a trajetória brasileira.


Deuses inescrutáveis


No testamento-testemunho publicado como livro Antes Del Fin, Sábato revela sua fina sensibilidade e mostra que a cara dura e ranzinza de uma impaciência com a mediocridade era muito mais proteção que opção de vida. Recolhido, mas não extinto, sob a irritação natural da perda vital que a idade traz e aborrece (sem falar na progressiva perda da visão), Sábato dá pistas de um misticismo panritualista que busca ‘saídas’ nas pequenas coisas e na magnitude do espírito sobre as forças brutais da tal modernidade niveladora.




‘Queria encontrar um sentido de transcendência neste mundo encharcado de horror, traições, inveja; desamparos, torturas e genocídios. Mas também de pássaros que levantam meu ânimo quando ouço seus cantos, ao amanhecer; ou quando minha gatinha se aconchega; ou quando veja as cores das flores, tão minúsculas que preciso observá-las de muito perto. Modestíssimas mensagens que a Divindade nos dá de sua existência.’


Pessimista não pelo o Humano em si, mas pelo que fizemos da humanidade. Pessimista no sentido de ver o péssimo e reagir com o que tinha de melhor: seu caráter, paixão pela luta libertária e as palavras. Um pessimista, no sentido tosco e derrotado, não escreveria o vigor da obra La Resistencia que assim abre em primeiras linhas:




‘Hay días en que me levanto con una esperanza demencial, momentos en los que siento que las posibilidades de una vida más humana están al alcance de nuestras manos. Éste es uno de esos dias’.


E mais adiante faz a celebração do prazer como restituição absoluta de se ter a própria vida nas mãos – sujeitos da história, diriam os marxistas da era romântica (antes da cristalização do revolucionário):




‘Tenemos que reaprender lo que es gozar. Estamos tan desorientados que creemos que gozar es ir de compras. Um lujo verdadero es un encuentro humano, un momento de silencio ante la creación, el gozo de una obra de arte o de un trabajo bien hecho. Gozos verdaderos son aquellos que embargan el alma de gratitud y nos predisponen al amor. La sabiduría que los muchos años me han traído y la cercanía a la muerte me enseñaron a reconocer la mayor de las alegrías en la vida que nos inunda, aunque aquélla no es posible si la humanidad soporta sufrimientos atroces y pasa hambre’.


Entre o ‘anarcocrítico’ e a razão nunca esquecer sua sólida formação cultural com domínio clássico e a parcela do físico cientista que lhe estruturou um dia. Na religação com o simples coexistia o horror e a indignação capaz de produzir esta sombria introdução no antológico capítulo 3, ‘Informe sobre Ciegos’, de Sobre Heroes y Tumbas:




‘¡Oh, dioses de la noche! ¡Oh, dioses de las tinieblas, del incesto y del crimen, de la melancolía y del suicidio! ¡Oh, dioses de las ratas y de las cavernas de los murciélagos, de las cucarachas! ¡Oh, violentos, inescrutables dioses del sueño y de la muerte!’


Solidariedade


Vale recuperar Sábato em toda América Latina em nome das utopias abortadas e como reação aos que se recusam a sonhar e, mais que sonhar, ousam alterar a realidade em atitudes, palavras, atos, artes, manifestos e, mesmo e principalmente, em novas políticas públicas em que a Sociedade consiga o máximo de autonomia e protagonismo frente ao Estado controlador para anular guetos opressivos. Breves e leves nesse caminho com Sábato. Alertados por ele de que ‘las palabras sirven más para descargarnos de nuestros actos que para responder por ellos’.


Meu imenso carinho solidário a nossos companheiros de Pontos de Cultura na Argentina e por saber o quanto essa fraternidade se fortalece nas utopias que mais fortes ficam, além da morte, ou de qualquer intenção em nos interromper.


Somos vivos pela História e não pela histeria! Ao sol da solidariedade, sempre!


 


Leia também


Material do El País (em espanhol)


Morre o escritor argentino Ernesto Sabato– Soledad Gallego-Díaz


‘Me chamo Ernesto’– Ernesto Sabato (excerto do livro de memórias Antes do fim (1999).


Lembranças do homem que se encontrava com os anônimos– Juan Cruz


‘Há que nomear a verdade’– Ernesto Sabato


A literatura como mal-estar no mundo– J. Ernesto Ayala-Dip


‘Que se lembrem de mim como uma pessoa às vezes rabugenta, mas um bom sujeito’– S.G-D.


Fotogaleria– Uma vida de quase 100 anos

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Jornalista