A cobertura jornalística da devastação que a passagem do furacão Katrina causou em Nova Orleans revelou uma séria situação de pobreza e uma grave falha no sistema de diques que protegiam a cidade, construída, em grande parte, abaixo do nível do mar e cercada por um rio e um lago. Os dois problemas, entretanto, não são novos. O editor-público do New York Times, Byron Calame, criticou o jornal [11/9/05] por não ter dado a devida atenção a eles antes que estourassem. Segundo Calame, um jornal nacional do porte do Times deve ser responsável por alertar seus leitores sobre eventuais e sérios problemas sociais e estruturais quando eles surgem em grandes cidades.
O nível de pobreza em Nova Orleans se mostrou tão alto a ponto de prejudicar o processo de evacuação da cidade. Como tem sido noticiado pela imprensa americana e do resto do mundo, muitas pessoas não conseguiram deixar Nova Orleans simplesmente porque não tinham um carro para levá-las. Para piorar, grande parte da população pobre vivia nas áreas baixas, onde a água invadiu primeiro e subiu mais. Hoje, os jornais repetem exaustivamente que mais de dois terços da população de Nova Orleans é negra e que um em cada quatro habitantes vive na pobreza. O próprio Times enfatizou que, em um dos bairros mais baixos e, conseqüentemente, mais atingidos pela enchente, 98% dos moradores são negros e mais de um terço é pobre. Do mesmo modo, as imperfeições do sistema de diques da cidade eram sabidas há tempos por especialistas.
Ainda assim, o prévio conhecimento destes dados não ajudou na prevenção da catástrofe ou no socorro às vítimas. Com isso em mente, Calame fez uma pesquisa nos arquivos dos últimos 10 anos do Times – o que, segundo ele, levantou ‘sérias questões sobre o quão bem o jornal ajudou os leitores a reconhecer e entender estes dois grandes problemas que constituíram a devastação e a tragédia depois da tempestade’.
Foram pesquisadas matérias jornalísticas sobre Nova Orleans desde setembro de 1995. A grande maioria fala do charme, da culinária e do festivo ambiente colorido da cidade. Entre as matérias, entretanto, não há nenhuma específica sobre a pobreza ou a dimensão racial da pobreza em Nova Orleans. Apenas dois textos contêm poucos parágrafos sobre pobreza e raça.
Um deles, datado de 2000, descreve vividamente a presença da pobreza na cidade, que diz parecer mais com um cenário de país de terceiro mundo do que com a moderna América. O artigo fala sobre a clara relação entre pobres e negros, descreve suas precárias condições de vida e ressalta que grande parte desta pobreza é herdada. Todas estas informações, entretanto, estão concentradas no 16º parágrafo de um texto de 3.700 palavras.
Em 1996, um perfil de um superintendente de polícia da região ressalta que Nova Orleans é a segunda maior grande cidade dos EUA em número de habitantes pobres. O artigo sugere ainda que os guetos de Nova Orleans ‘vem sendo ignorados por décadas porque, apesar de políticos negros comandarem a prefeitura desde 1978, afro-americanos nunca quebraram o poderio econômico dos brancos’. Mais uma vez, a informação não recebeu lugar de destaque: 12º parágrafo de um texto de 3.400 palavras.
Sobre os diques, o Times publicou apenas uma reportagem, em 2002, na seção de Ciência. O artigo deixou claro que um furacão da categoria 4 ou 5 jogaria água por cima dos diques. Um editorial do mesmo ano explicava detalhadamente o problema, baseado no caso de Nova Orleans. Mas nenhum dos dois textos, ressalta Calame, preparou os leitores para a possibilidade de ruptura dos diques.
Com os resultados da pesquisa, o ombudsman sentencia: ‘Dadas as dimensões da pobreza em Nova Orleans e a dependência da cidade em um sistema de diques, a cobertura jornalística do Times sobre estes problemas na última década é inferior ao que os leitores têm o direito de esperar de um jornal nacional’.
Fontes identificadas sem identificação
O uso de fontes anônimas na imprensa tem sido bastante discutido ultimamente. Segundo a política do New York Times, os jornalistas devem dar aos leitores o máximo de informação possível que justifique o uso destas fontes, e suas motivações. O ombudsman do Times nada contra a corrente e faz uma crítica ao uso das fontes identificadas. Calame afirma que muitas destas fontes têm aparecido nas páginas do jornal sem informações importantes para que os leitores compreendam o porquê delas estarem ali. Ele dá o exemplo de uma matéria de maio deste ano, sobre a adoção de uma lei em Nova York que determina que, em certos locais públicos da cidade, haja uma relação de dois banheiros femininos para cada masculino.
Este artigo trazia uma citação de John F. Banzhaf III, identificado como professor de legislação de interesse público da Universidade George Washington que havia ‘estudado o assunto’. Na citação, o professor elogiava a iniciativa da paridade dos banheiros e destacava que era importante que ela fosse implementada em Nova York, pois é um lugar onde normalmente as novas tendências são criadas e, a partir daí, copiadas.
Calame afirma que dizer que Banzhaf havia ‘estudado o assunto’ fazia parecer que o professor era um especialista qualquer que concedia uma opinião isenta sobre ele. Pelo contrário, ele é o autor de pelo menos uma reclamação formal ao Departamento de Educação sobre um banheiro público em um campus universitário e já foi chamado de ‘pai’ da idéia da paridade dos banheiros públicos. Segundo o ombudsman, os leitores mereciam saber disso.