Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Carlos Eduardo Lins da Silva

‘No mês que vem o cargo de ombudsman neste jornal completa 20 anos. Poucos outros veículos de comunicação no Brasil resolveram adotá-lo. Pelo mundo, embora presente em dezenas de países, também é coisa de poucos. Por causa da crise, até nos EUA, onde mais se disseminou, teme-se que seja espécie em risco de extinção.

Nesta semana, aqui e lá, publicaram-se artigos em veículos importantes sobre a utilidade da função. No site Observatório da Imprensa, que Alberto Dines, precursor da ideia nesta mesma Folha nos anos 1970, criou e lidera, dois artigos inteligentes e bem escritos, de Maurício Caleiro e Celso Lungaretti, questionam a sua necessidade. Acham que esta é uma posição decorativa, que dela nada resulta. Em sua visão, críticas feitas na coluna não resultam em mudanças na Redação.

Nos EUA, o editor-executivo do ‘New York Times’, Bill Keller, em entrevista ao ‘Los Angeles Times’, revelou que se discute internamente a conveniência de manter o ‘editor público’ (como chamam o ombudsman) após o fim do mandato do atual, em 2010.

Em resposta, o editor da ‘American Journalism Review’ escreveu: ‘Este tipo de autocrítica [do ombudsman] manda mensagem poderosa ao público. Ela diz que somos suficientemente grandes para encarar os nossos erros. E diz que estamos conscientes de que devemos explicações’.

Há quem não entenda a função do ombudsman. Se ele não tem poder para impor seu pensamento à Redação e obrigá-la a agir como acha certo, qual é a sua utilidade? Não posso negar que experimente frustração vez ou outra ao ver minhas sugestões e linha de raciocínio ignoradas. Mas, como me disse uma leitora, quando a Redação segue a direção aqui proposta, a valia da mudança é muito grande por ser produto da força do convencimento, não da coerção.

Mesmo que nunca a Redação acatasse as opiniões do ombudsman, ainda assim ele teria um papel importante. Duas analogias ao seu trabalho me ocorrem: a do mito grego de Cassandra e a do personagem Grilo Falante, do clássico da literatura infantil ‘As Aventuras de Pinóquio’, de Carlo Collodi, ambos muito bem analisados no brilhante livro indicado ao pé deste texto.

Cassandra recebeu de Apolo o dom de prever acontecimentos com a condição de que ninguém acreditasse nela. O Grilo faz o papel de consciência crítica, alter ego, do boneco que vira gente. Ambos suscitam dúvidas. Como o ombudsman também deve fazer, tanto entre jornalistas quanto entre leitores. Ele não é juiz: é um cobrador, como diagnostica certeiramente Alberto Dines. Juiz é o leitor, que decide o que fazer depois de ler as cobranças do ombudsman. E o jornalista também, que resolve se vai mudar de rumo ou não após ler suas ponderações.

É pouco? Não acho. Num mundo em que as certezas têm feito tanto mal às pessoas, espalhar dúvidas pode ser uma bênção. Além disso, o ombudsman encaminha, muitas vezes com sucesso, casos concretos e específicos de erros factuais, sugestões de pauta, direito de resposta, que não precisam ser alardeados. E contribui para a reflexão sobre o papel do jornalismo na sociedade.

Às vezes obtém êxito na adoção de procedimentos técnicos recomendados nas críticas, talvez nem percebidos conscientemente pelos leitores, que no entanto ainda assim se beneficiam deles.

Seu objetivo deve ser tentar satisfazer a necessidades específicas de todos os leitores, não a todas as necessidades de leitores específicos. Muitos ficam insatisfeitos. Principalmente os que anseiam por alterações nas grandes linhas editoriais. É natural. Mas Cassandras, grilos e alter egos só têm valor quando são atendidos?

PARA LER

‘À Mesa com o Chapeleiro Maluco’, de Alberto Manguel, tradução de Josely Vianna Baptista, Companhia das Letras, 2009 (a partir de 35,55)

PARA VER

‘O Sonho de Cassandra’ (a partir de R$ 24,90), 2007, e ‘Poderosa Afrodite’ (a partir de R$ 12,90), 1995, ambos de Woody Allen’

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‘Onde a Folha foi bem…’, copyright Folha de S. Paulo, 9/8/09.

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