“O recente e controverso acórdão do Tribunal Constitucional que, em nome do princípio da igualdade, impede a partir do próximo ano os cortes dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e dos pensionistas ‘veio reabrir o debate que opõe trabalhadores do privado e funcionários públicos, ressuscitando ideias há muito enraizadas na sociedade portuguesa’ — lia-se a abrir as páginas de Destaque deste jornal no passado domingo, 29 de Julho.
A partir dessa constatação de actualidade, o PÚBLICO proporcionou aos seus leitores, num extenso trabalho assinado pela jornalista Raquel Martins, uma leitura organizada de informações e dados estatísticos, bem como de análises e opiniões de vários especialistas, que permite examinar a validade das referidas ideias ‘enraizadas’ e ponderar o que tem vindo a alterar-se na relação entre os regimes laborais da função pública e do sector privado.
A recolha e interpretação dos dados disponíveis mostra que a afirmação genérica corrente de que o trabalho para o Estado é por regra mais bem pago e mais seguro não resiste a uma análise da diversidade das situações e da evolução dos enquadramentos legais, o que deveria pelo menos obrigar a temperar um discurso político destinado a sustentar medidas de austeridade que penalizam com especial dureza os funcionários públicos.
De entre as conclusões que este trabalho jornalístico permite formular com razoável segurança ressaltam ideias como as de que ‘os regimes laborais da função pública e do sector privado têm vindo a aproximar-se’ ou que ‘trabalhar para o Estado ainda compensa, mas não para os mais qualificados’, tendo esta última sido escolhida para manchete da edição desse domingo.
Sejam ou não essas as conclusões que mereceriam maior ênfase editorial (e eu penso que eram), creio que os leitores puderam encontrar, no conjunto das peças informativas que compunham esse dossier de cinco páginas, um trabalho oportuno, competente e esclarecedor, que permite a cada um formar as suas próprias opiniões sobre um tema forte da actualidade. É o que deveria esperar-se, por sistema, de uma iniciativa jornalística escolhida para tema de destaque deste diário.
Mesmo os trabalhos bem conseguidos não estão, porém, isentos de crítica. Embora reconhecendo que as peças publicadas são ‘globalmente equilibradas’ e ‘colocam bem os problemas’, o sociólogo e investigador André Freire encontrou nelas dois ‘erros metodológicos’, que em seu entender ‘prestam um mau serviço ao necessário desfazer de preconceitos ideologicamente construídos contra a Função Pública’. Seria o caso das passagens em que se escreveu que ‘em média, ganha-se mais no Estado’ e que ‘a pensão média (…) paga pela Segurança Social estava em 2011 muito próxima dos 400 euros, enquanto na função pública ultrapassava os 1200 euros’.
André Freire argumenta que ‘estas médias não são de todo comparáveis, porque a estrutura das qualificações é incomparavelmente mais elevada na Administração Pública (e Serviços Autónomos) do que no Sector Privado’. Refere que, segundo os últimos dados que conhece, ‘ há no sector público cerca de 45 por cento de pessoas com formação superior, enquanto que no privado há cerca de 13 por cento, logo a remuneração média de salários e de pensões não é, de todo em todo, comparável com o que se passa no sector privado, sob pena de querermos ter ‘o mundo de pernas para o ar’’.
A autora do trabalho faz notar que, numa das peças que assinou, afirma precisamente que ‘não é fácil fazer comparações entre salários na função pública e no sector privado’, e que as conclusões a que chegou se apoiam em estudos credíveis, elaborados pelo Banco de Portugal. Reconhece, no entanto, que ‘deveria ter deixado claro no texto principal do Destaque que na função pública a percentagem de trabalhadores com formação superior é muito mais elevada do que no sector privado (por influência dos professores e dos médicos, por exemplo), o que acaba por inflacionar a média salarial’.
Raquel Martins escreve ainda, e uma leitura atenta do seu trabalho permite confirmá-lo, que ‘o facto de não ter feito referência à questão das qualificações não teve qualquer objectivo de acentuar preconceitos em relação aos funcionários públicos’. ‘Muito pelo contrário’, acentua, o objectivo foi o de ‘tentar olhar para as diferenças entre público e privado de forma enquadrada e procurando explicar por que razão essas diferenças surgiram’.
Por mim, recordo que as comparações estabelecidas entre valores médios de qualquer natureza não podem dispensar, no quadro de uma informação rigorosa, e avessa a qualquer simplismo demagógico, a definição (e a desagregação, se for o caso) dos universos comparados. Considero que neste trabalho essa exigência foi cumprida no se refere à questão principal a que se propunha responder: a de saber se no sector público se ‘ganha mais’ do que no privado. A resposta, devidamente fundamentada, é naturalmente afirmativa em termos de média global (ainda que os números em que se cifra essa diferença média, datados de 2005, provavelmente já não correspondam à realidade actual), mas tende a ser negativa — e esse dado é devidamente sublinhado — quando se consideram apenas as profissões mais qualificadas.
Em contrapartida, a mesma exigência não foi satisfeita com suficiente clareza no ponto referido por André Freire. De facto, a diferença estrutural entre os dois sectores quanto ao peso das qualificações profissionais, significativamente mais elevado na função pública, terá sempre de condicionar uma leitura adequada dos números globais, como no caso referido dos valores médios das pensões. Para que não se compare o que não é comparável. Esta é, portanto, uma crítica pertinente a um aspecto particular de um trabalho jornalístico relevante e, no essencial, bem elaborado.
Estação tonta?
Há erros tão primários que custa ter de os referir. Qualquer jornalista de um diário tem obrigação de saber desde o seu primeiro dia de trabalho o que não escaparia a qualquer pessoa dotada de um mínimo de inteligência e bom senso: quando se escreve para o jornal em papel uma notícia sobre um acontecimento ocorrido nesse mesmo dia, não se diz que aconteceu ‘hoje’, já que a notícia, como é óbvio, só será lida no dia seguinte. Nenhum aprendiz da profissão a quem seja pedido que utilize ou reproduza um despacho de uma agência noticiosa pode ignorar que deverá descrever como tendo acontecido ‘ontem’ o que no texto da agência se afirma ter sucedido ‘hoje’.
São compreensíveis, por isso, e acertadas, as palavras duras — ‘incompetência, preguiça, ausência absoluta dos mais elementares critérios de rigor jornalístico’ — escolhidas pelo leitor José Oliveira para manifestar o espanto com que leu no PÚBLICO, em notícia destacada da página 12 da edição de sábado, 28 de Julho, que ‘o ministro da Educação [se] comprometeu hoje a tentar arranjar horários para todos os professores do quadro…’, e que isso mesmo foi revelado pelo dirigente sindical Mário Nogueira ‘aos cerca de 150 professores que hoje se manifestaram frente ao Ministério da Educação e Ciência’.
Sem deixar de atribuir, com alguma benevolência, ao espírito da chamada ‘silly season’ a ‘pérola’ que ‘ninguém no PÚBLICO teve o cuidado, ou o rigor, ou o bom senso de evitar’, o leitor nota que vira na véspera, num jornal televisivo de sexta-feira, o que lhe diziam ter-se passado nesse sábado, e acrescenta uma evidência: ‘Seria absolutamente impossível, do ponto de vista técnico, publicar (…) hoje de manhã a notícia de um acontecimento ocorrido… hoje’.
Numa semana em que diversos leitores protestaram contra (passe o eufemismo) diferentes ‘descuidos’ de edição — permito-me destacar o caso de mais um título de última página da edição Porto (‘A república de KaZantip acabou…’; edição de 1 de Agosto) a remeter para nenhures, já que a notícia ali sinalizada só foi publicada na metade sul do país —, seria bom que alertas como o de José Oliveira fossem escutados pelos responsáveis editoriais. E que o calendário do PÚBLICO se fechasse às asneiras da estação tonta.”