“A manchete da edição de anteontem do PÚBLICO — ‘Sporting forrou acesso a balneário com imagens que exaltam violência’ — agitou os meios futebolísticos e jornalísticos na véspera de um encontro (ainda não disputado à hora a que escrevo) entre aquele clube e o FC Porto. O título e a fotografia que dominavam a capa do jornal remetiam para uma peça assinada pelo jornalista Hugo Daniel Sousa, na qual se revelava que o corredor de acesso aos balneários utilizados pelas equipas visitantes no estádio de Alvalade fora decorado com ‘imagens hostis’ de ‘adeptos em poses agressivas’.
Essas imagens de claques do Sporting foram parcialmente reproduzidas nestas páginas e descritas como exibindo ‘gestos de conotação fascista’ e símbolos ‘conotados’ com ‘a extrema-direita’. Uma fotografia do repórter Miguel Manso mostrava que a grande dimensão dos painéis decorativos em causa domina claramente o espaço reservado à passagem das equipas adversárias do clube lisboeta. A peça de Hugo Daniel Sousa recolhia os depoimentos de várias personalidades — do presidente do Conselho para a Ética e Segurança no Desporto a especialistas em direito desportivo —, unânimes na forte condenação da atitude dos dirigentes do clube lisboeta que terão promovido ou autorizado uma iniciativa que, segundo um dos juristas ouvidos, pode ser vista como uma forma grave de ‘coacção moral’ sobre os futebolistas que se deslocam a Alvalade para enfrentar a equipa do Sporting.
A polémica provocada por esta manchete fez-se sentir de imediato nas caixas de comentários do PÚBLICO on line, onde as reacções se dividiram entre as que assinalavam a relevância da divulgação de um caso grave de falta de fair play por parte de responsáveis desportivos e as que, por outro lado, acusavam o jornal de ter empolado uma questão menor, vendo fantasmas no que seriam simples ‘fotos de claques em festa’. Entre as reacções negativas predominava a crítica ao ‘timing da publicação da notícia’, com alegações de que a sua divulgação na véspera do encontro entre o Sporting e o FC Porto visaria perturbar o ambiente em torno do jogo, podendo mesmo contribuir para a ocorrência de eventuais incidentes.
Foi essa, também, a reacção da direcção do Sporting, que considerou ‘insidiosa’ e ‘tendenciosa’ a notícia do PÚBLICO, afirmando que ‘parece [ter sido] feita com o claro propósito de incendiar ânimos e provocar polémicas inúteis em véspera de um clássico’. Em comunicado divulgado na sexta-feira, o clube sustentava ainda que as imagens escolhidas para os painéis fotográficos colocados no acesso aos balneários teriam sido ‘aprovadas’ e ‘elogiadas’ no quadro das vistorias efectuadas ao estádio pela Liga de Clubes e pela UEFA. Esta afirmação foi entretanto desmentida numa segunda peça assinada por Hugo Daniel Sousa, que cita para o efeito uma ‘fonte da Liga’ e um ‘porta-voz da UEFA’, embora sem referir os seus nomes, como seria desejável.
As duas linhas de crítica à manchete de anteontem — ao seu conteúdo e à sua oportunidade — estão sintetizadas numa mensagem que recebi do leitor Ricardo Wolffensperger Ferreira. Quanto ao conteúdo, o leitor considera que a notícia ‘deixa muito a desejar’ no plano da ‘objectividade’, já que, entre ‘inúmeras fotografias expostas’ nos corredores do estádio, só são referidas ‘as que incitam à violência’, facto que vê como uma ‘abordagem’ do caso pelo lado da ‘opinião’, e não da informação. Quanto à oportunidade, Ricardo Ferreira escreve: ‘Tal como é referido no próprio artigo (…), as fotografias em questão existem nos corredores dos balneários do Sporting Clube Portugal desde Agosto. A verdade é que já lá vão quatro meses e, apesar de muitas equipas já lá terem passado, ainda de nada se tinha ouvido falar… Interrogo-me porquê só agora [é] divulgada esta notícia. Será que (…) foi publicada hoje [6 de Janeiro] por ser véspera de um clássico Sporting Clube Portugal — Futebol Clube do Porto?’. E conclui, parafraseando o título da capa, que a peça do PÚBLICO, não mostrando em seu entender ‘a realidade dos factos como um todo’, ‘exalta mais à violência’.
Jorge Miguel Matias e Nuno Sousa, editores do Desporto, responderam, em conjunto com o autor do texto, às críticas e interrogações do leitor. Recusam que tenha existido uma abordagem opinativa: ‘As únicas opiniões veiculadas no artigo são as de dois membros do Conselho para a Ética e Segurança no Desporto. Já o jornalista limitou-se a descrever os factos. Quanto às imagens, foram publicadas as que têm o registo de hostilidade e que as torna notícia. (…). Uma delas, como é aliás visível, ocupa uma larga extensão de parede’.
A questão da oportunidade merece uma explicação mais extensa. Hugo Daniel Sousa e os dois editores negam a relação sugerida entre a data de publicação da notícia e o jogo de ontem no estádio de Alvalade. Escrevem: ‘A notícia foi publicada quando o jornal teve a certeza de que a informação a que tinha tido acesso (dias antes) era verdadeira (as fotos encontravam-se mesmo colocadas e tinham mesmo o teor que se supunha). Fomos comprovar e quando tivemos essa comprovação publicámos. (…) Não olhamos para o calendário para a publicação das notícias. (…) Não nos move o interesse particular deste ou daquele clube. Move-nos apenas o interesse público’. Finalmente, ‘quanto ao facto de as imagens estarem colocadas desde Agosto e só agora a notícia ser publicada’, notam que o próprio leitor responde à dúvida ‘quando refere que ainda não se tinha ouvido falar’ do caso: ‘Por isso é que só agora foi publicada. Porque só agora tivemos conhecimento da informação’.
Não vejo qualquer bom motivo para duvidar deste esclarecimento. Ficam claros, e são correctos, os passos dados pelo jornal para comprovar a informação que obteve. A crítica ao timing da notícia não passa neste quadro de um processo de intenção. A sugestão de que a denúncia de uma iniciativa vista como legitimadora de comportamentos incivis é ela própria provocadora de violência deve ser classificada como absurda e contrária à ideia do jornalismo como serviço público.
É verdade que não faltam casos, na comunicação social portuguesa, de difusão de matérias sem valor informativo (rumores, especulações, empolamento de declarações incendiárias de agentes desportivos) exploradas numa lógica sensacionalista em vésperas de confrontos futebolísticos de maior relevo. São práticas condenáveis e susceptíveis de acirrar de facto, gratuitamente, as paixões tribais em torno do futebol. Não devem ser confundidas com o jornalismo sério. Num caso como este, tratando-se de uma notícia nova, verdadeira e relevante, a questão da oportunidade não se coloca nos termos referidos na queixa que recebi. A informação deve ser publicada logo que esteja verificada, completa e tratada de acordo com as regras profissionais. Aliás, mesmo não tendo o calendário futebolístico sido determinante neste caso, é compreensível, à luz da lógica jornalística, que seja valorizada a sua difusão (através do destaque que lhe é dado) numa altura em que a agenda noticiosa contribua para captar uma maior atenção dos leitores.
Quanto à relevância dos factos noticiados, não creio que mereça discussão. Se um grande clube decide acolher os seus adversários entre imagens que muitos considerarão — como consideram os responsáveis desportivos ouvidos pelo PÚBLICO —, uma forma pouco subtil de intimidação, numa época em que a cultura de agressividade das claques futebolísticas se tornou um problema real de segurança pública, é óbvio que o facto deve ser dado a conhecer aos leitores.
Justifica-se, igualmente, que tenham sido destacadas as imagens que o próprio leitor Ricardo Ferreira concorda que ‘incitam à violência’. São elas, afinal, o objecto da notícia. O trabalho publicado não mistura informação e opinião. Ao lado do texto noticioso, que relata os factos, foi publicada, com clara distinção gráfica e a indicação de que se tratava de um comentário, uma nota assinada por Jorge Miguel Matias. Esse sim, é um texto opinativo e uma crítica legítima ao que o editor do PÚBLICO chama — e será difícil discordar com seriedade — ‘a falta de bom gosto e de bom senso de quem decidiu colocar aquelas imagens nas paredes que recebem os adversários do Sporting’. A opinião de que quem o fez prestou ‘um mau serviço ao desporto’ e ao próprio clube foi retomada no editorial de ontem, em que a opção do jornal é explicada: ‘Ao revelar as fotografias após as poder captar, o PÚBLICO procurou contrariar a condescendência com que tantas vezes se acolhe o extremismo das claques’. A meu ver, fez muito bem.
Poderão discutir-se questões de grau. Se a expressão utilizada na manchete (‘…imagens que exaltam a violência’) é ou não excessiva para caracterizar, no conjunto, a peculiar decoração dos corredores de Alvalade. Se a ênfase dada à ‘conotação fascista’ é ou não exagerada face ao que é descrito. Poderá discutir-se, enfim, uma questão de proporção: o caso justificava uma manchete? Era esse o tema mais importante do dia para o conjunto dos leitores, ou pesou demasiado o facto de se tratar de uma informação exclusiva que se quis, naturalmente, valorizar? Este é um domínio em que sensibilidades diferentes darão sempre respostas diversas: é o risco diário de quem tem que tomar as decisões editoriais num jornal, e que cada leitor julgará de acordo com a sua própria sensibilidade.”