“A arte de redigir um título é um talento particularmente apreciado nas redacções dos jornais. Um título bem construído, apelativo quanto baste para suscitar interesse ou curiosidade, é meio caminho andado para convidar à leitura de uma peça jornalística. Para desempenhar bem esse papel, deve também cumprir as exigências do rigor profissional, a começar pela regra de ser totalmente fiel ao texto que encabeça. Os títulos descritivos que o PÚBLICO privilegia nas peças noticiosas — e mesmo os de cariz mais interpretativo, quando as circunstâncias o justificam — não podem dizer ou sugerir o que as notícias não dizem, sob pena de se tornarem enganosos ou, no limite, manipulatórios.
Equilíbrio, clareza, relevância e novidade são outras virtudes de um título correcto e eficaz, que deve levar o leitor a aperceber-se de imediato do conteúdo essencial de uma notícia. Às dificuldades que podem surgir para articular esses requisitos em frases simples e escorreitas acresce o obstáculo frequentemente constituído pelos modelos gráficos adoptados na imprensa. A limitação resultante da existência de um número máximo pré-definido de ‘batidas’ (letras e espaços entre palavras) é um desafio constante para os editores, que nem sempre é superado de acordo com as melhores práticas de titulagem.
Quando isso acontece, o resultado pode ser um título críptico ou enviesado, ou desrespeitador do conteúdo da notícia. Ou ainda, mais frequentemente, e devido à preocupação em economizar caracteres, um pontapé na gramática e na integridade da língua, como exemplificam alguns casos anteriormente referidos neste espaço. Felizmente, o novo grafismo do PÚBLICO parece ter aliviado alguma rigidez excessiva neste domínio. Resta verificar se é suficiente para libertar os autores de alguns títulos de um esforço de compactação que não poucas vezes desfigura a escrita e se revela tão interiorizado que surge a inspirar títulos deficientes na própria edição on line, em que não é necessário torturar as frases para economizar caracteres.
Entre os vários motivos que podem concorrer para um título defeituoso — e poderia acrescentar-se, entre outros inimigos do rigor, a tentação nem sempre contida de recorrer a terminologias e fórmulas contaminadas pela linguagem da publicidade ou da propaganda —, o que tem vindo a avultar nas reclamações que me chegam, fruto do escrutínio de leitores mais atentos e exigentes, é o que se prende com eventuais falhas no cumprimento da regra que referi em primeiro lugar: os títulos devem ser fiéis aos textos que encabeçam.
Entre alguns exemplos recentes, começo por citar um título de capa da edição do passado dia 7: ‘Fim das reformas antecipadas só para admitidos após 2005″. Sucede que a decisão governamental que se pretendia noticiar — anunciada, como se sabe, sem aviso prévio — foi a de suspender esse regime, e não de o extinguir (não é a mesma coisa, por muito compreensível que seja a suspeita de que a suspensão de certos direitos sociais signifique, para quem decide, um prelúdio da sua supressão).
Pior, nada no título e na chamada de primeira página indicava que a referência aos ‘admitidos após 2005″ tinha por alvo apenas os trabalhadores da função pública. É certo que ambos esses dados informativos estavam contidos na notícia dedicada ao tema na página 13 dessa edição, e aí correctamente destacados em título. O que não retira gravidade ao facto de, como escreve o leitor João Cunha Serra, de Lisboa, ‘a chamada (…) que, como tudo o que se escreve na primeira página, tem como uma das funções principais atrair leitores para o jornal, dar a entender, enganosamente, que a suspensão das reformas antecipadas apenas se aplicaria aos trabalhadores admitidos após 2005, isto é, a todos os trabalhadores nessas condições’.
O leitor José Pinto Mendes, de Coimbra, criticou por seu lado o título escolhido para a entrevista ao ex-ministro Correia de Campos (edição da passada segunda-feira, páginas 10 a 12): ‘Não faz sentido nenhum encerrar a nossa melhor maternidade’. Uma frase obviamente escolhida pela sua actualidade — decorriam já os protestos contra a intenção anunciada pelo Ministério da Saúde de vir a fechar a Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa—, mas que o leitor considera não traduzir fielmente as declarações do actual eurodeputado socialista e o seu pensamento sobre o tema, que aliás foi explicitado com clareza em artigo assinado pelo próprio no dia seguinte, na sua coluna semanal de opinião no PÚBLICO.
De facto, a declaração de Correia de Campos, transcrita na entrevista, fora a seguinte: ‘ A MAC tem de ser integrada num hospital central. Mas, neste momento, sem estar construído o Hospital de Todos-os-Santos (Oriental de Lisboa), não tem sentido nenhum encerrar a nossa melhor maternidade’. E, mais adiante, defendendo a importância da abertura desse novo estabelecimento de saúde: ‘A MAC deve ser transportada para o hospital de Todos-os-Santos’. Na opinião do leitor, ao isolar uma parte da declaração do ex-ministro e destacá-la em título, ‘despida de contexto’, o PÚBLICO terá pretendido ‘colar o Dr. Correia de Campos aos compreensíveis movimentos emocionais pró-MAC, o que, rigorosamente, não é verdadeiro’, já que este concordaria com a ideia de que ‘os serviços de obstetrícia devem ser integrados numa unidade com todas as valências médico-cirúrgicas’, entendendo no entanto que ‘este não é o momento’ para o fazer.
Miguel Gaspar, director adjunto do jornal e um dos autores da entrevista, afirma que a escolha do título não decorreu de ‘um desejo de colagem de Correia de Campos a movimentos mais emocionais relativamente ao fecho da MAC’, mas sim ‘do facto de o entrevistado divergir objectivamente da estratégia do encerramento da MAC tal qual ela foi formulada’, o que foi considerado ‘um contributo relevante para o debate em curso’. Menos sólido do que esta explicação, que responde ao que na reclamação de José Pinto Mendes pode ser visto como um processo de intenção, parece-me ser o seu argumento de que, na óptica do político entrevistado, a MAC afinal ‘não encerraria’, pois ‘seria transferida com armas, bagagens e equipas para um hospital, em vez de as suas equipas serem distribuídas por vários hospitais’. A conclusão é forçada: se decorre das explicações do ex-ministro que é essa realmente a sua visão do problema, continua a ser um facto que o que Correia de Campos disse não foi que a maternidade não deveria vir a fechar, mas sim que não deveria ser encerrada ‘neste momento’ (ou ‘a curto prazo’, como escreveu no dia seguinte), antes da construção do novo hospital. Ao rasurar esse elemento determinante, o título da entrevista não é, de facto, rigoroso.
Uma distorção mais evidente do conteúdo de declarações políticas que, pela sua relevância, se tornam notícia, pôde encontrar-se na página 6 da edição da passada sexta-feira, 19.04, no título ‘Passos classifica ameaça da UGT de denunciar acordo de concertação social como brincadeira do 1º de Maio’. O primeiro-ministro português tinha procurado desvalorizar na véspera, em Londres, a posição daquela central sindical — que exige ao governo o cumprimento dos compromissos assumidos para a tomada de medidas favoráveis ao crescimento económico e ao emprego—, com o seguinte comentário, citado na notícia do PÚBLICO: ‘Penso que a data do 1º de Maio pode gerar algum tipo de debate a nível doméstico, mas nós estamos a implementar o programa num processo de consenso’.
Pense-se o que se pensar do comentário de Passos Coelho — por exemplo, que é ofensivo para os seus parceiros na concertação social, que é deslocado na boca de um governante ou até que demonstra uma arrogância nociva para o proclamado interesse em manter o que chama ‘processo de consenso’ —, a verdade é que o primeiro-ministro não falou de ‘brincadeira’. O que se descreveu no título como sendo factual não tem fundamento na notícia publicada. É abusivo e enganador. O conceito estranho e pouco sério de ‘brincadeira do 1º de Maio’ é no caso da exclusiva responsabilidade do PÚBLICO, onde deveria saber-se que a data tradicionalmente comemorada pelos sindicatos não se confunde com o 1 de Abril ou com o Carnaval.”