MÍDIA & LITERATURA
O leve paquiderme, 28/11
‘De escritor comunista em certo momento censurado no próprio país a astro pop, com filme, exposição, livros e sítios multimídias, o português José Saramago alcançou ao longo das últimas décadas obras-primas e até a maior láurea literária do planeta, o Prêmio Nobel. Aos 86 anos, completados no último dia 16, recém-recuperado de uma doença que quase lhe tirou a vida, o jovial escritor lança novo romance, A viagem do elefante, cuja apresentação se dá esta semana no Brasil. Em São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake, está sendo aberta hoje a mostra A consistência dos sonhos, sobre a trajetória dele. Enquanto isso, o filme Ensaio sobre a cegueira, adaptado por Fernando Meirelles de seu livro de maior impacto e estrelado por nomes do cinema internacional, segue trajetória de sucesso – em Brasília, está em cartaz desde 12 de setembro, agora em cinco salas.
A viagem do elefante foi escrito por Saramago em meio à doença – ele chegou a duvidar de que conseguisse terminá-lo. Nem por isso o resultado soa pesado ou denso, como algumas de suas obras mais pessimistas. Aqui, inspirado por uma história que ouviu em Salzburgo, o escritor reinventa a trajetória (literalmente) de um elefante doado pelo rei de Portugal, dom João III, ao arquiduque de Viena, em 1551. O caso lhe foi passado na terra de Mozart pela estudiosa Gilda Lopes Encarnação quando almoçavam juntos no restaurante O Elefante. Diante de pequenas imagens que representavam o animal ao lado de monumentos típicos de cidades européias, como a Torre de Belém, Saramago não resistiu e anunciou à anfitriã que aquilo dava livro. Deu.
Na novela (que ele chama conto na capa do livro), acompanhamos a história desde a doação do paquiderme por Sua Majestade até a chegada do animal ao destino, Viena, meses depois. Como sempre, o enredo serve de pano de fundo para estudos e comentários sobre a natureza humana – seja por meio de personagens humanos, seja pelo próprio animal. Não à toa, aqui ele tem nome: Salomão, depois mudado pelo arquiduque para Solimão. Seu tratador (ou cornaca, que quer dizer aquele que vai em cima do elefante) é um indiano, Subhro, cujo nome significa Branco, mas que também o austríaco altera, para Fritz.
O rei, a rainha, o cornaca, o arquiduque, a composição da caravana que atravessará Portugal, Espanha e Áustria, com militares, trabalhadores braçais, religiosos e gente das populações pelas quais passa a viagem, o frio, a neve, os percalços são os personagens que permitem a Saramago, como sempre, fazer reflexões – ainda mais bem-humoradas -, em que tempos se misturam sem cerimônia e conceitos distantes do ambiente seiscentista servem de chiste ou filosofia, indiscriminadamente. Não é preciso dizer que, na obra de um mestre como o Nobel português, tudo vira ouro. E A viagem do elefante serve para conduzir o leitor por caminhos deliciosos da história, da palavra, do idioma.
Por e-mail, José Saramago respondeu a algumas perguntas do Correio Braziliense.
O senhor optou por uma narrativa mais leve em A viagem do elefante? Ou, por trás das aventuras de Salomão e Subhro pela Europa medieval estão presentes os mesmos questionamentos sobre a natureza humana de seus romances anteriores?
Não se tratou de uma opção. As histórias são diferentes umas das outras e cada uma requer o tom que melhor se lhe ajuste. Foi o caso de A viagem do elefante, que, não perdendo nenhuma das preocupações que me são próprias, quer como homem, quer como escritor, se serve do humor talvez para melhor alcançar os seus fins.
Fama, sucesso, prêmios, avanços tecnológicos… O prazer de escrever permanece o mesmo? O senhor sofre expectativas quanto à recepção de um novo trabalho?
O prazer é o mesmo e creio que este último livro o prova. Quanto a sofrer expectativas, já estou demasiado calejado para isso.
Como analisa a chegada à Casa Branca de um democrata pacifista, de origem liberal e multirracial? Leva fé em que Barack Obama represente avanços nas relações entre os Estados Unidos e o mundo?
Não poderá fazer tudo quanto prometeu e muito menos tudo quanto terá na cabeça, mas não há dúvida de que uma luz nova se acendeu nos Estados Unidos, luz que, sendo agora conduzida por um homem, foi alimentada pelo esforço e pelo sacrifício de milhões de mulheres e homens que sofreram na pele e no espírito o crime que foi a segregação racial.
Como avalia o impacto da atual crise econômica global sobre o perfil do capitalismo que domina o mundo? Há esperança de menos ferocidade nas relações entre dominantes e dominados?
Se o Estado desempenhar o papel que sempre deveria ter sido o seu, é possível que entremos numa era diferente. Com a condição de que os cidadãos se armem de espírito crítico, de poder de vigilância, de capacidade de denúncia dos abusos. As coisas são demasiado sérias para ficarem entregues às mãos de uns quantos políticos.
O que pode a literatura contra a barbárie em que vive o planeta? O senhor acha que as novas gerações estão conscientes de seu papel?
A literatura não pode nada. Se o pudesse, os problemas do mundo já estariam certamente resolvidos, incluindo a barbárie a que se refere, tantas são as grandes obras que herdámos do passado. Sobre as novas gerações, apraz-me dizer que em Portugal muitos jovens estão regressando à literatura de qualidade.
O que acha da produção literária brasileira contemporânea? E da produção em língua portuguesa no mundo?
Não a conheço bem. Houve um tempo em que conhecíamos a literatura brasileira quase tão bem como a portuguesa. O Brasil deveria ajustar a sua política cultural externa em ordem a recuperar o prestígio do passado. A responsabilidade principal é dos editores e dos distribuidores, mas um incentivo oficial é sempre bem acolhido. No que nos respeita, os escritores portugueses, incluindo os mais jovens, são cada vez mais conhecidos no estrangeiro.’
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Folha de S. Paulo