É com desagrado e alguma frustração que regresso ao tema dos erros de escrita que desfiguram com lamentável frequência textos publicados neste jornal. Nunca vi grande utilidade em fazer desta página um mostruário de dislates ortográficos e gramaticais e das falhas que estes põem a nu nos domínios da escrita, da revisão e da edição. Pouco espaço me sobraria, se o fizesse, para abordar outras questões mais relevantes, próprias do trabalho jornalístico e da sua ética.
Não posso, no entanto, ignorar as constantes e justificadas queixas de muitos leitores, que protestam contra os atentados à língua portuguesa nestas páginas (em papel ou na Internet), revelando no tom muitas vezes irritado das mensagens que me enviam um grau de exigência sobre os requisitos mínimos de uma informação de qualidade que infelizmente parece não ser partilhado por todos os que escrevem ou editam o PÚBLICO.
Há mais de um ano, dediquei textos sucessivos, neste espaço, a procurar entender, em diálogo com os leitores e os responsáveis editoriais, as causas deste problema, e a debater soluções para o enfrentar. É que se trata, convém sublinhá-lo, de uma questão perfeitamente resolúvel. Se um jornal completamente livre de gralhas é algo que nunca terá existido, se a ocorrência de alguns erros informativos nas peças publicadas num diário é inevitável em qualquer parte do mundo (importa é que sejam prontamente corrigidos), o confronto com asneiras no uso da língua pode e deve ser inteiramente poupado aos leitores. É uma questão de profissionalismo e de organização, e é a obrigação incontornável de um jornal de qualidade.
A direcção do PÚBLICO afirmou-se então consciente das fragilidades patentes neste domínio e anunciou estar a preparar medidas para as corrigir. Sem sucesso, a avaliar pelo que nos vai mostrando a leitura diária do jornal. Na minha percepção — naturalmente subjectiva , na ausência de uma contabilidade rigorosa, mas coincidente com a dos leitores que a este respeito me interpelam —, a frequência de erros de escrita tem mesmo vindo a agravar-se.
Vejam-se, a título meramente ilustrativo, alguns exemplos recentes. Uma peça publicada há dias (edição de 17.07) com grande relevo gráfico começava com a frase ‘Pediram a Sophie Calle que descreve-se, fisicamente, a sua mãe (…)’ — isto a abrir uma reportagem considerada suficientemente importante para ser financiada ao abrigo do projecto mecenático Público Mais. Dois dias depois, no primeiro parágrafo de uma notícia na edição on line sobre a guerra na Síria, podia ler-se que é com o Iraque que aquele país tem a fronteira ‘de maior extenção’ — o que levou o leitor Ricardo Ribeiro a questionar ‘com que autoridade’ oPÚBLICO divulga, ‘com uma frequência considerável, artigos críticos do sistema de ensino’. Registe-se que neste caso o erro foi corrigido (e a correcção assinalada) pouco após a publicação de um comentário crítico do mesmo leitor.
Também corrigido, mas dessa vez sem explicações, foi um outro atropelo à língua, logo denunciado por dois leitores, na abertura de uma peça sobre os incêndios no Algarve (edição de 21.07). A frente do fogo, escreveu-se, teria ‘uma intensidade inferior há registada nos últimos dias’. Se, para o leitor John Pallister, ‘é chocante que um erro destes num cabeçalho tenha escapado’, outros manifestavam o seu espanto na própria caixa de comentários à notícia. ‘Como pode um jornalista confundir ‘há’ com ‘à’?’. Ou: ‘a sério que um jornalista faz erros destes?’.
No dia seguinte, na edição impressa, percebia-se que um jornalista pode fazer ainda pior. Foi o que sucedeu na notícia sobre o falecimento de Helena Cidade Moura, em que o redactor pôs na boca do reitor da Universidade de Lisboa, citado entre aspas, uma referência ao modo como a pedagoga agora desaparecida ‘interviu’ na sociedade. Também neste caso, o que passara sem estremecimento pelos filtros editoriais do PÚBLICO não passou despercebido a quem leu o jornal. Duas edições mais tarde, surgiu na secção O PÚBLICO ERROU o desagravo devido ao reitor, ‘citado com um erro que, obviamente, não cometeu’.
Pior é quando nem as chamadas de atenção dos leitores levam a corrigir as incapacidades de expressão em português. Ainda ontem se mantinham no Público Online, numa peça de finais de Maio intitulada ‘Filha de milionários é presa por envolvimento nos motins de Londres de 2011″, vários erros de palmatória, com destaque para a asneira em dose dupla na frase ‘A juíza Patricia Lees sublinhou as escolhas de Laura Johnson que, nessa noite, quando um polícia ordenou-a para parar, carregou com o pé no acelerador,apesar do agente estar à frente dela’. Tal como se mantinham, apostos à notícia, inúteis comentários de protesto a que ninguém na redacção terá dado importância. Ainda menos respeitada foi a intervenção da leitora Maria José Goulão, que se queixa de não ter visto publicado o seu comentário de crítica à mediocridade desse texto.
Os exemplos avulsos que escolhi, entre os muitos para que me alertam os leitores, não se explicam por distracção ou momentânea negligência. Revelam ignorância, indiciam um domínio insuficiente dessa ferramenta essencial a qualquer jornalista que é a escrita da sua própria língua. Por muitos méritos que tenha em outras vertentes da sua actividade, um jornalista que comete erros como estes é um profissional incompleto no quadro de um jornal de referência, que sempre terá na qualidade da escrita uma das condições para o ser verdadeiramente. O mínimo que deve esperar-se em relação a redactores que revelem essas vulnerabilidades é que os seus textos sejam objecto de atenção especial nos planos da revisão e da edição.
Para tanto é necessário, obviamente, que a importância de não dar à estampa erros crassos de português seja adequadamente compreendida nos vários níveis da hierarquia editorial. E não o será por quem não tenha interiorizado que a indignação de um leitor do PÚBLICO perante as agressões à língua é a mesma que ele próprio justificadamente sentirá ao adquirir um qualquer produto defeituoso que lhe é apresentado com o rótulo de ‘qualidade’.
É necessário, também, que o exemplo venha de cima, pondo fim aos sinais de negligência que continuam a surgir por parte de quem tem a última palavra na validação de textos e de páginas. É inaceitável a frequência de falhas técnicas como, entre outras, a publicação de peças a que faltam as últimas palavras ou linhas, de legendas e elementos gráficos que ficam esquecidos, de infografias que não batem certo com os textos que acompanham, de excertos de prosa que são objecto de correcção mas permanecem no texto corrigido, de títulos em que erros de concordância bem visíveis sobrevivem ao último olhar, como este da edição do passado dia 19: ‘Município espanhola à espera do tribunal’.
Julgo, como disse atrás, que a frequência de erros de escrita e de falhas de edição tem vindo a acentuar-se. Mas há, neste campo, ao menos um sinal positivo: tornaram-se mais comuns, e em geral mais rápidas, as correcções nos textos do Público Online. Essa é uma melhoria que suponho dever ser creditada, em boa parte, à intervenção atenta e generosa de muitos leitores, que recorrem às caixas de comentários para apontar erros que escaparam aos profissionais.
Valerá a pena acrescentar que, tenham ou não origem em chamadas de atenção dos leitores, essas correcções devem ser sempre sinalizadas. O leitor José Ortigão Oliveira assinalou um erro numa notícia do passado dia 20 sobre o falecimento de José Hermano Saraiva: escrevera-se que o antigo ministro da Educação fora ‘procurador às Cortes’, quando se pretenderia informar que integrara a Câmara Corporativa do Estado Novo. A anomalia histórica terá tido origem num despacho da agência Lusa (foi aliás reproduzida em outros órgãos de comunicação) e foi, no caso do PÚBLICO, rapidamente detectada e corrigida. Porém, tendo o erro estado em linha, a correcção deveria ter sido assinalada, e não o foi. Quando esse procedimento não é seguido, tornam-se incompreensíveis as mensagens de leitores que permanecem nas caixas de comentários, alertando para o erro no texto original.