As pesquisas de opinião pública têm mostrado repetidamente que um dos temas que mais preocupam o público é a questão da segurança pública. Um estudo realizado pela CNI/Ibope em 2011, por exemplo, constatou que quando os entrevistados foram solicitados a escolherem os dois principais problemas que o Brasil estaria enfrentando de uma lista de 23, saúde foi apontada por 52% da população, com a segurança pública em segundo lugar com 33% de assinalações [1]. Junto a essa preocupação, a segurança pública é a função primordial do Estado, ao qual é atribuído o “monopólio legítimo da coação física”, na conhecida conceituação do sociólogo alemão Max Weber.
No dia 17 de julho, a Agência Brasil publicou uma matéria com a seguinte observação sobre a competência dos municípios referente à segurança pública: “Os quase 140 milhões de eleitores que irão às urnas no pleito municipal de outubro devem estar atentos às promessas dos candidatos ao cargo de prefeito…. É comum, por exemplo, um candidato prometer na campanha investimentos em segurança pública – parte dessas competências, porém, é do estado e não do município, de acordo com a Constituição. Nesse item, a incumbência do prefeito se limita à criação de Guarda Municipal ou ações de prevenção como a garantia de uma boa iluminação pública em suas cidades. A finalidade da Guarda Municipal é preservar os bens públicos e não desenvolver ações de proteção direta do cidadão, que cabem às polícias Militar e Civil, sob o comando dos governadores”[2].
Como é sabido, a realidade foge a esses padrões formais. Na falta de capacidade dos órgãos encarregados pela Constituição de desempenhar a função da segurança pública, organizações criminosas paralelas, tais como as quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas e as milícias e outros grupos paramilitares, ocuparam os espaços vazios. Os próprios órgãos de segurança passam às vezes a disputar entre si as prerrogativas do poder e nos seus contingentes se descobrem “bandas podres” e praticantes de atos de violência que violam o princípio da coação legítima. Empresas particulares são criadas para fornecer segurança às pessoas jurídicas e físicas que podem pagar por esse serviço.
No meio dessa situação confusa, os governos municipais se tornam alvos de demandas oriundas tanto das instâncias governamentais superiores quanto das comunidades locais por funções que extrapolam os limites estabelecidos na Constituição. Por constituir o nível do governo mais próximo à população, é natural que o município assuma algumas dessas funções. As opiniões favoráveis a um policiamento mais “comunitário” reforçam essa tendência. Segundo os dados disponíveis na edição mais recente do Perfil dos Municípios Brasileiros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (páginas 94 a 105), em 2009 existiam guardas municipais em 865 cidades brasileiras (15,5% do total dos municípios no país, o percentual aumentando com a população, variando de 2% entre os municípios com até 5 mil habitantes a 87,5% entre os com mais de 500 mil habitantes). “Entre as atividades mais frequentes da Guarda Municipal pode-se citar em primeiro lugar a atividade originariamente atribuída à mesma, que é a proteção de bens, serviços e instalações do município, que ocorre em 812 dos 865 municípios com guarda. Em seguida, 725 prefeituras municipais informaram a atividade de segurança em eventos e comemorações; 644, ronda escolar; enquanto o auxílio às polícias Militar e Civil faz parte da rotina da Guarda Municipal de 609 e 468 municípios, respectivamente. O auxílio no atendimento do Conselho Tutelar mobiliza a Guarda Municipal de 543 municípios. No que concerne ao ordenamento do trânsito, sua atuação ocorreu em 513 municípios, além de exercer outras atividades [de defesa civil e controle de ambulantes, por exemplo]”. Outro dado digno de nota é que em 16,3% dos municípios onde existia em 2009, a Guarda Municipal utilizava armas de fogo. Esse percentual corresponde a 141 municípios. O percentual era progressivamente maior nos municípios com mais de 20 mil habitantes [3].
O conhecimento desses fatos ajuda a entender os motivos que levaram dois leitores do Paraná a reclamarem da explicação apresentada na matéria publicada pela Agência Brasil. O primeiro, Senhor Marcelo Peruchi (que, descobrimos no decorrer da pesquisa para essa coluna, é presidente do Sindicato dos Guardas Municipais do Estado do Paraná) escreveu: “A matéria que fala sobre atribuições e competências dos prefeitos, quando fala sobre as guardas municipais está incorreta, é DEVER CONSTITUCIONAL dos municípios a segurança pública e as guardas municipais devem salvaguardar a vida de seus cidadãos. A maior prova disso é que em Curitiba os guardas-municipais participam efetivamente das instalações das unidades Paraná Seguro aos moldes das unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) da cidade do Rio de Janeiro, e vão trabalhar nas cidades-sedes da Copa do Mundo 2014. O segundo, Senhor Nazareno, comentou: “Quanto a matéria … dizendo que ‘A finalidade da Guarda Municipal é preservar os bens públicos e não desenvolver ações de proteção direta do cidadão, que cabem às polícias Militar e Civil’, quero manifestar que o jornalista está equivocado, pois as Guardas Municipais estão atuantes na proteção dos cidadãos em todo o Brasil, primeiramente a proteção da vida, que é o maior patrimônio que o município pode ter”.
Na resposta ao primeiro leitor, a Agência Brasil se abrigou no formalismo: “Agradecemos a mensagem do leitor, mas não temos reparo a fazer à matéria publicada. Existe a PEC 534/2002, apresentada pelo então senador Romeu Tuma [PFL-SP], que estende às guardas municipais poder de polícia, mas no Senado não há registro de tramitação. Na Câmara dos Deputados, no último dia 11 de julho, consta apresentação do Requerimento de Inclusão na Ordem do Dia n. 5739/2012, do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), que: ‘requer inclusão na Ordem do Dia da Proposta de Emenda à Constituição n.º534/2002’. No entanto, como ainda é uma proposta de mudança constitucional, não aprovada, o que está em vigor é o Parágrafo 8º do Artigo 144 da Constituição Federal:
“§ 8º – Os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.
Na resposta ao segundo leitor, dez dias depois, a agência mostrou-se mais sensível aos argumentos apresentados: “A sua participação é muito importante para o aperfeiçoamento do nosso trabalho. Na matéria sobre as atribuições do prefeito municipal o repórter relacionou as funções constitucionais da Guarda Municipal e as que não são objeto dela. Justamente para esclarecer essas questões para que o cidadão possa identificar o que é passível de ser prometido e realizado. Por isso o repórter explicou como diz a Carta Magna que o município tendo também responsabilidade pela segurança pública, possa incluir como órgão coadjuvante nessa tarefa a Guarda Municipal, que tem a função principal de proteger os bens, serviços e instalações, nos termos da lei, e, se solicitado, auxiliar os órgãos policiais na manutenção da ordem pública junto com as polícias Federal, Civil e Militar, além de outros previstos na própria Constituição Federal, como é o caso da Polícia da Câmara dos Deputados, com atribuições também limitadas aos fatos ilícitos daquela Casa de leis. Na realidade, o texto do repórter expôs corretamente as funções para diferenciá-las do papel constitucional das polícias estaduais e federais. No entanto, o leitor tem razão em dizer que a Guarda Municipal possa auxiliar, apoiar em outras funções quando solicitada. Por isso, sua crítica foi levada para a reunião de pauta para as devidas considerações.”
Fora dos eventuais e compreensíveis interesses corporativos dos leitores na valorização das guardas municipais, os dados demostram que seus argumentos têm fundamento e que existe uma tendência no sentido da ampliação das áreas de atuação das guardas municipais do país além dos limites previstos na Constituição. É importante que a Agência Brasil esteja consciente dessa tendência na cobertura sobre a questão da segurança pública, para que os eleitores sejam alertados a esse fato e cobrem dos candidatos definições de posições sobre o tema. Em muitos países, a polícia local é o principal órgão responsável por salvaguardar a vida dos cidadãos. É essa a direção que o povo quer que seja seguida no Brasil? As reclamações dos leitores prestaram um grande serviço em levantar esta questão. Cabe agora à Agência Brasil avançar mais do que fez nos tímidos passos dados nas respostas aos leitores.
Voltaremos em 3 de setembro após as férias anuais da ouvidora-geral.
Notas
1– http://www.cni.org.br/portal/data/files/00/FF8080813313424801331C6AC7405A25/Pesquisa%20CNIIBOPE%20Retratos%20da%20Sociedade%20Brasileira%20Seguran%C3%A7a%20P%C3%BAblica%20Out%202011.pdf
2 – http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-07-17/antes-de-votar-eleitor-precisa-conhecer-atribuicoes-de-prefeito
3 – http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/2009/default.shtm”