Para o PÚBLICO, a fotografia não deve ser “um mero suporte ilustrativo” do texto — lê-se no Livro de Estilo deste diário, onde se aconselha que seja evitada a sua utilização “como ‘tapa-buracos’”. Admito que seja mais fácil dizê-lo do que fazê-lo. O modelo gráfico do jornal impõe espaços para imagem (não necessariamente fotográfica) nas matrizes de paginação e os prazos de fecho das páginas condicionam mais do que deveriam o duplo exercício de rigor e imaginação necessário para impedir o recurso a algum facilitismo neste domínio. Quando isso acontece surgem soluções desadequadas, destinadas a “tapar o buraco”.
A tendência que se observa, e que será porventura exagerada, de fazer acompanhar obrigatoriamente de uma fotografia uma parte muito significativa das notícias na edição on line — em que os prazos para publicação se comprimem ainda mais —, propicia com maior frequência escolhas indesejáveis neste domínio. Não só algumas fotografias utilizadas nada de útil acrescentam aos textos, como por vezes (já referi aqui um ou outro caso) a sua publicação representa um erro informativo.
Se é raro chegarem-me queixas sobre a qualidade do fotojornalismo do PÚBLICO ou das escolhas de imagens de origem externa que ilustram, por exemplo, os grandes acontecimentos internacionais — o que só abona a favor da qualidade da edição fotográfica do jornal —, são frequentes, em contrapartida, os reparos de leitores provocados por imagens que terão sido escolhidas como “mero suporte ilustrativo”, especialmente quando não houve o cuidado necessário para evitar envolver, através da fotografia, pessoas ou instituições alheias às notícias.
É desse tipo o primeiro caso que hoje me ocupa. No passado dia 24 de Fevereiro, foi publicada na edição impressa uma notícia intitulada “Escolas de condução e ACP trocam acusações de suspeitas de ilegalidades e de corrupção”. Não se tratava de descrever um caso concreto, mas de informar acerca da polémica provocada por declarações do presidente do Automóvel Clube de Portugal, que teria condenado a existência de corrupção no universo dos estabelecimentos dedicados à formação de automobilistas. A peça, paginada a quatro colunas, era acompanhada da imagem fotográfica do que parecia ser uma aula sobre regras de trânsito que alguém estava a ministrar numa escola de condução.
Em Maio, um instrutor de condução devidamente identificado escreveu-me, solicitando — pedido que transmiti à direcção do PÚBLICO — um esclarecimento sobre a publicação dessa imagem. “A pessoa nessa fotografia”, explicava, “sou eu, e não me recordo de (…) ter sido tirada com a minha permissão, nem tão pouco me foi pedida autorização para a publicação da mesma”. Argumentando que não via motivo para a sua imagem ser “associada à notícia e exposta desta forma”, permitindo que “qualquer cidadão” o ligasse a uma polémica sobre corrupção, pedia que fosse publicada uma explicação “em que se assuma que a fotografia (…) era apenas ilustrativa, nada tendo o seu protagonista “a ver com o tema exposto”.
Lamentando que “a pessoa retratada” se tenha sentido “incomodada”, a directora do PÚBLICO explicou-me que se recorrera a uma fotografia datada de 2008, arquivada como imagem de um centro de exames do ensino do Código da Estrada. “Em momento algum”, afirma Bárbara Reis, “acreditámos que a fotografia pudesse ser interpretada como algo mais do que uma fotografia genérica de escolas de condução. Acreditámos que nenhum leitor iria (…) pensar que a pessoa retratada durante o que parece ser uma aula de condução seria vista como um suspeito de corrupção”. “O homem”, argumenta, “está praticamente de costas e mal se vê o seu rosto; não é claro se (…) é um aluno ou um professor”.
Por mim, creio que este caso ilustra o cuidado suplementar que deve existir na utilização de imagens de arquivo em notícias deste tipo. É verdade que não se vê de frente o rosto do professor fotografado, mas seria presumível que pudesse ser reconhecido, com maior ou menor grau de certeza, por familiares, vizinhos, colegas ou alunos. Foi aliás o que provavelmente aconteceu, tendo em conta o tempo decorrido entre a publicação, de que alguém o terá informado, e a queixa que recebi do instrutor em causa. A sua reclamação deveria ter sido suficiente para que o jornal divulgasse — o que não fez — o esclarecimento solicitado.
Outro cuidado ético a ter na escolha de fotografias é o que se prende com o respeito pela autoria, nomeadamente quando se procuram imagens na Internet. No dia 2 de Junho, uma notícia sobre o desfecho do campeonato nacional de râguebi (“CDUL campeão nacional 22 anos depois”) foi ilustrada com uma imagem acompanhada da menção “DR” (direitos reservados).
“Foi com alguma surpresa que vi uma fotografia minha ser utilizada nesta notícia”, escreveu Miguel Rodrigues, responsável pelo blogue temático cdul.blogspot.pt, do qual a imagem foi retirada. Acrescentava: “Não sou fotógrafo profissional, não vendo fotografias e o que faço é para divulgação da modalidade, mas existem regras mínimas quando se pretende utilizar a fotografia de alguém — um contacto, uma menção ao autor ou simplesmente ao blogue onde foram buscar a fotografia”.
Sem dúvida. Era o que deveria ter sido feito, e Hugo Daniel Sousa, que assegura provisoriamente a edição da secção de desporto, reconhece-o: “Devemos um pedido de desculpa ao leitor, porque deveríamos ter entrado em contacto com ele e feito menção ao seu nome na assinatura da fotografia”. Essas desculpas, informou-me, foram já apresentadas, tendo sido perguntado a Miguel Rodrigues “se prefere que retiremos a foto do site ou a assinemos com uma referência ao seu blogue”.
Questão a merecer alguma reflexão é a que foi colocada pelo leitor Vítor Videira a propósito da publicação no Público Online, no passado dia 12 de Maio, de uma fotografia de Hugo Chávez, que encimava a notícia do regresso a Caracas do presidente venezuelano, após uma estadia em Cuba para um ciclo de tratamento a um cancro. Chávez, dizia-se na peça, “mostrou-se optimista” sobre a evolução da doença e “cantou frente às câmaras após um discurso de 20 minutos”.
O leitor estranhou a imagem escolhida para ilustrar o regresso ao seu país do presidente venezuelano: uma fotografia da agência Reuters de Setembro anterior, em que Chávez aparece sem cabelo, como efeito — na altura — dos tratamentos a que foi submetido para combater a doença oncológica. Explica ter visto imagens da “cantoria” presidencial nesse dia de Maio, e que não era essa “a figura actual do senhor”. Na sua opinião, a fotografia escolhida é “inadequada em termos de transparência informativa”. Apesar de a data de captação da imagem ter sido devidamente assinalada na legenda, inclino-me a concordar. Tratando-se precisamente de uma peça que referia a evolução da doença, teria sido preferível a opção por uma imagem actualizada de Chávez.
Também relacionada com a fotografia, chegou-me há dias a queixa de uma leitora que pretendia ver os seus dados e declarações retirados do blogue “O desemprego tem rosto”, uma iniciativa acolhida nos “blogues do PÚBLICO” (acessíveis na edição on line), em que imagens e textos são da responsabilidade do fotojornalista Daniel Rocha. Trata-se de um ambicioso e oportuno projecto fotográfico, iniciado em 1 de Maio passado, em que o autor se propõe mostrar ao longo de um ano os rostos, retratados em grande plano, de 365 cidadãos desempregados, sob o lema “Para lá de números ou estatísticas, é de pessoas que falamos quando o assunto é o desemprego”. Cada retrato é acompanhado de uma ficha de identificação da pessoa retratada e das suas respostas a perguntas sobre “o que mudou na sua vida desde que ficou desempregado” e quais as “perspectivas de futuro”.
Daniel Rocha explicou-me que encontra as pessoas retratadas a partir de contactos ou procurando-as à porta dos centros de emprego, e que a publicação de todas as imagens, declarações e elementos identificativos é objecto de expresso consentimento prévio dessas pessoas. Foi o que aconteceu com a leitora que quer ver retirada do blogue a entrada que lhe diz respeito, alegando que “o que está escrito não corresponde ao que disse”.
Julgo que o PÚBLICO não deve atender a exigência, aliás acompanhada de ameaça de recurso a “meios legais”. Pude ouvir a gravação da sua conversa com o autor do blogue e verificar que, salvo ínfimas adaptações próprias da transcrição de um discurso oral, a entrevistada disse exactamente o que foi publicado. Como já aqui defendi, “declarações prestadas livremente, publicadas de boa fé e correctamente transcritas” não devem ser apagadas.