“Atraído pela frase ‘Ana Brasil, a editora Life&Style, mostra-lhe quatro formas de usar um lenço que pode aplicar a diferentes ocasiões e estados de espírito’ (numa chamada de última página da edição do passado dia 13 de Maio), o leitor Firmino Monteiro consultou pela primeira vez o espaço Life&Style, que oPÚBLICO define como um dos sites–satélite da sua edição on line.’
‘A editora da referida secção’, descreve em mensagem que me enviou uns dias depois, ‘exibe, num vídeo de 3 minutos e 26 segundos de duração, os seus dotes de especialista em dar nós diferentes a um lenço na cabeça, assumindo, tal como prometia a nota, um visual diferente em cada uma das formas de colocar o lenço. Diferenças que são substancialmente acentuadas pelo uso de óculos de sol também diferentes em cada posição do lenço’.
O vídeo em questão encontra-se desde 8 de Maio na secção intitulada ‘Conselhos’ do espaço Life&Style, e é acompanhado de uma ‘ficha de produção’ que inclui a designação comercial, o preço e um dos locais de venda do lenço exibido, de quatro pares de óculos diferentes e ainda do ‘macacão’ envergado pela protagonista.
Apesar de ter achado ‘interessante’ o ‘resultado estético do exercício’, o leitor manifesta a sua ‘perplexidade’ pelo facto de a personagem filmada ‘estar identificada como editora da secção’. Considerando que no vídeo em questão ‘se promovem produtos comerciais’, pergunta se ‘o termo editora está aqui usado como é comummente aceite’ ou se a secção Life&Style ‘é feita por gente sensível às modas, mas insensível às normas éticas da profissão de jornalista’.
Antecipando a resposta — ‘Partamos do princípio que num jornal como o PÚBLICO, quando se identifica alguém como editora, é porque essa pessoa tem responsabilidades editoriais, logo é jornalista sénior, com poderes delegados para tomar decisões de publicar ou não matérias informativas’ —, Firmino Monteiro lança em seguida um conjunto de questões: ‘Deve uma jornalista (ainda por cima editora) ser protagonista de uma exibição de produtos de moda? (…) Ser o sujeito de uma promoção de produtos comerciais, no caso um lenço e quatro pares de óculos? Pode (…) aconselhar o uso de produtos comerciais cuja marca e preço aparecem por baixo do vídeo, tal como as lojas onde podem ser adquiridos, (…) sem incorrer na violação das normas por que se rege o Estatuto do Jornalista? Pode (…) manter a carteira profissional — assumindo que possui tal título — depois de ter promovido desta forma descarada produtos comerciais?’. E interroga ainda: ‘ Ou acharão os responsáveis do PÚBLICO que um simples vídeo numa obscura (?) secção do on line se pode eximir ao cumprimento das regras deontológicas que regulam a profissão de jornalista?’.
Enderecei estas questões à directora do jornal. Bárbara Reis começa por notar que ‘o Life&Style é tudo menos uma secção obscura’: ‘Este mês, teve 300 mil visitas únicas e mais de três milhões de pageviews, um dos melhores números de sempre na sua curta vida (10 meses). Tem sete secções, uma delas, Moda. Ana Brasil é a editora do site, ou seja, é a responsável por todos os seus conteúdos. Como tantos editores de sites semelhantes em jornais de referência internacionais, Ana Brasil faz shoppings, ou seja, sugestões de compras’.
‘Este vídeo específico’, acrescenta a directora, ‘era no entanto mais do que isso. Era sobre como se pode criar quatro looks diferentes com um único lenço. Um vídeo prático que tem como objectivo aconselhar os leitores e assim prestar um serviço. Não é uma notícia, é informação. No caso, informação útil. O antetítulo do vídeo diz ‘conselhos’, ou seja, o leitor sabe que ali encontrará não uma notícia, mas um conselho. Neste site–satélite, o leitor encontra conselhos sobre sexo, arrumação de armários, educação, aplicação de maquilhagem, receitas, etc.’.
‘Não vemos diferença’, defende ainda Bárbara Reis, ‘entre recomendar um vinho no site–satélite Fugas, recomendar a compra de um CD duplo de ópera no Ípsilon ou mostrar como pôr um lenço na cabeça – uma acção que exige, aliás, alguma arte e capacidade de comunicação, como o vídeo prova. (…) É o Ípsilon, o nosso suplemento cultural, um ‘veículo de promoção comercial’, como diz o leitor sobre o Life&Style? Acreditamos que não. No entanto, todas as semanas, os leitores procuram no Ípsilon a opinião dos nossos especialistas sobre os últimos livros, discos e dvd acabados de chegar ao mercado. Na revista 2, que sai aos domingos, temos agora uma secção de 4 páginas nas quais fazemos recomendações. (…) São textos dos nossos críticos e jornalistas sobre livros, discos, concertos, etc., que ao lado incluem uma ficha com o nome, morada e preço dos produtos recomendados. Fazemos isso há anos. Numa perspectiva mais conservadora, isto pode também ser visto como ‘promoção comercial’. Não é essa a nossa visão’.
Não discutirei aqui as questões dirigidas à jornalista e editora (sim, Ana Brasil é jornalista e integra a lista dos detentores do título profissional). O Estatuto do Jornalista, referido pelo leitor, é um diploma legal que prevê as incompatibilidades para o exercício da profissão — à cabeça das quais ‘as funções de angariação, concepção ou apresentação de mensagens publicitárias’ — e existe, para a análise dos casos de eventual incompatibilidade, um órgão próprio de regulação. Para a direcção do PÚBLICO, como ficou claro, esse é um problema que não se põe: o Life&Style é definido como um espaço editorial, e as peças aí publicadas como uma modalidade específica de jornalismo.
Para o que aqui importa, o debate sobre eventuais zonas de ambiguidade entre jornalismo e publicidade deve ser feito no quadro da relação de confiança dos leitores para com o jornal. Um pressuposto essencial dessa confiança é a presunção de total independência do jornal e dos seus jornalistas face a interesses comerciais ou outros. Cabe aos leitores julgar, à luz das regras que o PÚBLICO livremente assumiu para si próprio, se a recomendação de determinados produtos, num espaço próprio, é susceptível de afectar, pela forma ou pelo conteúdo, essa relação de confiança.
Peças como o vídeo do lenço e dos óculos não são jornalismo. São informação, que poderá interessar a muitos leitores, mas não obedecem às regras do jornalismo. O que não significa que não tenham lugar no jornal. Pelo contrário. Quando os critérios de qualidade, independência e espaço próprio estão assegurados, as recomendações sobre determinados produtos ou serviços podem até ser vistas como próprias de um jornal de referência. Embora possam funcionar também, objectivamente, como uma forma de promoção comercial, não se confundem com publicidade, que por definição é remunerada. Por isso é fundamental garantir — e isso cabe à direcção do jornal — que quem redige recomendações desse tipo não possa retirar do que escreve qualquer contrapartida ou benefício material ligado aos produtos ou marcas que recomenda.
Na minha perspectiva (talvez ‘conservadora’) há também uma distinção clara a fazer entre este género informativo híbrido do shopping e a crítica, certamente mais exigente, de objectos culturais — livros, filmes, espectáculos, mas também, num conceito mais amplo, restauração ou vinhos —, tal como é tradicionalmente acolhida na imprensa. Sugestões de compras são outra coisa, até porque são, por natureza, positivas.
A confiança dos leitores na independência dos critérios que devem presidir a tudo o que é publicado sob responsabilidade editorial — por oposição ao espaço vendido para fins comerciais — tem de assentar em regras claras de demarcação entre informação e publicidade, e elas estão definidas no Livro de Estilo doPÚBLICO. Como as aparências também contam, uma dessas regras diz que se deve evitar a inserção de publicidade a objectos ou acontecimentos nas mesmas áreas do jornal em que estes são tratados pela redacção.
Curiosamente, o vídeo referido por Firmino Monteiro esteve acompanhado, durante uma semana, por publicidade a uma marca de óculos (um anúncio paginado ao lado e outro a cobrir o próprio vídeo). A direcção do jornal informou-me de que não foi infringida a norma existente: a campanha publicitária, que só surgiu bastante tempo depois da publicação do vídeo, não era de nenhuma das marcas sugeridas na peça do Life&Style. Óculos publicitados ao lado de óculos aconselhados podem, ainda assim, ter confundido leitores menos atentos, recordando a importância de vigiar a aplicação, nem sempre cumprida, da regra da proximidade indesejada.”