Apelando à compreensão dos leitores que me têm questionado sobre outras matérias, volto ainda uma vez ao caso que opõe este jornal ao ministro Miguel Relvas, para apreciar a deliberação que a esse respeito foi tornada pública na última quarta-feira pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). A meu ver, as conclusões do documento, e o método seguido para as procurar sustentar, dizem tudo sobre a incapacidade ou o desinteresse do organismo presidido por Carlos Magno em contribuir para o cumprimento da missão, que assume como sua, de “assegurar o livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa”. Devem ser lidas como aquilo que objectivamente são: uma tentativa pouco consistente de branquear a actuação condenável de um governante, por sinal o responsável directo pela escolha dos três membros do Conselho Regulador da ERC que aprovaram a deliberação.
O que estava em causa era simples e grave e foi dado a conhecer aos leitores. O PÚBLICO, como se sabe, acusou o ministro de recorrer a uma forma de pressão “inaceitável” — que será mais acertado descrever como uma ameaça de recurso a chantagem e abuso de poder — para tentar evitar a publicação de uma notícia sobre o grau do seu envolvimento com protagonistas do chamado “caso das secretas”, que está a ser investigado pelas autoridades judiciais. Ao fazê-lo, já aqui o defendi, cumpriu um dever deontológico e prestou o serviço público de contribuir para um melhor conhecimento, pelos cidadãos, do perfil ético de alguém que desempenha um cargo público de grande responsabilidade e que mostrou não ter condições para deter a tutela governamental da área da comunicação social.
Sobre essa acusação, a ERC (ou, mais rigorosamente, a maioria constituída por três membros do seu Conselho Regulador) demitiu-se de apresentar uma convicção ou de formular um juízo. Mesmo em relação aos factos que o ministro não pôde deixar de admitir, e que só por si são condenáveis, essa maioria preferiu refugiar-se na conclusão hipócrita de que poderão ser “objecto de um juízo negativo no plano ético e institucional”, para logo acrescentar a extraordinária ressalva de que não lhe cabe “pronunciar-sobre tal juízo” — o que era precisamente o que lhe competia fazer.
Depois de recapitular longamente os factos e as versões conhecidas há mais de um mês, e de se espraiar em considerações alheias à questão das ameaças dirigidas ao PÚBLICO e à jornalista Maria José Oliveira, o documento da ERC brinda-nos com a conclusão de que “não se deu por provada a existência de pressões ilícitas da parte do ministro”. Ora, não só não era uma questão de legalidade que estava em causa, como à partida se sabia não existir uma prova material, no sentido jurídico, do conteúdo dos telefonemas que o PÚBLICO revelou e o ministro negou.
Sucede que a ERC não é um tribunal nem está obrigada a cingir-se aos procedimentos judiciais. O que estava ao seu alcance, e não era pouco, era formar uma convicção a partir da credibilidade e da verosimilhança de testemunhos que sabia serem contraditórios. Poderia e deveria tê-lo feito tomando em devida consideração pontos como os seguintes:
1º) O primeiro compromisso dos jornalistas é com a verdade. Não é crível que um número significativo de profissionais respeitados de um órgão de referência tenha conspirado para mentir deliberadamente aos seus leitores, calcando aos pés a ética da profissão. Nem se descortina que interesse poderia motivar comportamento tão inverosímil.
2º) A noticiada existência de divergências internas, no PÚBLICO, sobre a avaliação das ameaças de Relvas e a forma de a elas reagir, reforça a credibilidade da narrativa unânime e coerente partilhada por todos os elementos do jornal envolvidos no caso (autora da notícia, editores, direcção, conselho de redacção).
3º) O padrão de comportamento do ministro, alterando ou contradizendo declarações anteriores, de forma canhestra e por vezes patética, à medida que novos factos iam sendo conhecidos, caindo em incongruências ou apostando em omissões, revelou-se tanto nas audições parlamentares sobre o caso das secretas como nas declarações proferidas sobre a controvérsia com o PÚBLICO. O próprio processo de averiguações conduzido pela ERC o apanhou a faltar à verdade num ponto relevante (o do número de telefonemas que fez no dia 16 de Maio para tentar travar o desenvolvimento do trabalho jornalístico de Maria José Oliveira), obrigando-o de novo a desdizer-se, perante a existência, nesse pormenor, de provas materiais.
4º) Os indícios de envolvimento do ministro em situações no mínimo eticamente duvidosas têm vindo a acumular-se em notícias não desmentidas, resultantes da investigação de diversos órgãos de comunicação. Foram aliás reforçados (ver edição de ontem do PÚBLICO) por recentes revelações da ex-dirigente da Ordem dos Arquitectos, Helena Roseta, que a própria explicou ter feito por achar que “as pessoas têm de saber quem é este homem”.
Não estamos, portanto, a falar de níveis de credibilidade comparáveis. Por isso reafirmo a convicção de que, num caso em que é evidente que alguém esteve a mentir, os leitores têm bons motivos para presumir que não foi este jornal a faltar à verdade. Isso mesmo terá reconhecido o presidente da ERC quando declarou publicamente acreditar no que lhe disseram os jornalistas do PÚBLICO — uma afirmação especialmente significativa por ter sido feita após a divulgação do documento que fez aprovar e no qual se furtou a dizê-lo.
É importante recordar que a tentativa de intimidação de que Maria José Oliveira foi alvo tinha um objectivo preciso. O sentido da ameaça do ministro, prevendo a hipótese de não conseguir evitar a publicação das notícias que o comprometiam, era o de procurar descredibilizar a sua autora no plano da isenção profissional, insinuando uma sua ligação pessoal (falsa) a um qualquer adversário político. O documento da ERC enreda-se a este respeito em questões bizantinas, como a de saber se tal ligação (falsa, repete-se) pertenceria ao domínio da vida privada ou da vida íntima da jornalista.
De facto, para se avaliar no plano ético uma ameaça desse tipo por parte de um governante — e é um tipo de ameaça que não pode ser banalizada ao nível de uma pressão corriqueira —, pouco importa se a imputação é verdadeira ou falsa, ou se o seu autor estava ou não convencido da sua veracidade. Como não importa especular sobre a sua eventual eficácia. Como bem escreveu Arons de Carvalho, um dos membros da ERC que votou contra a deliberação, “uma ameaça não é grave pelo efeito que tem, mas pelo efeito que se pretendia que viesse a ter”.
Se esta deliberação prejudica qualquer hipótese de a ERC poder ser vista como um órgão de regulação rigoroso e fiável, o seu presidente veio agravar essa percepção ao veicular um ataque gratuito à credibilidade e independência deste jornal, difundindo a “informação”, falsa e já desmentida (ver edições de anteontem e ontem), de que a jornalista do PÚBLICO que acompanha a Câmara do Porto teria uma relação familiar com um vereador da oposição. O tema dos ataques à isenção dos jornalistas com base em elementos da sua vida privada ou das suas convicções pessoais é palco de muitos equívocos e justifica uma análise própria, mas não se compadece com a insinuação e a mentira.
Concluo, em jeito telegráfico, com alguns pontos que gostaria de desenvolver numa outra ocasião:
** A manter-se no futuro um órgão como a ERC, o processo de escolha dos seus membros deveria ser alterado, de modo a garantir a sua independência face ao poder político, o que não é incompatível com uma legitimação parlamentar.
** No que respeita à apreciação da ética jornalística, julgo no entanto que a forma de regulação que pode ser mais influente e respeitada, no campo da imprensa de referência, é a que possa ser assegurada entre pares. A tónica deve ser colocada nos instrumentos de auto-regulação. Entre estes, vem a propósito sublinhar a importância dos conselhos de redacção.
** Os raros defensores de Relvas neste caso procuraram empolar o que chamaram “conflitos internos” no seio do PÚBLICO, para desviar as atenções do comportamento do ministro. Sabe-se que existiram apreciações editoriais distintas e, sobretudo, avaliações divergentes da gravidade das ameaças e do modo de lhes responder. Trata-se de divergências normais numa redacção e o seu debate é geralmente enriquecedor. Que ele se faça sem constrangimentos, nesta como em outras matérias, é a melhor garantia que pode ser dada aos leitores de que o jornal preza os seus compromissos de qualidade e seriedade editoriais.