Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

José Queirós

Ape­lando à com­pre­en­são dos lei­to­res que me têm ques­ti­o­nado sobre outras maté­rias, volto ainda uma vez ao caso que opõe este jor­nal ao minis­tro Miguel Rel­vas, para apre­ciar a deli­be­ra­ção que a esse res­peito foi tor­nada pública na última quarta-feira pela Enti­dade Regu­la­dora para a Comu­ni­ca­ção Social (ERC). A meu ver, as con­clu­sões do docu­mento, e o método seguido para as pro­cu­rar sus­ten­tar, dizem tudo sobre a inca­pa­ci­dade ou o desin­te­resse do orga­nismo pre­si­dido por Car­los Magno em con­tri­buir para o cum­pri­mento da mis­são, que assume como sua, de “asse­gu­rar o livre exer­cí­cio do direito à infor­ma­ção e à liber­dade de imprensa”. Devem ser lidas como aquilo que objec­ti­va­mente são: uma ten­ta­tiva pouco con­sis­tente de bran­quear a actu­a­ção con­de­ná­vel de um gover­nante, por sinal o res­pon­sá­vel directo pela esco­lha dos três mem­bros do Con­se­lho Regu­la­dor da ERC que apro­va­ram a deliberação.

O que estava em causa era sim­ples e grave e foi dado a conhe­cer aos lei­to­res. O PÚBLICO, como se sabe, acu­sou o minis­tro de recor­rer a uma forma de pres­são “ina­cei­tá­vel” — que será mais acer­tado des­cre­ver como uma ame­aça de recurso a chan­ta­gem e abuso de poder — para ten­tar evi­tar a publi­ca­ção de uma notí­cia sobre o grau do seu envol­vi­mento com pro­ta­go­nis­tas do cha­mado “caso das secre­tas”, que está a ser inves­ti­gado pelas auto­ri­da­des judi­ci­ais. Ao fazê-lo, já aqui o defendi, cum­priu um dever deon­to­ló­gico e pres­tou o ser­viço público de con­tri­buir para um melhor conhe­ci­mento, pelos cida­dãos, do per­fil ético de alguém que desem­pe­nha um cargo público de grande res­pon­sa­bi­li­dade e que mos­trou não ter con­di­ções para deter a tutela gover­na­men­tal da área da comu­ni­ca­ção social.

Sobre essa acu­sa­ção, a ERC (ou, mais rigo­ro­sa­mente, a mai­o­ria cons­ti­tuída por três mem­bros do seu Con­se­lho Regu­la­dor) demitiu-se de apre­sen­tar uma con­vic­ção ou de for­mu­lar um juízo. Mesmo em rela­ção aos fac­tos que o minis­tro não pôde dei­xar de admi­tir, e que só por si são con­de­ná­veis, essa mai­o­ria pre­fe­riu refugiar-se na con­clu­são hipó­crita de que pode­rão ser “objecto de um juízo nega­tivo no plano ético e ins­ti­tu­ci­o­nal”, para logo acres­cen­tar a extra­or­di­ná­ria res­salva de que não lhe cabe “pronunciar-sobre tal juízo” — o que era pre­ci­sa­mente o que lhe com­pe­tia fazer.

Depois de reca­pi­tu­lar lon­ga­mente os fac­tos e as ver­sões conhe­ci­das há mais de um mês, e de se espraiar em con­si­de­ra­ções alheias à ques­tão das ame­a­ças diri­gi­das ao PÚBLICO e à jor­na­lista Maria José Oli­veira, o docu­mento da ERC brinda-nos com a con­clu­são de que “não se deu por pro­vada a exis­tên­cia de pres­sões ilí­ci­tas da parte do minis­tro”. Ora, não só não era uma ques­tão de lega­li­dade que estava em causa, como à par­tida se sabia não exis­tir uma prova mate­rial, no sen­tido jurí­dico, do con­teúdo dos tele­fo­ne­mas que o PÚBLICO reve­lou e o minis­tro negou.

Sucede que a ERC não é um tri­bu­nal nem está obri­gada a cingir-se aos pro­ce­di­men­tos judi­ci­ais. O que estava ao seu alcance, e não era pouco, era for­mar uma con­vic­ção a par­tir da cre­di­bi­li­dade e da vero­si­mi­lhança de tes­te­mu­nhos que sabia serem con­tra­di­tó­rios. Pode­ria e deve­ria tê-lo feito tomando em devida con­si­de­ra­ção pon­tos como os seguintes:

1º) O pri­meiro com­pro­misso dos jor­na­lis­tas é com a ver­dade. Não é crí­vel que um número sig­ni­fi­ca­tivo de pro­fis­si­o­nais res­pei­ta­dos de um órgão de refe­rên­cia tenha cons­pi­rado para men­tir deli­be­ra­da­mente aos seus lei­to­res, cal­cando aos pés a ética da pro­fis­são. Nem se des­cor­tina que inte­resse pode­ria moti­var com­por­ta­mento tão inverosímil.

2º) A noti­ci­ada exis­tên­cia de diver­gên­cias inter­nas, no PÚBLICO, sobre a ava­li­a­ção das ame­a­ças de Rel­vas e a forma de a elas rea­gir, reforça a cre­di­bi­li­dade da nar­ra­tiva unâ­nime e coe­rente par­ti­lhada por todos os ele­men­tos do jor­nal envol­vi­dos no caso (autora da notí­cia, edi­to­res, direc­ção, con­se­lho de redacção).

3º) O padrão de com­por­ta­mento do minis­tro, alte­rando ou con­tra­di­zendo decla­ra­ções ante­ri­o­res, de forma canhes­tra e por vezes paté­tica, à medida que novos fac­tos iam sendo conhe­ci­dos, caindo em incon­gruên­cias ou apos­tando em omis­sões, revelou-se tanto nas audi­ções par­la­men­ta­res sobre o caso das secre­tas como nas decla­ra­ções pro­fe­ri­das sobre a con­tro­vér­sia com o PÚBLICO. O pró­prio pro­cesso de ave­ri­gua­ções con­du­zido pela ERC o apa­nhou a fal­tar à ver­dade num ponto rele­vante (o do número de tele­fo­ne­mas que fez no dia 16 de Maio para ten­tar tra­var o desen­vol­vi­mento do tra­ba­lho jor­na­lís­tico de Maria José Oli­veira), obrigando-o de novo a desdizer-se, perante a exis­tên­cia, nesse por­me­nor, de pro­vas materiais.

4º) Os indí­cios de envol­vi­mento do minis­tro em situ­a­ções no mínimo eti­ca­mente duvi­do­sas têm vindo a acumular-se em notí­cias não des­men­ti­das, resul­tan­tes da inves­ti­ga­ção de diver­sos órgãos de comu­ni­ca­ção. Foram aliás refor­ça­dos (ver edi­ção de ontem do PÚBLICO) por recen­tes reve­la­ções da ex-dirigente da Ordem dos Arqui­tec­tos, Helena Roseta, que a pró­pria expli­cou ter feito por achar que “as pes­soas têm de saber quem é este homem”.

Não esta­mos, por­tanto, a falar de níveis de cre­di­bi­li­dade com­pa­rá­veis. Por isso rea­firmo a con­vic­ção de que, num caso em que é evi­dente que alguém esteve a men­tir, os lei­to­res têm bons moti­vos para pre­su­mir que não foi este jor­nal a fal­tar à ver­dade. Isso mesmo terá reco­nhe­cido o pre­si­dente da ERC quando decla­rou publi­ca­mente acre­di­tar no que lhe dis­se­ram os jor­na­lis­tas do PÚBLICO — uma afir­ma­ção espe­ci­al­mente sig­ni­fi­ca­tiva por ter sido feita após a divul­ga­ção do docu­mento que fez apro­var e no qual se fur­tou a dizê-lo.

É impor­tante recor­dar que a ten­ta­tiva de inti­mi­da­ção de que Maria José Oli­veira foi alvo tinha um objec­tivo pre­ciso. O sen­tido da ame­aça do minis­tro, pre­vendo a hipó­tese de não con­se­guir evi­tar a publi­ca­ção das notí­cias que o com­pro­me­tiam, era o de pro­cu­rar des­cre­di­bi­li­zar a sua autora no plano da isen­ção pro­fis­si­o­nal, insi­nu­ando uma sua liga­ção pes­soal (falsa) a um qual­quer adver­sá­rio polí­tico. O docu­mento da ERC enreda-se a este res­peito em ques­tões bizan­ti­nas, como a de saber se tal liga­ção (falsa, repete-se) per­ten­ce­ria ao domí­nio da vida pri­vada ou da vida íntima da jornalista.

De facto, para se ava­liar no plano ético uma ame­aça desse tipo por parte de um gover­nante — e é um tipo de ame­aça que não pode ser bana­li­zada ao nível de uma pres­são cor­ri­queira —, pouco importa se a impu­ta­ção é ver­da­deira ou falsa, ou se o seu autor estava ou não con­ven­cido da sua vera­ci­dade. Como não importa espe­cu­lar sobre a sua even­tual efi­cá­cia. Como bem escre­veu Arons de Car­va­lho, um dos mem­bros da ERC que votou con­tra a deli­be­ra­ção, “uma ame­aça não é grave pelo efeito que tem, mas pelo efeito que se pre­ten­dia que viesse a ter”.

Se esta deli­be­ra­ção pre­ju­dica qual­quer hipó­tese de a ERC poder ser vista como um órgão de regu­la­ção rigo­roso e fiá­vel, o seu pre­si­dente veio agra­var essa per­cep­ção ao vei­cu­lar um ata­que gra­tuito à cre­di­bi­li­dade e inde­pen­dên­cia deste jor­nal, difun­dindo a “infor­ma­ção”, falsa e já des­men­tida (ver edi­ções de ante­on­tem e ontem), de que a jor­na­lista do PÚBLICO que acom­pa­nha a Câmara do Porto teria uma rela­ção fami­liar com um vere­a­dor da opo­si­ção. O tema dos ata­ques à isen­ção dos jor­na­lis­tas com base em ele­men­tos da sua vida pri­vada ou das suas con­vic­ções pes­so­ais é palco de mui­tos equí­vo­cos e jus­ti­fica uma aná­lise pró­pria, mas não se com­pa­dece com a insi­nu­a­ção e a mentira.

Con­cluo, em jeito tele­grá­fico, com alguns pon­tos que gos­ta­ria de desen­vol­ver numa outra ocasião:

** A manter-se no futuro um órgão como a ERC, o pro­cesso de esco­lha dos seus mem­bros deve­ria ser alte­rado, de modo a garan­tir a sua inde­pen­dên­cia face ao poder polí­tico, o que não é incom­pa­tí­vel com uma legi­ti­ma­ção parlamentar.

** No que res­peita à apre­ci­a­ção da ética jor­na­lís­tica, julgo no entanto que a forma de regu­la­ção que pode ser mais influ­ente e res­pei­tada, no campo da imprensa de refe­rên­cia, é a que possa ser asse­gu­rada entre pares. A tónica deve ser colo­cada nos ins­tru­men­tos de auto-regulação. Entre estes, vem a pro­pó­sito subli­nhar a impor­tân­cia dos con­se­lhos de redacção.

** Os raros defen­so­res de Rel­vas neste caso pro­cu­ra­ram empo­lar o que cha­ma­ram “con­fli­tos inter­nos” no seio do PÚBLICO, para des­viar as aten­ções do com­por­ta­mento do minis­tro. Sabe-se que exis­ti­ram apre­ci­a­ções edi­to­ri­ais dis­tin­tas e, sobre­tudo, ava­li­a­ções diver­gen­tes da gra­vi­dade das ame­a­ças e do modo de lhes res­pon­der. Trata-se de diver­gên­cias nor­mais numa redac­ção e o seu debate é geral­mente enri­que­ce­dor. Que ele se faça sem cons­tran­gi­men­tos, nesta como em outras maté­rias, é a melhor garan­tia que pode ser dada aos lei­to­res de que o jor­nal preza os seus com­pro­mis­sos de qua­li­dade e seri­e­dade editoriais.