Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Regina Lima

Quando a ouvidoria recebe a reclamação de um leitor que se identifica com uma posição que não é considerada “politicamente correta” e constata que, na resposta à demanda, a Diretoria de Jornalismo se exime da responsabilidade pelas informações divulgadas na reportagem que foi alvo da reclamação, a obrigação de apurar os fatos do caso deveria ser redobrada, pois, como diz o ditado popular, “um erro não justifica outro”. Quando as informações em questão são referentes a dados estatísticos, esse ditado ganha o reforço do princípio pelo qual, ao testar uma hipótese, o pesquisador deveria “fazer de tudo para se provar errado ou obter resultados que de fato não deseja obter” (Blalock, H.M., Social Statistics, McGraw-Hill, New York,1960, pág. 125). Ou seja, o pesquisador deveria evitar o caminho fácil que leve aos resultados favoráveis à conclusão que gostaria de tirar.

Foi o que podemos concluir em relação à demanda do leitor Luiz Carlos Pauli, de Santa Cruz do Sul (RS), ao enviar uma reclamação à ouvidoria, na qual questiona as informações veiculadas em matéria publicada no mês de maio pela Agência Brasil: Brasil gastou R$ 21 bilhões com doenças relacionadas ao tabaco no ano passado (1). Ele diz: “Senhores….essas divulgações como exemplo, dos R$ 21 bilhões gastos com fumantes?? O número de mortos por cigarro?? Esses dados todos têm a comprovação definitiva e final do Ministério da Saúde??? O ministério assina embaixo, confirmando isso?? Temos dados verdadeiros, que estão milhões de anos luz do que é informado… Vamos ficar no aguardo de uma ligação dos senhores, para discutirmos a realidade desses números, pois o povo brasileiro precisa saber onde foi feito? Por quem foi feito? Data? Quem financiou? Dados das pessoas que forneceram esses dados? Local dos dados? Etc.”.

O enfoque da matéria é uma pesquisa divulgada pela Aliança de Controle do Tabagismo (ACT), que indicou que R$ 21 bilhões foram gastos no ano passado em saúde pública e privada com doenças relacionadas ao fumo. De acordo com a entidade, o montante representa quase 30% do valor destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS). O estudo, segundo Paula Johns, diretora da ACT, demonstra que o país gasta mais com o tratamento de doenças consideradas evitáveis do que o montante que é recolhido pela indústria do tabaco na forma de impostos.

A Diretoria de Jornalismo respondeu: “Agradecemos a participação do leitor e informamos que as informações utilizadas na matéria são as oficiais, divulgadas pelo Ministério da Saúde. Se houver questionamento sobre os números divulgados, o Ministério da Saúde é quem deve ser acionado”. Essa resposta deixa muito a desejar. É possível que o relatório do estudo não estivesse disponível na data do seu lançamento, quando a reportagem foi feita – um “ossos do ofício” que frequentemente obriga o jornalista a se basear em releases, como esta ouvidoria já constatou muitas vezes – mas quando a demanda foi respondida o relatório Carga das Doenças Tabaco Relacionadas para o Brasil já podia ser acessado no site da ACT (2).

Caso o relatório tivesse sido consultado, a Diretoria de Jornalismo teria apurado que:

1. Embora os dados processados no estudo tenham sido obtidos do Ministério da Saúde, bem como de outras fontes oficiais e da Associação Médica Brasileira e do setor da saúde suplementar, as informações reproduzidas na matéria não são “oficiais”; são – pelo menos algumas delas – conclusões do próprio estudo. Aliás, para se cientificar desta diferença, bastava ter lido o release (3);

2. Outras informações utilizadas na matéria nem são do estudo; são informações acrescentadas pela ACT no release.

A Diretoria de Jornalismo não acatou a chamada do leitor de discutir os “dados verdadeiros”, isto é, ouvir o outro lado com vistas à publicação de uma reportagem de contraponto, mas as informações do estudo, junto com as do release da ACT e outras disponíveis no site da organização, fornecem subsídios suficientes para respaldar alguns dos questionamentos levantados pelo leitor.

No seu site a ACT se define como “uma organização não governamental voltada à promoção de ações para a diminuição do impacto sanitário, social, ambiental e econômico gerado pela produção, consumo e exposição à fumaça do tabaco. É composta por organizações da sociedade civil, associações médicas, comunidades científicas, ativistas e pessoas comprometidas com a redução da epidemia tabagista”. A organização “tem parceria com algumas instituições, como a americana Tobacco Free Kids e a francesa Union, responsáveis por nosso financiamento, por meio da Iniciativa Bloomberg. Também são parceiros a Canadian International Development Agency (Cida) e a Health Bridge. Em alguns projetos, desenvolvemos parceria com outras instituições, como o Instituto Nacional de Câncer (Inca), a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), prefeituras e governos estaduais e outras organizações não governamentais”.

Portanto, trata-se de uma ONG aparentemente bem inserida no mundo global das entidades antitabagistas e respeitada por órgãos governamentais e intergovernamentais. São credenciais de peso, mas, como para qualquer grupo de interesse, elas não garantem imparcialidade na representação dos fatos. É o que pode ser observado nas informações reproduzidas pela Agência Brasil que integraram o release, mas não são do estudo que a ACT patrocinou.

Segundo o release, “30% do orçamento total destinado ao Fundo Nacional da Saúde, gestor financeiro dos recursos do SUS, são gastos com doenças tabaco relacionadas anualmente no país, apenas considerando-se os custos diretos associados ao tratamento”. Essa afirmação é simplesmente enganosa, pois o estudo e o release explicam – e a própria matéria da ABr registra – que o custo não se restringe aos pacientes atendidos pelo SUS, mas também inclui os atendimentos pelo setor de saúde suplementar, que abrange os planos e seguros de saúde, o que obviamente aumenta o total destinado ao atendimento de saúde no país. No estudo, pelo que foi possível apurar, a única comparação feita com o custo do tabagismo é como um percentual do PIB em 2011: 0,5%. Também convém notar aqui que não aparece no estudo nenhuma referência ao custo “anual”, só ao custo. O “anual” só aparece no release. A ABr foi mais longe ainda, afirmando que os R$ 21 bilhões foram gastos “no ano passado”, quando, na verdade, os dados da pesquisa são de 2008, com valores atualizados para 2011.

Outra afirmação feita pela ACT e reproduzida pela ABr, sem base no estudo, visa a convencer o cidadão de que, do ponto de vista das finanças públicas, os custos superam os benefícios: “o país gasta mais com o tratamento de doenças consideradas evitáveis do que o montante que é recolhido pela indústria do tabaco na forma de impostos [R$ 6,3 bilhões em impostos federais, segundo a Receita Federal]”. Faltou um contraponto, que não precisava ser de um advogado do diabo, para observar que as receitas oriundas do tabagismo e dos males que ele causa não se limitam ao montante recolhido pela indústria do tabaco.

Em relação ao estudo em si, surgem vários outros questionamentos, que em princípio não competem a uma ouvidoria da mídia, que deveria se preocupar apenas com o conteúdo midiático. Porém, as linhas divisoras que demarcam as etapas do processo de comunicação não são rígidas e uma ouvidoria da mídia pública tem uma responsabilidade maior pelas informações sobre as questões de interesse coletivo que são transmitidas aos cidadãos. Neste caso, observa-se, por exemplo, que uma leitura prévia do estudo poderia ter levado a reportagem a incluir na pauta algumas perguntas para esclarecer dúvidas referentes ao significado dos resultados. Para certas fontes, essa etapa talvez seja dispensável. Mas a ACT é um grupo de interesse, claramente comprometido com a campanha antitabagista, e suas informações deveriam ser checadas, como deveriam ser checadas as informações provenientes das entidades que defendem os interesses dos produtores e da indústria do tabaco.

A título de ilustração, teria sido interessante saber as respostas às seguintes perguntas:

1. Os custos correspondem aos valores que foram efetivamente gastos no diagnóstico e tratamento das doenças ou apenas refletem as planilhas que foram elaboradas no estudo para estimar os recursos necessários para a assistência médica nestes casos?

2. O horizonte temporal de até dois anos adotado no cálculo dos custos foi corrigido para dar um resultado anual?

A metodologia do estudo é sincrônica, o que significa que ele foi feito por meio de um corte no tempo que representa um retrato instantâneo da situação em 2008. Foi utilizado um sofisticado modelo matemático que gera comparações entre populações hipotéticas de fumantes, ex-fumantes e não fumantes. Diferentemente de outros estudos que são diacrônicos, acompanhando amostras desses grupos durante muitos anos. A importância dessa diferença se manifesta nos resultados: vários estudos diacrônicos concluíram que os custos de assistência médica ao longo da vida são menores para os fumantes, pela simples razão de eles morrerem mais cedo (4). É uma conclusão cujas implicações são ofensivas, sem dúvida, mas que a análise puramente econômica não pode desprezar e que teria que ser rebatida com outros argumentos e com o juízo de valor de que nossa sociedade prefere que os recursos gastos no tratamento de doenças relacionadas ao tabagismo tenham outro destino.

Mesmo usando uma metodologia sincrônica, outros estudos feitos no Brasil mostram valores muito menores para os custos do atendimento médico dessas doenças. Em uma pesquisa anterior, baseada em dados de 2005, chegou-se a um valor de R$ 330 milhões para os custos para o SUS, o que corresponde a 7,72% dos custos totais de hospitalizações e quimioterapia do SUS para indivíduos acima dos 35 anos naquele ano (5).

O objetivo da ouvidoria nessa discussão é chamar atenção à importância do tratamento dado pelo jornalismo público às informações que são transmitidas. Falta às vezes um esforço maior na identificação da verdadeira fonte da informação. O jornalismo costuma usar expressões como “de acordo com” e “segundo” para indicar que a informação pode ser apenas a opinião do entrevistado. Mas quando são usadas em afirmações como “o estudo, segundo Paula, demostra …”, essas expressões não deixam claro quem é a verdadeira fonte. Por isso propomos que a ABr adote a mesma prática que os fabricantes de cigarros são obrigados a seguir: colocar uma advertência no maço. Algo do tipo: “o relatório [ou pesquisa ou estudo] citado na reportagem foi [ou não foi] consultado na preparação desta matéria” ou “o relatório [ou pesquisa ou estudo] citado na reportagem estava [ou não estava] disponível para consulta na preparação desta matéria”. Assim a ABr poderia contribuir à prevenção de vários males, entre os quais a nebulosidade na atribuição de responsabilidade pelas informações transmitidas e, possivelmente, eventuais exageros e enganos nos dados relatados.

Até a próxima semana.

1. http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-05-31/brasil-gastou-r-21-bilhoes-com-doencas-relacionadas-ao-tabaco-no-ano-passado

2. http://actbr.org.br/biblioteca/pesquisas.asp

3. http://actbr.org.br/uploads/conteudo/720_release_custo_de_tabagismo_3105.pdf

4. http://www.usatoday.com/news/health/2009-04-08-fda-tobacco-costs_N.htm

5. http://www.fiocruz.br/ccs/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=121&infoid=1651&sid=9